A velocidade do sonho (Segunda parte): sapatos, tênis, chinelos, sandálias e sapatilhas
25/10/2004
- Opinión
Setembro é o nono mês do ano, e, lá em cima, a lua tem uma
barriga de grávida. E até fica um pouco vermelha quando se
deixa cair sobre o ocidente. A chuva e as nuvens quiseram se
aproximar, mas, preguiçosas, ficaram atrás da montanha, esta
que se ergue a oriente. Lá em baixo, no gravadorzinho, Tânia
Libertad canta a música que diz "não vão impedir (...),
apesar do outono crescemos". Confundindo-se entre as
sombras, a sombra escreve uma carta. Depois do "Exército
Zapatista etcetera", e da data, setembro de 2004, se lê...
Para: Pierluigi Sullo
Direção da revista semanal Carta.
Itália, continente europeu, planeta Terra.
Pedro Luis, irmão:
Receba um abraço das montanhas do sudeste mexicano. Suponho
que vai estranhar o "Pedro Luis", mas é que fiquei
contagiado pela "forma" dos companheiros "zapatizar" os
nomes, assim coloco Pedro Luis no lugar de "Pierluigi".
Bom, recebi a carta que você escreveu e não mandou. Ou seja,
recebi a carta na Carta. Explico-me: acontece que primeiro
me mandaram uma fotocópia da carta que apareceu em Carta (26
de agosto - 1° de setembro de 2004, ano VI, número 31). Como
o meu italiano não dá sequer para se parecer com o
"italianhol" dos "turbineiros e turbineiras" (que dois anos
atrás trabalharam, e duro, para dar luz a La Realidad), tive
que pedir que alguém fizesse o favor de traduzi-la. E o
fizeram, só que numa língua que aqui chamamos de
"itazapanhol" que, se não me falha a memória, foi inaugurada
por Vanessa quando, sempre desobediente, ficou anos vivendo
na realidade zapatista. Sendo assim, tive que recorrer a
alguns dicionários que nos haviam enviado faz tempo (não me
lembro muito bem, acho que foi Mantovani ou Alfio). Para
isso, tivemos antes que procurar e encontrar os dicionários,
que, como era de se esperar, estavam nivelando o pé de uma
das mesas de um dos comandos gerais do único ezetaelene.
Talvez esteja enganado, mas cheguei a entender que o
objetivo da sua carta é saudar-nos...e colocar problemas.
Segundo minha humilde opinião, o gênero epistolar é um dos
melhores meios para o debate (outro, melhor ainda, é a
prática política).
Você não diz isso abertamente, mas qualquer um pode perceber
que, no fundo, a sua carta coloca, agora da Itália rebelde,
o mesmo problema da velocidade do sonho. E mesmo não
declarando isso explicitamente, da Itália que luta, ou seja,
que sonha, você também responde: "não sei".
Bom, aos problemas que coloca eu poderia responder com o
axioma do inefável do grande (no ego) Don Durito de la
Lacandona: "Não há problema suficientemente grande que não
possa ser contornado".
Mesmo parecendo uma receita excelente (em mais de uma
ocasião me proporcionou bons resultados), acho que o que
você coloca não procura uma solução, mas sim uma discussão.
O "que fazer na Itália?" é, de fato, um problema. Na minha
maneira de ver é parte do problema "o que fazer no mundo?".
Bom, a nossa resposta como zapatistas è... "não sabemos".
Eu sei que, conhecendo-nos como você nos conhece, você não
esperava outra coisa de nós. Contudo, a partir da nossa
terra e da nossa luta podemos dizer o seguinte:
Primeiro. No México de hoje, todos os políticos, mesmo
aqueles que estão am alta nas pesquisas, nas manchetes dos
noticiários ou no número de manifestantes, sem ligar para a
cor da retórica que levantam ou para o símbolo de sua
organização política, contarão com a áspera desconfiança de
nós zapatistas, com nosso ceticismo e nossa incredulidade.
Baseados unicamente em suas palavras, promessas, intenções,
números, estatísticas, estudos de opinião, não obterão de
nós absolutamente nada de bom. Nada, nem sequer o benefício
da dúvida. Como o chefe do Exército Libertador do Sul,
general Emiliano Zapata, diante de Francisco I. Madero, a
nossa hostilidade em relação aos políticos de centro será
invariavelmente a norma; e, como Emiliano Zapata diante da
cadeira presidencial, continuaremos dando as costas ao
Palácio Nacional e aos que aspiram a sentar-se nesta
cadeira. E o mesmo vale para o autodenominado "Congresso da
União" e o circense Poder Judiciário da Federação.
Segundo. No caso específico dos partidos políticos que se
autoproclamam de esquerda e têm registro [legal] no México
(e que, não se deve esquecer, não são as únicas organizações
políticas de esquerda que existem em nosso país), não
podemos deixar de sorrir com amargura quando seus
funcionários de partido, governantes, deputados, senadores e
periquitos contratados jogam na cara de Vicente Fox o
descumprimento de sua promessa de campanha de resolver o
"problema" de Chiapas em 15 minutos. Não esquecemos que os
que fazem esta crítica são os mesmos que votaram a favor de
uma lei que, além de não cumprir um ato de justiça
elementar, contrapunha-se fundamentalmente ao clamor dos
povos indígenas do México, e de milhões de pessoas em nosso
país e em outros lugares do planeta.
São os mesmos que fortalecem grupos paramilitares para
hostilizar e agredir as comunidades zapatistas. São os
mesmos que se empenham em parecer agradáveis a uma direita
(chame-se ela de alta hierarquia eclesial ou empresarial)
que, é preciso dizê-lo, não sente nenhum atração por eles.
São os mesmos que carregam, debaixo do braço, os planos
econômicos e policiais esboçados no board directory da
cobiça internacional.
Mesmo assim, não podemos respaldar com o nosso silêncio as
sujeiras jurídicas com as quais se pretende impedir que quem
encabeça o governo da Cidade do México se apresente em 2006
para disputar a Presidência do país. Parece-nos que se trata
de uma ação ilegítima, mal abrigada em falácias legais, que
atenta contra o direito dos mexicanos de dizer se um ou
outro ou ninguém é governo. A concretização de tamanha
traição significaria, nem mais, nem mais, a invalidação do
artigo 39 da Constituição mexicana, que consagra o direito
do povo de decidir a sua forma de governo. Seria, para falar
isso em termos simples, um golpe de Estado "brando".
Ao assinalar isso, não nos colocamos do lado de uma pessoa e
nem de um projeto de governo. Muito menos se traduz no apoio
a um partido que não só não é de esquerda e nem é
progressista e que tampouco é republicano. Colocamo-nos,
pura e simplesmente, do lado da história de luta do nosso
povo.
Terceiro. As eleições passam, os governos passam. A
resistência fica como é, mais uma alternativa para a
humanidade e contra e neoliberalismo. Nada mais, mas nada
menos.
Contudo, coerentes com a aversão que professamos para os
dogmas, admitiremos sempre que podemos estar equivocados e
que poderia acontecer, de fato, como pregam agora os caga-
tintas da moda, ser necessário, urgente, imprescindível,
entregar-se incondicionalmente nos braços de quem, lá de
cima, promete mudanças que se podem conseguir somente a
partir de baixo.
Podemos estar equivocados. Quando nos dermos conta porque a
dura realidade atravessa o nosso caminho, seremos os
primeiros a reconhecer este equívoco diante de todos,
próximos e contrários. Será assim porque, entre outras
coisas, nós acreditamos que a honestidade diante do espelho
é necessária para todos aqueles que, com a palavra ou de
fato, se comprometem com a construção de um mundo novo.
Todavia, nós colocamos a vida em nossos acertos e em nossos
equívocos. Creio sinceramente que, desde a madrugada de
primeiro de janeiro de 1994, ganhamos o direito a decidir
nós mesmos o nosso passo, sua cadência, sua velocidade, sua
companhia contínua ou esporádica, suas estações e,
sobretudo, o seu destino. Não cederemos este direito.
Estamos dispostos a morrer para defendê-lo.
Quarto. Continuaremos fazendo o que acreditamos que é o
nosso dever. E isso sem ligar para o rating que venham a ter
nossas ações, para o lugar que ocuparemos nos noticiários,
ou para as ameaças e profecias que, de um e do outro lado do
espectro político, se preocupam em receitar-nos toda vez que
não fazemos o que querem que façamos ou que não dizemos o
que querem que digamos (coisa que acontece o tempo todo).
Não nos uniremos à gritaria histérica da classe política, e
de seus fans nas colunas de "análise política". O que
pretendem impor, sempre de cima, é uma agenda que não tem
nada a ver com o que acontece aqui em baixo no nosso país, a
saber, o desmantelamento implacável dos fundamentos da
soberania nacional.
Tampouco estapearemos o calendário para que 2006 adiante sua
incerteza, sua feira de vaidades, seu cínico esbanjamento de
recursos e estupidez. Muito menos será nosso guia de ação o
daqueles que exigem de nós que ponhamos os nomes de presos,
desaparecidos e mortos, enquanto eles põem os nomes nas
listas múltiplas [das eleições].
Quinto. Isso não quer dizer que não estejamos ouvindo.
Fazemos isso e continuaremos a fazê-lo. Palavras de alento e
de crítica chegam até nós de todos os lugares do mundo,
junto a conselhos e admoestações, adesões e repúdios.
Ouvimos tudo e o guardamos no coração coletivo que somos.
Qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo pode ter certeza
de que nós zapatistas a ouviremos.
Mas uma coisa é ouvir e outra é obedecer.
As "polêmicas" sobre se nós zapatistas somos revolucionários
ou reformistas, lights ou heavys, ingênuos ou maliciosos,
bons ou maus, nos deixam indiferentes e, como os mosquitos
nas longas noites das montanhas do sudeste mexicano, não são
o que nos tira o sono.
Nas terras zapatistas não mandam as transnacionais, nem o
FMI, nem o Banco Mundial, nem o imperialismo, nem o império,
nem os governos de um ou outro símbolo. Aqui são as
comunidades a tomar as decisões fundamentais. Não sei como
isso se chama. Nós o chamamos "zapatismo".
Mas o nosso não é um território liberado, nem uma comuna
utópica. Tampouco o laboratório experimental de um
despropósito ou o paraíso da esquerda órfã.
Este é um território rebelde, em resistência, invadido por
dezenas de milhares de soldados federais, policiais,
serviços de inteligência, espiões de várias nações
"desenvolvidas", funcionários que trabalham na contra-
insurreição e oportunistas de todo tipo. Um território
composto por dezenas de milhares de indígenas mexicanos
acossados, perseguidos, hostilizados, atacados por se negar
a deixar de ser indígenas, mexicanos e seres humanos, ou
seja, cidadãos do mundo.
Sexto. No resto do planeta, a nossa ignorância é
enciclopédica (de fato, ocuparia mais volumes do que as
obras completas da palavra externa e interna dos
neozapatistas, a qual, diga-se de passagem, é abundante) e
pouco ou nada podemos dizer sobre organizações políticas de
esquerda que lutam ou dizem lutar sob outros céus.
Aí, como em toda parte, preferimos olhar pra baixo, para
movimentos e tendências de resistência e de construção de
alternativas. Só nos viramos para olhar pra cima quando uma
mão de baixo aponta para lá.
Sétimo. Com nossas grosserias ou acertos, definições ou
aspectos vagos, estamos tratando, só tratando, mas colocando
a vida nisso, de construir uma alternativa. Cheia de
imperfeições e sempre incompleta, mas uma alternativa nossa.
Se chegamos até onde chegamos não foi, contudo, por nossa
única capacidade ou decisão, mas sim pelo apoio de homens e
mulheres do mundo inteiro que compreenderam que nestas
terras não há um montão de necessitados ávidos por esmolas
ou lástima, mas sim seres humanos que, como eles e elas,
anseiam e trabalham por um mundo melhor, um mundo onde
caibam todos os mundos.
Acho que tamanho esforço merece a simpatia e o apoio de toda
pessoa honesta e nobre no mundo.
E acredito que, na maioria das vezes, este apoio encontra
sua versão mais afortunada na luta que empreendem ou mantêm
em suas respectivas realidades, seja qual for sua cultura,
língua, bandeira, tipo de calçado, sapato, tênis, chinelo,
sandália ou sapatilha.
Neste sentido, na nossa geografia, estão mais perto das
comunidades zapatistas realidades que os mapas apontam como
distantes.
Assim, está mais perto de nós a Europa de baixo: a Itália
desobediente e da autogestão; a Grécia que se comunica com
sinais de fumaça; a França dos chinelos, dos sem documentos
e sem teto, mas com dignidade; a Espanha insurreta e
solidária; o Euzkal Herria que resiste e não se rende; a
Alemanha rebelde; a Suíça comprometida; a Dinamarca
companheira; a Suécia perseverante; a Noruega conseqüente; a
Pátria negada aos kurdos; a Europa marginal na qual sofrem
os imigrantes; toda a Europa dos jovens que se negam a
comprar ações nas bolsas do cinismo...e as mulheres
mexicanas indígenas mazahuas.
Rebeldias e resistências que sentimos mais próximas do que
as intermináveis distâncias que nos separam da soberba
cidade de San Cristóbal de las Casas e dos partidos
políticos que falam com a esquerda e agem com a direita.
Bom, companheiro Pedro Luis, por enquanto é tudo. Acredite
que não lamento se, com o que te escrevo corro o risco "de
ser julgado com alguém que está delirando, que não vê a
realidade". Seja como for, continua pendente o problema
fundamental, a saber, o de esclarecer qual é a velocidade do
sonho.
Enquanto se resolve, recebe um abraço e da próxima vez que
for escrever, mande, além da carta em Carta, uma tradução,
mesmo que seja em "italianhol".
Valeu. Saúde, e que a gritaria de cima não impeça de ouvir o
murmúrio de baixo.
(a continuar...)
Das montanhas do sudeste mexicano
Subcomandante Insurgente Marcos.
México, setembro de 2004, 20 e 10.
https://www.alainet.org/es/node/110763
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