O governo Lula e a luta por um novo Brasil

29/09/2004
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Na abertura de sua Sessão anual, a Assembléia Geral da ONU de 2004 foi palco de uma grande contenda. De um lado, o senhor da guerra, George Bush isolado defendendo uma política condenada em todo o mundo, causadora de insegurança e instabilidade e ameaçadora da paz e segurança de todos os países e povos. De outro, uma ampla corrente de líderes defendendo a paz, a cooperação internacional, o desenvolvimento e uma nova ordem econômica e política internacional. Um dos chefes de Estado mais destacados nesse pólo foi o presidente brasileiro Luís Inácio Lula da Silva. Foi grande a repercussão do seu discurso e das ações que propôs de combate às desigualdades em contraponto à política de guerra. Toda vez que o presidente Lula faz pronunciamentos e gestos desse tipo, as forças progressistas internacionais voltam os olhos para o Brasil e se indagam sobre a natureza do processo político em curso no nosso país. Amigos estrangeiros solidários com as lutas do povo brasileiro nos indagam com insistência sobre se o saldo dessa primeira fase do governo Lula é positivo e sobre os rumos que tomará. Sem a pretensão de esclarecer todas as suas dúvidas, segue-se o que a meu ver sintetiza a experiência das esquerdas brasileiras no governo até agora. Decorridos quase dois anos desde a vitória eleitoral das esquerdas brasileiras lideradas por Luís Inácio Lula da Silva em 2002, a realização das mudanças políticas, econômicas e sociais que durante décadas motivaram as lutas do povo brasileiro, determinaram a eleição de Lula e estão inscritas na plataforma eleitoral, permanece na ordem do dia como necessidade fundamental e premente, mas de destino incerto, se temos presente a correlação de forças internacional e nacional, bem como a existência de visões diametralmente opostas quanto ao seu alcance no interior do governo e entre os partidos que compõem a ampla coalizão governamental. Ainda é cedo para fazer um balanço conclusivo sobre o governo do presidente Lula.. "Cantar vitória" quando ainda sequer chegamos à metade do mandato presidencial é uma veleidade que a esquerda conseqüente não se pode permitir. Vaticinar o fracasso é atitude niilista, hoje a pedra de toque da política da direita nacional, ainda desnorteada com a derrota que sofreu em 2002, e da ultra- esquerda inconseqüente e contra-revolucionária, que baseia sua ação política na frustração das expectativas das massas e na criação de um ambiente artificial propício a aventuras. Uma e outra postura estão fora da realidade e prejudicam a luta do povo brasileiro por sua emancipação nacional e social. As forças progressistas brasileiras e o movimento popular lutam para transformar o Brasil em meio a condições peculiares que lhes condicionam o ritmo. O contexto internacional é adverso, marcado ainda pelos pesados efeitos da derrota do socialismo na URSS e países do Leste europeu; pelo refluxo do movimento revolucionário no mundo; pela preponderância de uma política intervencionista e belicista da parte do imperialismo norte- americano - superpotência voraz e agressiva empenhada em impor seu domínio absoluto sobre países e povos -, pelo predomínio da globalização imperialista com as decorrentes políticas neoliberais e uma sem precedentes ofensiva contra os direitos dos trabalhadores e as soberanias nacionais dos países dependentes, a despeito da crescente luta de resistência que se observa em todo o mundo, fator de esperança e de impulso na busca de alternativas. Num quadro assim ainda desfavorável, como empreender mudanças, como mudar de rumos, como avançar no sentido das transformações estruturais, que são no fundo de natureza revolucionária, num país de dimensões continentais, política e socialmente complexo como o Brasil, numa realidade em que o governo foi conquistado através de uma vitória eleitoral e não da via revolucionária? As forças progressistas, entre estas os comunistas, estão tendo a oportunidade histórica de esboçar a resposta a questões tão agudas como essas não por meio de manuais, mas através do exercício da prática, da busca e adoção cotidiana de soluções a problemas concretos e de saídas políticas adequadas para as recorrentes disjuntivas que a situação comporta. A eleição de Lula resultou de uma conjugação de fatores objetivos e subjetivos, dentre os quais destacamos a falência do modelo neoliberal, a desagregação temporária do esquema político que dava sustentação ao governo do "professor" Cardoso, o alastramento do descontentamento das massas populares e a formação de uma ampla frente política-eleitoral, integrada por forças de esquerda, como o Partido dos Trabalhadores (força majoritária), de Lula, o Partido Comunista do Brasil (aliado de Lula desde a sua primeira candidatura em 1989), o Partido Socialista Brasileiro e forças de centro, como o Partido Liberal, do vice-presidente da República, entre outras. O resultado positivo do pleito presidencial não se reproduziu nas eleições para a Câmara, o Senado e os governos dos Estados, que na República federativa brasileira têm destacado papel político. O PT e seus aliados ganharam a Presidência da República, mas eram minoria nas duas casas congressuais e nos executivos dos entes federativos. Essa foi mais uma condição desfavorável que se acresceu às pré-existentes, impondo ao novo governo a formação de novas alianças, ainda mais amplas, para obter a necessária estabilidade política, o que se concretizou dividindo o campo oposicionista, atraindo para o lado do governo mais uma força centrista, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro, que compusera a base de sustentação do governo anterior. A importância de tal démarche pode ser medida em contraste com os agouros provenientes das forças derrotadas, incluindo aí boa dose de preconceito com a origem de classe e a trajetória política do presidente eleito, de que Lula não seria capaz sequer de dar os primeiros passos e sucumbiria às dificuldades. Dá-se assim no Brasil a circunstância peculiar de ter a esquerda chegado ao centro do poder da República, mas se ver impossibilitada de constituir um governo estritamente de esquerda. No lugar do governo neoliberal, antipopular, antidemocrático e antinacional encabeçado pelo "professor" Cardoso, constituiu-se um governo de ampla coalizão nacional, tendo por núcleo o PT e a liderança de Lula, integrado pelas forças progressistas e de centro. É a primeira vez desde o golpe militar de há 40 anos que surge no Brasil um governo com tal conformação de forças. Se com a amplitude o governo do presidente Lula alcançou estabilidade política, por outro lado o ritmo com que transita em relação às mudanças se tornou mais lento. Se com o governo de coalizão nacional, tem-se a possibilidade de resistir com mais segurança à ofensiva neoliberal, antidemocrática e anti-social em curso no mundo, de outra parte os compromissos com os setores políticos do centro, franjas das classes dominantes polarizadas por caciques partidários tradicionais, condicionam a forma, o caráter e o ritmo das reformas empreendidas pelo governo, algumas incompletas, outras confusas, outras tantas desnecessárias e contraditórias com o sentido progressista do governo e as aspirações nacionais e populares. Os comunistas têm caracterizado o governo do presidente Lula, desde a sua formação e desde que aceitaram o desafio de integrar o Ministério a convite do presidente, como um governo "em disputa", no qual convivem forças da mudança, portadoras de um projeto nacional de desenvolvimento com valorização do trabalho e justiça social, que abra caminho para a construção de uma nação soberana e progressista, e forças de acomodação ao modelo anterior, portadoras de um neoliberalismo mitigado, incapazes de conceber e praticar alternativas a um modelo que já deu provas de ser inservível ao país e por isso foi condenado não só historicamente, mas também nas urnas. Mas é insofismável que o governo Lula se destaca por seu caráter democrático e patriótico, bem assim pelos compromissos de resgate da justiça social. É com esses parâmetros que se deve avaliar o governo do presidente Lula no curto espaço de tempo decorrido desde a sua posse. O caráter democrático Na história da República brasileira, que em novembro de 2004 completa 115 anos, nunca houve tanta democracia nem tanto diálogo entre os movimentos populares e o mais alto mandatário da nação. Os sindicalistas, os estudantes, os pequenos agricultores, os camponeses sem terra, as mulheres, enfim, todos os segmentos da população brasileira têm no presidente Lula um interlocutor paciente. O governo reconhece no movimento social a força que o elegeu e, portanto, uma parte constitutiva fundamental da sua base de sustentação. Em quase dois anos de governo, a sensação geral é a de que repressão policial aos movimentos sociais é coisa do passado. Não é algo irrelevante num país em que a questão social sempre foi tratada como "caso de polícia", não raro como assunto militar, de segurança nacional. E não me refiro apenas aos antigos métodos da "velha República" ou das ditaduras que pontilharam a nossa história, mas ao próprio governo do Partido da Social Democracia Brasileira, do "professor" Cardoso, que autorizou a invasão de uma refinaria petrolífera em greve e perseguiu o movimento sindical com crueldade inimaginável em se tratando de um acadêmico da Sorbonne. Lula inaugurou um método de consultas aos setores organizados da sociedade que permite recolher e sistematizar propostas dos movimentos populares a fim de formatar políticas públicas. Assim, foram realizadas em um ano e meio de governo as conferências das Mulheres, dos Esportes, dos Direitos Humanos, das Cidades (que aborda temas como habitação e saneamento), da Saúde e da Juventude (esta organizada pela Câmara dos Deputados). São conferências precedidas de intenso debate e mobilização desde a base, nos municípios. A presença do presidente da República e dos ministros e funcionários das áreas sobre as quais se realiza a conferência, não inibe os delegados que, com a irreverência própria do brasileiro e a responsabilidade do representante de comunidades e movimentos sociais, não poupam o governo de críticas e não deixam de formular com clareza reivindicações e propostas. A existência de um governo democrático no Brasil é uma grande conquista, que vem amadurecendo desde o fim da ditadura em 1985, a realização da Assembléia Constituinte em 1987-88 e se consolida agora no governo de Lula. No Brasil, em 115 anos de República, tivemos apenas alguns hiatos de democracia. A regra têm sido os governos oligárquicos, ditatoriais, fascistas e mais recentemente condomínios de interesses da elite neoliberal e financista. A democracia é uma exceção. A política externa soberana Desde que em março de 2003, Lula despediu-se de Bush com um rotundo NÃO ao final de uma chamada telefônica que o presidente dos EUA fizera para pedir o apoio brasileiro à invasão do Iraque, foi dada a senha de que sensíveis mudanças começavam a operar-se também na política externa brasileira. Efetivamente, este é o setor em que o governo de Lula fez as melhores realizações. A política externa, conduzida com serenidade e habilidade pelo Ministério das Relações Exteriores, é o traço distintivo do governo Lula como um governo patriótico exercendo com responsabilidade a soberania nacional, num mundo conturbado, sob uma ordem internacional desequilibrada, injusta e ameaçadora. A ação do governo Lula em política externa tem sido a busca incessante de um novo lugar para o Brasil no mundo, consoante os anseios nacionais de paz, soberania e desenvolvimento. O Brasil não encontrará esse lugar viajando na ilharga das potências imperialistas, submetido a ditames de desigualdade e de políticas guerreiras, mas na companhia de sua vizinhança latino-americana, bem como dos países irmãos, pobres ou em vias de desenvolvimento da África, Ásia e Oriente Médio. Lula inaugurou uma nova diplomacia presidencial que trata as grandes potências de modo altaneiro, buscando ao mesmo tempo a diversificação das nossas relações segundo o entendimento de que uma ordem internacional marcada pelo unilateralismo não contribui para o progresso da humanidade nem muito menos para o desenvolvimento nacional. É grande o balanço de realizações nessa esfera: esforços para a integração da América Latina e fortalecimento do Mercosul; solidariedade a Cuba e à Venezuela; mitigação e protelação da ALCA; combate ao protecionismo dos países ricos, tendo na formação do G-20 durante a reunião da OMC em Cancun um momento alto; ajuda a países africanos e iniciativa de propor um debate mundial sobre o combate à pobreza. Não é pouca coisa, se consideramos que o Brasil tradicionalmente foi um país submisso ao imperialismo norte-americano. Também o exercício da soberania nacional é uma exceção na nossa história republicana O calcanhar de Aquiles Se a democracia e a política externa são os traços mais positivos do governo Lula até aqui e se o respaldo de que o presidente desfruta deriva da reafirmação que faz em seguidos discursos dos seus compromissos sociais, a orientação geral da política econômica apresenta-se como a grande debilidade. Claramente, o governo Lula fez em política econômica uma opção conservadora e até agora cedeu às pressões do FMI, da banca internacional e dos financistas locais. Agora, com os leves sinais de crescimento econômico que se manifestam este ano sobre uma base comprimida (uma recessão de –0,2% no ano passado), faz- se alarido pretendendo canonizar a política econômica como se os sinais de crescimento fossem uma decorrência desta. O governo ainda está prisioneiro da lógica anterior: gerar mais e mais superávits internos e externos para financiar o pagamento das dívidas interna e externa, e manter a taxa de juros em patamares elevados, além do câmbio flutuante com livre movimento de capitais, o que significa focar a dinâmica da economia nacional na remuneração elevada dos credores. É uma lógica perversa e anti-social, pois retira colossais recursos da economia produtiva transferindo-os para os monopolizadores do mercado financeiro, o que só se pode realizar retirando direitos sociais. Em pelo menos duas ocasiões, premido pelas condicionalidades dessa política econômica e cedendo aos ditames do FMI - que continua a monitorar a gestão da economia -, contando com o beneplácito de uma dócil equipe econômica liderada pelo ministro da Fazenda, Antônio Palocci, um ex- trotsquista convertido aos dogmas neoliberais – o governo de Lula forcejou a aprovação pelo Congresso Nacional (Câmara e Senado) de medidas antipopulares e anti-sociais, como a conclusão da reforma previdenciária iniciada pelo governo anterior e um aumento do salário mínimo muito aquém das expectativas e da própria capacidade de pagamento pelo governo, dado que na ocasião (segundo trimestre de 2004) registrava-se um aumento recorde nas receitas governamentais e, por conseguinte, no superávit fiscal, muito acima do que fora acordado com o FMI. Sob as mesmas pressões, são acelerados os preparativos nos quais estão implicadas cúpulas sindicais distanciadas dos interesses dos trabalhadores, para promover as reformas "sindical" e "trabalhista", que combinam de maneira ambígua algumas medidas democratizadoras e saneadoras da vida sindical com a inaceitável "flexibilização" da legislação laboral, eufemismo com que se pretende golpear direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores brasileiros. A política econômica posta em prática na primeira metade do primeiro mandato presidencial de Lula é incompatível com as necessidades de desenvolvimento nacional e de enfrentamento da gravíssima crise social brasileira. Com semelhante política econômica não venceremos a crise estrutural do país nem abriremos caminho para um desenvolvimento sustentado no longo prazo. Apontar novo rumo, percorrer caminho distinto que conduza a um novo modelo de desenvolvimento nacional com valorização do trabalho e justiça social é o grande desafio do governo progressista e reformador de Lula. Para isso, a par de reforçar a unidade entre as forças democráticas e progressistas que integram o governo, o principal desafio da esquerda conseqüente, nela incluído o Partido Comunista, é levar adiante a luta política e ideológica, em conjugação com as pressões democráticas e legítimas do movimento popular, firmar convicções sólidas de que se pode e se deve mudar, de que há alternativas ao neoliberalismo também no terreno econômico, mesmo que através de um percurso gradualista. A apreciação de momento que se pode fazer do governo Lula deve, assim, evitar os enfoques unívocos. Vivemos um momento inicial de uma transição que pode durar mais tempo do que esperávamos no momento em que celebrávamos a vitória. Há dificuldades visíveis, algumas de caráter objetivo, outras relacionadas com os horizontes estreitos e o caráter social-democrata da força partidária que dirige o processo e exerce hegemonia na coalizão governamental. Para a esquerda conseqüente, nomeadamente para os comunistas, o importante é não perder o rumo, ter coragem para dar os passos necessários e confiar em que da experiência que estamos vivendo no Brasil se poderá extrair valioso saldo positivo para o futuro da luta pela emancipação nacional e social do povo brasileiro. * José Reinaldo Carvalho é jornalista, vice-presidente nacional do Partido Comunista do Brasil, responsável pelas Relações Internacionais e diretor do Cebrapaz – Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz.
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