Ler um vídeo (Sexta parte): seis avanços
28/09/2004
- Opinión
Desde a época da colônia, os povos indígenas têm
sofrido condições de miséria extrema. Apesar de ter
sido a classe social que mais contribuiu na luta pela
independência, nas guerras de resistência contra as
invasões norte-americana e francesa e na revolução
mexicana (e, se me permitem, na atual democratização do
país - ainda que sejam os políticos e os meios e
comunicação a disputarem o protagonismo), as dívidas da
Nação para com eles não têm feito outra coisa a não ser
crescer. Se alguém tem colocado vida e morte para que
este país que se chama México pudesse se levantar como
nação soberana, livre e independente, têm sido os
indígenas.
Nenhum movimento se virava para ver como ficavam depois
dos triunfos ou das derrotas. Ganhasse quem ganhasse,
os povos indígenas perdiam. Quem lhes oferecia melhoras
acabava escravizando-os nas fazendas. Quem lhes
oferecia uma pátria livre, acabava colocando-os de
lado. Quem lhes oferecia democracia, acabava impondo-
lhes leis e governos. Mas sempre que esteve em jogo o
destino do México, os indígenas não duvidaram e
colocaram a única coisa que tinham: o seu sangue.
Da independência do México até agora já são quase 200
anos e há indígenas que trabalham e morrem em condições
semelhantes às da colônia. As terras que tinham lhes
foram tiradas, às vezes com violência, às vezes com
artifícios. A cor, a língua, a roupa, o "jeito", têm
sido motivo de vergonha, de gozação, de desprezo. O
nome de "indígena" tem sido usado como insulto, como
sinônimo de preguiçoso, de falta de inteligência, de
incapacidade, de submissão, de servilismo.
Depois de tanto, teria sido estranho que não se
levantassem em armas. Mas o fizeram. E apesar de ter
sido objeto de escárnio e desprezo pelos de pele
branca, não transformaram sua guerra numa guerra contra
uma cor. E apesar de terem sido objeto de enganos e
destino de mentiras por aqueles que falam "o espanhol",
não dirigiram sua guerra contra uma cultura. E apesar
de terem sido sempre os que servem nas casas daqueles
que tudo têm, não distribuíram destruição. Fizeram uma
guerra, a sua guerra. Ainda a fazem. Uma guerra contra
o esquecimento.
Este país tem sorte. Onde outros destroem, estes
indígenas constroem. Onde outros separam, eles juntam.
Onde outros excluem, eles incluem. Onde outros
esquecem, eles lembram. Onde outros são um peso para
todos, eles carregam, entre outras coisas, a nossa
história. E tem sorte o EZLN de ter sido agasalhado por
estes povos. Que se não...
Se alguém se voltasse para vê-los, veria seres humanos,
cheios de erros, defeitos, debilidades, quedas, enfim,
imperfeitos. E aí está o problema, porque se fossem
super-homens e supermulheres, bom, então se entenderia
o que fizeram. Mas como são como qualquer um, pois
então...como vou dizer isso?...pois, como se diz: "eu
também tenho que fazer alguma coisa...porque ninguém
vai fazer isso por mim".
É isso que fazem os povos zapatistas. Não esperam que o
governo distribua esmolas e discursos. Trabalham para
melhorar suas condições de vida e conseguem.
Paradoxalmente, suas condições ainda estão bem longe de
ser as ideais, são melhores do que as comunidades que
recebem "apoio" federal. E isso pode ser constatado ao
vivo e a cores (os vídeos, mesmo que sejam lidos, são
limitados), e se pode investigar.
É destas melhoras, que têm sido possíveis pelo
"terceiro ombro", que vou lhes falar agora. Tratarei de
não me estender muito (me proponho sempre a mesma coisa
e as páginas vêm como a chuva), mas convido vocês a
conhecer os detalhes nos informes de cada Junta e,
obviamente, visitando os Caracóis, as comunidades e
falando com os companheiros.
Saúde e educação.
Dois dos avanços têm sido nos campos da saúde e da
educação. Os "esquecimentos" dos vários governos
federais em relação a estes aspectos têm feito com que
"indígena" seja sinônimo de saúde ruim e de ignorância.
Graças ao apoio das pessoas das "sociedades civis", a
saúde das comunidades começou a dar uma guinada. Onde
havia morte, começa a ter vida. Onde havia ignorância
começa a ter conhecimento. Enfim, onde não havia nada,
começa a ter algo bom.
Em Los Altos de Chiapas, por exemplo, o sistema de
saúde proporciona atendimento médico gratuito e, até
onde chegam seus recursos, também o remédio é de graça.
Isso é possível por dois elementos: um é pelo apoio
econômico da sociedade civil que permite conseguir
equipes médicas e remédios. O outro é porque no lugar
de concentrar-se só em atender doenças, o sistema de
saúde visa, sobretudo, a medicina preventiva. O
objetivo é reduzir as doenças e, de conseqüência, o
consumo de remédios. Ainda que com dificuldades, o
serviço médico gratuito foi mantido ao longo de todo o
ano de funcionamento da Junta de Bom Governo em Los
Altos.
Nas cinco regiões onde atuam as Juntas de Bom Governo
se realizam campanhas de higiene, se promove o uso de
latrinas e da limpeza da casa. Também se fazem
campanhas, ainda que isso esteja só se generalizando,
para combater doenças crônicas (como a leshmaníase e a
úlcera de quem trabalha com o chicle), epidemias e para
detectar câncer na mulher. Para conseguir isso, além do
apoio econômico para projetos de saúde, há a ajuda
solidária (e, em não poucos casos, heróica) de médicos
e médicas especialistas e enfermeiras que, roubando o
tempo ao seu descanso, vêm para estas terras e
distribuem conhecimentos (a parteiras, "osseiras",
promotores de saúde e laboratoristas) e saúde a todas
as comunidades.
O terceiro ombro para levantar a vida.
Constroem-se clínicas regionais e municipais, se
equipam e se capacitam companheiros e companheiras para
que possam usá-los. Na região tojolabal, no dia
primeiro de agosto, foi realizada a primeira cirurgia e
está sendo equipado um laboratório para o processamento
de plantas medicinais. Em todas as regiões há farmácias
que são abastecidas com o dinheiro dos projetos e das
doações.
Em geral, pouco a pouco, as Juntas de Bom Governo vão
conseguindo que cada município autônomo tenha uma
estrutura básica de saúde comunitária: promotores de
saúde, campanhas de higiene, medicina preventiva,
ambulatórios, farmácias, clínicas regionais, médicos e
especialistas.
No que diz respeito à educação se procede como se
deveria proceder na política, ou seja, de baixo para
cima. Constroem-se escolas em todas as comunidades
(este ano foram mais de 50 em toda a região e ainda
faltam) e se equipam as que já existem (este ano foram
umas 300), se capacitam promotores de educação (que
participam de cursos de atualização), se levantam
centros de educação secundária (onde se ensinarão as
raízes históricas do México) e técnica.
Professores de escola e mestres de alvenaria,
especialistas em pedagogia, homens e mulheres com nomes
e rostos comuns, indígenas com e sem passamontanhas,
levantam escolas e conhecimentos onde antes só havia
ignorância.
Venham. Assim vocês poderão ver em várias comunidades
das várias regiões que tem aparecido uma clínica, uma
farmácia, uma escola, que há muita confusão porque uma
médica vai reexaminar as mulheres em função de suas
doenças, que "Mariya" já sabe escrever seu nome e pode
contar que os antigos mexicanos tinham uma cultura
muito avançada e agora quer ir à escola secundária
autônoma, resta saber se a mandam, que há um dentista
na clínica e vai arrancar e arrumar dentes, que lá há
uma festa porque chegaram quadros-negros, cadernos,
lápis e livros, que Lecho ia morrer, mas não morreu e-
que-isso-vai-demorar-o-tanto-que-seja-considerado-
normal, que a escola agora está bem alegre, que o
médico dos olhos já chegou, que Andulio está chiando
porque não encontra o seu lápis, que há um médico
pediatra que está explicando a um companheiro que o seu
trabalho não é curar os pés, que Uber diz "eu não fui"
e ninguém lhe perguntou se foi ele a pegar o lápis de
Andulio, que há um neurologista que ajuda um que está
mau da cabeça e desmaia, que vão vacinar as crianças,
que estes caminhões são para levar os promotores que
vão a um curso no Caracol e saber se o curso é de saúde
ou de educação porque "você vai ver que por aqui passam
uns e outros, que antes não era assim, não, que antes
se encontravam vacas e bois pelo caminho, não, não se
ofenda...ouça, e você não é daqui, não é mesmo?, se vê
logo, mas não se aflija que agora mesmo vou lhe
explicar, veja, lá em 1994 toda a indiada se levantou,
ou seja a plebe, como dizemos por aqui, e é que os
zapatistas e em seguida as sociedades civis e...ouça,
não quer um pozól?, porque a explicação vai demorar..."
Alimentação, terra, moradia.
Do urgente ao importante. O problema dos refugiados
(sobretudo, os de Polhó) é o que mais absorve a atenção
do bom governo em Los Altos de Chiapas. Dos quase 3
milhões e meio de Pesos que Oventik gastou, cerca de
dois milhões e meio foram destinados a Polhó. Mas não
só à alimentação. Foi construída e colocada pra
funcionar um pequeno mercadinho e uma cooperativa de
mulheres refugiadas.
O bom governo enxerga longe e avança no projeto de uma
bloqueria ("ou seja, é para fazer blocos de
construção", me explicam quando pergunto se é para
fazer cérebros de membros do gabinete de Fox - já havia
dito que para o do gabinete há "head hunters").
A fábrica de blocos pode realizar uma produção em
cadeia. Além de proporcionar uma renda para os
companheiros (que não podem se dirigir a seus trabalhos
pela ameaça dos paramilitares), reduzirá notavelmente o
preço do material de construção e se poderia ir
melhorando as casas. Bom, para isso ainda falta, mas a
"bloqueria" do Polhó já começa.
Para melhorar a alimentação de todos, nas cinco regiões
foram colocadas pra funcionar cooperativas de produção
de porcos ("não, não se produzem políticos", me
esclarecem antes que faça a pergunta de praxe),
galinhas, ovelhas (não, não são deputados do PAN
votando o desaforo de López Obrador" me dizem, e me vem
que agora sim não ia perguntar nada), frangos e gado
(ou seja vacas, mulas e um ou outro boi - sem ofender
ninguém), de hortaliças e de árvores frutíferas.
De La Garrucha informam que "em nossos municípios
autônomos têm sido capacitados os promotores de agro-
ecologia para que tenham experiência tanto em cuidar do
meio-ambiente, como em cuidar de animais, como vaciná-
los e fazer produzir melhor as terras recuperadas e
nisso temos avanços em cada município".
Realizam-se projetos de oficinas de sapataria, máquinas
descaroçadoras de arroz, de mecânica ("já consertamos o
trator, agora só falta a gasolina"), na região de La
Realidad um que é chamado "de tecnologia apropriada,
saúde da família, poupança energética e capacitação"
que, além de distribuir caixas d'água constrói fogões
que poupam lenha; em várias regiões, há oficinas de
serralharia, projetos de água potável, oficinas
têxteis, produção de colméias.
Assim, de vários flancos e com o apoio das "sociedades
civis" se melhoram a terra, a moradia e a alimentação.
Com palavras da selva: "até hoje temos melhorado um
pouco a alimentação graças às terras que foram
recuperadas das grandes fazendas, porque assim colhemos
mais milho e feijão, e os projetos de agro-ecologia.
Graças à nossa organização se conseguiu diminuir
grandemente o alcoolismo o que nos permitiu usar na
alimentação o pouco recurso que temos. Também pudemos
melhorar nossas casas ainda que pobremente, mas hoje
temos telhados melhores, a casa mais limpa, com sítios
mais amplos para poder plantar árvores frutíferas,
hortaliças, flores e ter os animais fora de casa".
Vinculada a essas três coisas está a comercialização.
Expulsam-se os "coiotes" com as bodegas regionais (na
região de La Realidad uma se chama "Tudo para todos" -
o que, na minha maneira de ver, é um convite ao saque -
, outra "O Caracolzinho", outra "Don Durito"; na região
de Morelia a chamam "central de abastecimento" e aí se
consegue café, panelas, artesanatos, bordados, panelas
de barro, velas, cestos, móveis - tudo produzido pelas
comunidades e a baixo preço -, em Roberto Barrios, as
bodegas regionais são três), que incluem no projeto a
compra de transportes para movimentar a mercadoria.
Assim, aumenta o número de cooperativas e de
refeitórios populares.
Os principais avanços da autonomia zapatista, na época
das Juntas de Bom Governo, têm a ver com a melhora das
condições de vida, sim, mas não só...
Governar e governar-se.
Talvez o avanço mais importante que vemos é que estamos
aprendendo a construir, não sem falhas e tropeços, um
bom governo:
"Aprendemos como resolver nossos problemas, como fazer
acordos com outras organizações e autoridades, e também
com nossas comunidades. Durante esse tempo aprendemos
muito como governar em cada município e vimos que assim
não é fácil que os maus governantes nos corrompam
porque aprendemos nossa forma de governo em esquema de
rodízio, com a experiência de todos e a vigilância como
guia. Ao longo do ano tem sido esta a grande
aprendizagem e não é fácil que nos comprem com um
refresco. Outra coisa que temos aprendido é a tratar
com gente de outras culturas e outros países...".
"Temos aprendido através do trabalho, resolvendo
problemas, de início estávamos nervosos, antes em cada
município se organizavam como eles queriam, agora,
todos os municípios juntos aprendemos a trabalhar
eqüitativamente, e aprendemos também a falar com outras
pessoas que não são da nossa organização. Sabemos que
não são nossos inimigos, o que acontece é que estão
enganados, mas vemos que pouco a pouco vão entendendo e
vão se aproximando de nós...".
"Cada autoridade municipal leva ao seu município o que
aprendeu na Junta, alguns de nós aprenderam a levantar
atas de acordos, elaborar projetos, manusear aparelhos
como computador, internet, copiadora, telefone e outros
aparelhos que estamos aprendendo a manusear...".
"Avaliamos que politicamente temos vantagens,
aprendemos a fazer o trabalho através do sacrifício. Há
mudança em relação à antes, cometemos erros, mas assim
vamos aprendendo pouco a pouco. As vantagens que vemos:
todos fomos governos, não tivemos nenhum líder, foi um
governo coletivo, assim nos ensinamos entre todos o que
cada um sabe, há uma distribuição eqüitativa dos
projetos, chegaram organizações sociais que procuram
nosso atendimento quando seus problemas não são
resolvidos...".
"Na Junta de Bom Governo não precisamos de tradutor
porque há gente de línguas diferentes, assim pode
chegar qualquer pessoa, seja ela tzeltal, tzotzil,
tojolabal ou que fale espanhol, podemos nos entender
com nossa própria língua...".
Foram estes os avanços que vimos e sentimos em um ano
das Juntas de Bom Governo. Mas que tal que eu esteja
soltando a minha mentira, que tal achar que só falo
disso para que pensem que melhoramos. Por isso digo a
vocês que venham, que andem pelos povoados e agora sim
coloquem som e imagem a esse vídeo...
(a continuar...)
Das montanhas do Sudeste Mexicano.
Subcomandante Insurgente Marcos. México, agosto de 2004. 20 e 10.
Subcomandante Insurgente Marcos. México, agosto de 2004. 20 e 10.
https://www.alainet.org/es/node/110652
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