Adentro das veias da saúde pública venezuelana
28/09/2004
- Opinión
Uma casa rústica, semi-acabada, no meio do morro. Um lençol
divide o consultório e sala de atendimento. Raramente quem chega
precisa se identificar. "Como vai seo Antônio, a pressão
baixou?" diz a enfermeira venezuelana Carlota Núnez, de 53 anos.
Antônio passa, e pouco a pouco outros moradores da favela Las
Terrazas de Oropesa Castillo, municipio Sucre, Caracas, vão se
revezando na improvisada "sala de espera".
No consultório, um dos 11 mil médicos cubanos que integram o
programa de saúde Bairro Adentro prestam atendimento básico à
população. Controlar a pressão arterial, acalmar a crise dos
asmáticos, vacinar as crianças e, inclusive, realizar partos são
algumas das tarefas do médico Carlos Cordeiro, que atende em
média 25 pessoas por dia.
"Fazemos a medicina preventina. A idéia é que as pessoas
aprendam a viver melhor e que não necessitem recorrer aos
remédios", explica. Quando necessário, estão à disposição dos
moradores mais de 100 variedades de medicamentos trazidos de
Cuba, os quais são distribuídos gratuitamente.
O médico, de 31 anos que deixou a família em Cuba há 11 meses,
conta que o terreno onde se construiu o consultório foi doado
por uma moradora do bairro. "Tivemos que terminar de construir a
casa. Toda a comunidade ajudou. Um morador trouxe a mesa, outro
fez a maca, outro doou as cadeiras, os blocos e o cimento.
Estamos acostumados a trabalhar com pouco", diz Cordeiro, que
mora em um dos três cômodos da casa. "Atendo 24 horas por dia.
Se alguém necessita de auxílio Carlota (enfermeira) me chama e
vamos socorrer".
Esta é uma das faces do programa de saúde que nasceu do acordo
de cooperação entre Cuba e Venezuela que teve início em 2001. O
país, quarto maior exportador de petróleo do mundo, envia 53 mil
barris de petróleo por dia à ilha. Além do auxílio aos programas
de alfabetização do governo presidido por Hugo Chávez, Cuba
envia auxílio médico e medicamentos à Venezuela.
Devido a falta de tecnologia e de infra-estrutura adequada nos
hospitais públicos, cerca de 17 mil venezuelanos foram à ilha
realizar tratamentos e cirurgias oftamológicas e de
traumatologia.
Privatização da saúde
A exclusão e o elitismo também são enfermidades recorrentes há
décadas. A Venezuela é um dos exemplos do desmonte do sistema
público de saúde promovido pela avalanche neoliberal aplicada na
América Latina na década de 90. A aplicação das políticas de
privatização e da lógica de descentralização aniquilou as
possibilidades da manutenção dos hospitais públicos, substituído
pelo rentável mercado das clínicas privadas.
À população pobre, de poucos recursos financeiros restaram duas
alternativas: o pagamento de consultas médicas, que custam em
média 50 reais, ou dias na fila do hospital público, à espera de
atendimento. A privatização chegou a tal ponto que mesmo nas
unidades públicas os pacientes foram "acostumados" a pagar
pequenas quantias para serem atendidos, além de terem que arcar
com os gastos dos insumos utilizados pelos médicos.
"Antes tínhamos que sair de madrugada, arriscando a vida. Ficava
todo o dia na fila e muitas vezes voltava para a casa sem ser
atendida", conta Paula Paez, de 77 anos, que recebe a visita do
médico diariamente para o controle da pressão. "Aqui muita gente
morria porque falta de socorro. Se tinha a pressão alta, até
descer e tentar atendimento já era tarde, a pessoa enfartava",
comenta.
Doença dos ricos
O acesso à favela não é fácil. Para chegar, é preciso tomar os
velhos micro-ônibus e jipes que circulam pelas ruas estreitas e
ingrímes do morro. À noite as ruas são desertas e não há nenhum
tipo de transporte.
Em um cenário de exclusão, de precárias condições de vida e de
dificil acesso, os médicos venezuelanos "educados" sob a lógica
da saúde privada, não se aventuram à subir os morros para
atender à população. O presidente da Federação Médica
Venezuelana (FMV), Douglas Léon Natera, explica: "O governo
disse que não poderia garantir nossa segurança. Como vamos nos
meter no meio da favela onde há toda sorte de marginais?"
argumenta. Para ele, não é possível exercer sua profissão em
condições precárias. "Não existe essa história de que com um
estetoscópio se pode salvar vidas", afirma.
De acordo com dados do Ministério da Saúde, de abril de 2003 à
julho de 2004, foram salvas 16.485 vidas, 808 partos realizados
em um total de mais de 43 milhões de consultas do programa
Bairro Adentro.
Um dos argumentos da FMV para justificar a aversão ao programa
do governo, é que supostamente deixa de empregar os cerca de 11
mil médicos desempregados ou "sub-empregados", como qualifica
Natera, para empregar cubanos que segundo ele ganham 750 dólares
por mês para "pregar ideologia", diz Natera. No início do
programa, a campanha da oposição para expulsar os médicos do
país, entre outros argumentos, era a de que os cubanos vinham
"injetar comunismo" na veia da população.
Quanto ao pagamento desses profissionais, de acordo com o
Ministério, o governo cubano se encarrega do salário dos
médicos, que é entregue à família em Cuba, e o governo
venezuelano arca com a remuneração mensal de cerca de 600 reais
para gastos como alimentação e transporte.
O argumento do presidente da FMV para justificar a preferência
dos médicos em se manterem desempregados à se incorporar no
programa do governo é simples: "Não vamos nos submeter à essas
condições. O governo tem que equipar os hospitais e os
ambulatórios", afirma Natera.
A ausência do Estado nos hospitais públicos também é sentida
pela população. Apesar da presença dos médicos cubanos, que
reduziu em 25% as consultas regulares, quando os pacientes em
estado grave são encaminhados aos hospitais, têm de enfrentar a
precariedade. Faltam médicos e equipamentos.
Gustavo Salas, diretor do programa Gestão Cidadã que integra o
Bairro Adentro em Caracas, admite que muitos hospitais continuam
abandonados. A seu ver, uma das dificuldades do Estado em atuar
de maneira mais eficiente é a intensa disputa política do país.
"Nos Estados em que os prefeitos e governadores são de oposição
enfrentamos resistência e sabotagem para reformar os hospitais",
afirma.
No entanto, a reforma e a reequipagem dos hospitais não são
prioridades, até o momento, no atual programa de saúde. A
criação de pequenos consultórios no seio das periferias e das
chamadas clínicas populares é a principal estratégia do Bairro
Adentro. "Os hospitais estão longe dessas comunidades, por isso
damos preferência às clínicas que estão no pé dos morros",
explica Salas.
Mudança de rumos
O rechaço de grande parte dos médicos venezuelanos ao conceito
de medicina preventina que se pretende expandir no país é
justificável sob a ótica neoliberal. Reeducar a população para
prevenir doenças, significa caminhar na contramão dos interesses
do mercado farmacêutico e das clínicas privadas.
"Enfrentamos a resistência dos médicos que controlam o mercado
da saúde. Se conseguimos chegar à excelência no atendimento,
acabamos com o negócio deles", explica Diana Verdi, da
Coordenação dos Comitês de Saúde, que integra o grupo de 800
médicos venezuelanos que se incorporaram ao programa Bairro
Adentro.
As centenas de voluntários que integram os Comitês de Saúde
percorrem os bairros para facilitar o trabalho dos médicos, que
durante a tarde deixam os consultórios e se dedicam às visitas
domiciliares. "Precisamos educar para a saúde. Isso significa
planejamento familiar, boa alimentação e prática de esportes.
Isso faz parte de uma construção coletiva", diz Diana.
No centro dos bairros periféricos, o programa de saúde é mais
organizado e homogêneo. "Esse é o Bairro Adentro com maquiagem",
comenta Victor Navas, um dos voluntários do bairro que serve de
guia aos curiosos visitantes que pretendem ver os sucessos da
chamada revolução bolivariana na periferia. Diferente do
consultório do morro, semi-acabado e construído pela comunidade,
esse também em Sucre (município que abriga um milhão de
moradores) tem cara e cores oficiais. Foi construído e equipado
pelo governo.
No meio do pátio cercado de morros, um grupo de idosos faziam
exercícios, com pesos feitos de garrafa plástica cheia de areia,
liderados pelo médico que coordena a atividade três vezes por
semana. A poucos metros do grupo de novos "esportistas", uma
pequena fila. Homens, mulheres e crianças aguardavam o chamado
do dentista. "Começamos o tratamento há dois meses, quando o
dentista chegou. Antes, se tratávamos um não dava para cuidar do
outro. A consulta por aí custa caro", comenta Maria Albaron, mãe
de dois filhos. Uma visita a um dentista particular, em média
custa 30 reais (20 mil bolívares).
Há quatro meses foi incorporado ao programa atendimento
odontológico. De acordo com uma pesquisa nacional realizada pelo
governo, apenas 5,2% da população tinha os dentes em perfeito
estado. Para muitos, um dentista era figura desconhecida.
Atualmente o programa conta com 2. 493 odontologistas espalhados
pelo país.
Receita do Banco Mundial
Ainda que os 11 mil médicos que se negam a trabalhar nas
periferias resolvessem se incorporar ao programa de saúde,
apenas metade do problema estaria resolvido. De acordo com o ex-
ministro de Educação Superior, Hector Navarro, o déficit de
médicos em todo o país é de 20 mil profissionais. Cerca de 70%
da população carece de atendimento básico. "Temos uma crise
humanitária nas mãos", diz Navarro, justificando a necessidade
do auxílio médico oferecido por Cuba.
Assim como em outros áreas, o problema da saúde não pode ser
dissociado da estrutura de desenvolvimento econômico adotada
para o país. No anos 70, período do auge petroleiro, passou a
prevalecer a lógica da importação de bens de consumo. Assim, se
tornou "dispensável" o desenvolvimento industrial e tecnológico
e por conseqüência desnecessário avançar o nível de educação à
população. "À época, a orientação do Banco Mundial era que o
país utilizasse os recursos destinados à Universidade para
formação técnica. Era o máximo que se precisava", explica
Navarro.
Com a falta de investimentos e incentivo à formação superior,
apenas uma classe de privilegiados ingressavam à Universidade.
Nesse período, formaram-se grande parte dos atuais médicos
venezuelanos.
Uma das alternativas propostas pelo ministério de Educação
Superior que têm gerado polêmica nas universidades públicas de
medicina é a adoção de um novo modelo de ensino para capacitar
em menos tempo, novos profissionais da saúde. Hector Navarro
defende que em pouco mais de três anos é possível formar um
médico para o atendimento básico, "de guerra", nas áreas de
cirurgia e primeiros socorros. "A situação real exige a presença
de médicos treinados. Se alguém necessita de um atendimento de
emergência, e não tem seis anos de aprendizado vai optar por
deixar as pessoas morrerem, como tem acontecido", justifica.
Os setores que se opõem à proposta argumentam que é preciso
zelar pela qualidade do ensino. "Este conceito de qualidade está
totalmente divorciado da realidade e neste caso é uma
hipocrisia. O oposto à qualidade é a justiça. Sem justiça não há
qualidade", afirma Navarro.
Outra solução a médio prazo são os egressos da Escola
Latinoamericana de Medicina, de Havana, que abriga mais de sete
mil estudantes de todo o continente. O primeiro grupo de 500
novos médicos retorna ao país ao final deste ano. "À medida que
se formam novos médicos vamos substituindo os cubanos. Sabemos
que não podemos contar com essa ajuda por toda a vida", afirma o
ex-ministro.
https://www.alainet.org/es/node/110621
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