Venezuela à caminho da utopia concreta, diz ex-ministro
14/09/2004
- Opinión
"E depois, o que fazer?" Essa deve ser a pergunta a ser feita
permanentemente para avançar e aprofundar qualquer processo
revolucionário. Essa é a avaliação do ex-ministro venezuelano de
Educação Superior, Hector Navarro. "Se em uma revolução não se
formula essa questão, corre-se o risco de retroceder". Um dos
homens de confiança do presidente Hugo Chávez, o engenheiro
mecânico -único ministro que permaneceu no governo desde o
inicio, em 1999- deixa o cargo para se reitegrar às atividades
acadêmicas na Universidade Central da Venezuela. Para Navarro,
ideólogo da Missão Sucre que levou à universidade 250 mil
jovens, a qualidade e a revolução não são antagônicos, mas
adverte que "sem justiça não pode haver qualidade". Para ele, é
preciso colocar os meios de produção nas mãos dos trabalhadores
para avançar a revolução. "É preciso mudar a lógica do capital
para a lógica do trabalho. O trabalhador é o objeto dessas
mudanças. Tudo isso é aprofundar a revolução".
- Que tipo de revolução é essa? Como podemos defini-la?
- Do ponto de vista teórico e conceitual não existe uma
definição completa do que é o bolivarianismo. Na história das
revoluções, acredito que um erro comum em todas elas, incluindo
a Revolução de Outubro dos bolcheviques, foi que ao chegar ao
poder, concluiram que o êxito da revolução os conduziria à etapa
final de desenvolvimento humano. Na revolução soviética, quando
os líderes tomaram o poder não colocaram em prática o
materialismo dialético. Acreditaram que com eles a história
chegava ao seu fim. Não foram mais além de um determinado ponto,
em termos teóricos. Não responderam à pergunta: e depois, o que
fazer? Uma revolução deve olhar sempre para o futuro. Se uma
revolução não se formula essa pergunta corre o risco de
retroceder.
- Qual é o horizonte quando se trata do futuro da revolução
bolivariana?
- A revolução deve ser humanista, do povo, para a maioria.
Precisamente o atalho em que se transita nesse momento. Tem que
ser uma revolução baseada na liberdade do povo, profundamente
igualitária e justa, uma justiça que garanta o bem estar.
Podemos tomar a revolução de Bolívar como um ponto de partida,
mas se deve desenvolver esses ideais e metas mais além. O
projeto da "Missão Sucre" (bolsas universitárias) não era um
problema que Bolívar teve que enfrentar no seu tempo. Para ele o
problema era a educação básica. Não estava sugerindo um tipo de
desenvolvimento tecnológico que propomos hoje.Para onde vai essa
revolução do ponto de vista estratégico é dificil prever. O que
está bem claro é que deve evoluir. Deve representar um movimento
comprometido com o humanismo no nível mais profundo, um
movimento que respeite as idéias, à diversidade de culturas, não
à hegemônia cultural.
- Qual a relação entre o que deve ser esse processo e a
realidade vivida hoje na Venezuela?
- Acredito que em curto e médio prazo estamos avançando para
esta visão. O primeiro exito foi a Constituição de 1999. Essa
Constituição com todas as falhas que pode ter dá passos para uma
missão profundamente honesta. Em um fórum na Espanha, onde se
discutia a Constituição bolivariana, um juíz constitucionalista
de direita me disse que sua principal crítica é que a
Cosntituição era utópica demais. Isso é muito importante. Esta
foi a crítica mais importante que se formulou neste fórum porque
na perspectiva da direita esse juiz quiz dizer: "é natural que
os humanos sejam injustos e que o mundo também o seja. É natural
que alguns imponham seus direitos em detrimento dos demais, que
uns explorem os outros. É assim funciona o mundo". Por
conseguinte, esta Constituição, sob essa avaliação, não é
realista, é utópica porque não concorda com a 'lógica da
natureza'". Eu discordo disso. Sempre se deve olhar à uma
utopia, mas com os pés na terra, sobre a realidade do presente,
sempre olhando para onde se quer chegar.
- O que significa a nova meta que se escuta em todo o país que é
a de aprofundar a revolução bolivariana?
- O presidente Hugo Chávez tem sido muito claro. Disse: "Devemos
aprofundar a lei de terras", e isso deve ser feito. Quando
aprovamos a lei de terras na Assembléia Nacional vários
deputados alteraram a lei, a modificaram para que na prática não
fosse a lei que originalmente consideramos que era necessária.
De modo que essa lei deve ser modificada e isso significa que
devemos melhorar a produtividade, dar aos pequenos agricultores
acesso à crédito, desenvolver tudo que constitui uma economia
social. Desenvolver cooperativas e o cooperativismo, facilitar o
acesso à créditos para o povo, acesso à tecnologia e colocá-la a
serviço do povo, nas mãos do povo. Aprofundar a revolução
significa fazer mudanças nas relações de produção. Mudar a
lógica do capital para a lógica do trabalho. Significa colocar
as mãos dos trabalhadores nos meios de produção. Isso não
implica confiscar propriedades ou fábricas. O produto social
deve se destinar ao financiamento de pequenas e médias empresas,
principalmente às cooperativas comunitárias. O trabalhador é o
objeto dessas mudanças. Tudo isso é aprofundar a revolução.
- A começar pela reforma do Estado...
- O que temos que entender no processo de reforma do Estado é
que não é possível avançar em uma só área por vez. Se dizemos
que devemos mudar os ministérios, as burocracias, é preciso ter
claro que isso não se pode decretar de cima. Se fazemos isso a
iniciativa fracassará porque dentro de cada ministério, dentro
de cada setor existem pessoas. São funcionários públicos com uma
certa formação cultural da IV República. A essas alturas não
existe um só funcionário público da V República (iniciada no
governo Chávez em 1999). Por isso, para transformar o Estado
devemos lentamente passo a passo ir transformando as pessoas que
formam o Estado. Esse tem que ser um processo dinâmico, de
aprendizagem, porque ninguém tem experimentado ainda uma
revolução da maneira como estamos experimentando agora. Nenhum
acadêmico estudou para definir como foi possível para a Missão
Sucre colocar 250 mil estudantes na universidade em menos de um
ano. Isso significa que nós mesmos teremos que escrever este
livro. Este é um processo de construir aprendendo, fazer
aprendendo. Essa é uma revolução na forma de um processo
educativo. Por essa razão temos a Missão Sucre e centros de
treinamento e preparação que rompem com os paradigmas
tradicionais do ensino e aprendizagem. Em conseqüência, o
estudante que se instrui, toma aulas para aprender a dar aulas,
aprende dando aulas. O nosso lema: "A essência da revolução é a
educação". Significa que estamos educando pessoas, mas além
disso, reenducando-as, criando células comunitárias, redes
nacionais, colocando o Estado no seio do povo.
- De que maneira isso será feito na educação?
- Na educação superior devemos "municipalizar" a educação
superior. Se todos devem ter direito ao estudo, como de fato
acreditamos, o Estado e a sociedade têm a obrigação de colocar
nas mãos do povo as ferramentas de estudo. Não pode ser que
àqueles que têm acesso à internet em suas casas, tenham vantagem
em cima dos que vivem em um bairro pobre, sem linha telefônica e
muito menos à internet. É dever do Estado compensar essa
situação, colocando computadores nas mãos dos pobres para que ao
compar uma pessoa e outra se avalie a diferença de talentos e
não de oportunidades. Agora, mais do que nunca temos as
ferramentas para aprofundar a revolução.
- Alguns setores no país dizem que os programas de educação não
têm qualidade...
- A qualidade é um tema muito importante no qual estamos
trabalhando. Não pensamos que a qualidade e a revolução são
antagônicas. Durante a II Guerra Mundial os estadunidenses
tinham um sério problema: escassez de médicos para atender a
imensa quantidade de feridos. Por isso desenvolveram uma
estratégia de treinamento para médicos que durou de três a três
anos e meio. Aprenderam as áreas básicas: cirurgia, primeiros
socorros, traumas básicos. Essa experiência se relaciona de
maneira importante com nossa realidade. Temos uma crise
humanitária nas mãos. As pessoas sem assistência médica
necessitam de atendimento. A situação real exige a presença de
médicos treinados. Se alguém necessita de um atendimento de
emergência e não tem seis anos de aprendizado vai dizer: Sinto
muito mas não posso ajudar porque não estou completamente
preparado? Deveria optar por deixar morrer o paciente pela sua
noção equivocada de qualidade? Este conceito de qualidade está
totalmente divorciado da realidade. Os que promovem este
conceito de qualidade estão negando o fato de que na Venezuela
como no resto do mundo há universidades e universidades.
Inclusive, aparentemente ignoram o fato que agora é possível se
graduar pela internet. Onde está a qualidade neste caso? O tema
da qualidade é uma hipocrisia. Nesse caso, o oposto à qualidade
é a justiça. Sem justiça não há qualidade. Por conseguinte, a
qualidade não existe hoje na Venezuela. Se como professor
universitário, faço meus experimentos em laboratório esquecendo
que eles estão vinculados com as pessoas que estão do lado de
fora pode ser que o experimento seja perfeito, mas ilhado. Temos
concebido a natureza de maneira mais distinta, mais vinculada
com a prática mais relevante. O redesenho da Universidade
Bolivariana por exemplo, é uma universidade criada e modelada em
todos os sentidos sob os mais avançados conceitos de educação
universitária. Aí estão as bases da qualidade.
- No que o referendo contribuiu para a organização popular?
- O referendo nos deu uma estrutura organizacional: as unidades
de batalha eleitoral (UBE) e as "patrulhas" distribuídas
geograficamente. Esta é a célula básica da sociedade. Graças ao
referendo estas estruturas estão aí e fundamentalmente
vinculadas com todas as outras células básicas da comunidade
como o Bairro Adentro (programa de saúde nos bairros pobres). As
instituições públicas estão ilhadas entre si, mas a sociedade
deve estar relacionada entre si em uma rede geral. As UBEs e as
patrulhas podem fomentar essas redes. Podem atuar como os anexos
comunitários necessários entre os distintos elementos chaves
entre a sociedade e o Estado. Podem servir para pressionar em
prol da reestruturação do Estado. Se esta há de ser uma
revolução humanista, como acredito que deve seguir sendo, com
freqüência vai gerar a reação de alguns que a classificam como
utópica. Bom...é uma utopia... mas uma utopia concreta. Minha
hipótese sobre a utopía concreta é o tema da democracia
participativa.
- De que maneira têm sido efetivada a democracia participativa
nesse processo?
- A proposta de democracia participativa era verdadeiramente uma
utopia há 20 anos, porque a realidade venezuelana impedia
qualquer transferência de poder de cima para baixo. A democracia
participativa é para que cada cidadão participe do processo de
tomada de decisões. Para que possa se vincular em alguma missão
ou ter contato direto com cada ministério ou com algum serviço
público, sem a mediação de um partido político ou sindicato. É
criar essa relação direta. Se trata de um Estado praticamente
distribuído em todas as partes, que esteja praticamente em cada
cidadão. Quando como cidadão eu posso tomar decisões serei parte
do Estado. Essa utopia se interpreta como a presença do Estado
em cada um dos cidadãos. Não como método para controlar a
sociedade e sim como método para que a sociedade controle o
Estado. O Estado deve estar presente em cada cidadão, não para
se impor, e sim para que a sociedade se aproprie do Estado.
Acredito que este é um novo conceito.
*Claudia Jardim é jornalista Brasileira
Jonah Gindin is Canadian Journalist
http://www.alia2.net/article2121.html
https://www.alainet.org/es/node/110550
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