Um alerta perturbador

30/10/2004
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Quem poderia imaginar que muitos cidadãos norte-americanos estivessem preocupados, em vésperas de eleições, com a possibilidade de fraude eleitoral, uma patologia usualmente atribuída às frágeis democracias do chamado Terceiro Mundo? A primeira e mais importante democracia da época moderna, que durante dois séculos pretendeu ser o exemplo a seguir por todo o mundo, atravessa, de facto, uma crise profunda. A democracia americana sofre de três problemas estruturais. O primeiro problema é o colégio eleitoral. Os EUA é dos poucos países onde os cidadãos não elegem directamente o Presidente da República; elegem um colégio eleitoral, constituído por 537 "grandes eleitores" a quem compete eleger o presidente. Assim, um candidato pode ganhar o voto popular e perder as eleições. Foi o que aconteceu em 2000: apesar de 50.996.039 eleitores terem votado em Al Gore e 50.456.141 em Bush, este último ganhou com o voto de 271 grandes eleitores contra os 266 do adversário. Este sistema aliena os cidadãos, não surpreendendo que os EUA sejam o país desenvolvido com as maiores taxas de abstenção. O segundo problema é a estrutura descentralizada do processo eleitoral, variando de estado para estado, o regime de inscrição nos cadernos eleitorais e o equipamento, modo de votar e a verificacao da regularidade do acto eleitoral. So no estado da Pennsylvania ha cinco modos diferentes de votar. A ausência de uniformidade torna mais difícil a fiscalização, para não falar da justiça eleitoral. O terceiro problema prende-se com o financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais que permite aos grandes interesses económicos interferir a tal ponto na escolha e na sorte dos candidatos e na produção legislativa do Congresso que só não se fala de corrupção porque ela está legalizada. Sobretudo o segundo e o terceiro problema tornam o sistema vulnerável ao erro e à manipulação legal e ilegal. Exemplo da primeira é a lei que proíbe os ex-presidiários de votar, uma lei antiga, promulgada com o objectivo de impedir os negros de votar, e que este ano retirará o voto a 5 milhões de cidadãos, alguns dos quais saíram da prisão há várias décadas. Mas o foco principal da preocupação dos democratas norte-americanos é a manipulação ilegal. Está hoje provado que houve fraude eleitoral no estado da Florida em 2000. Muito provavelmente Bush não foi eleito; foi, sim, escolhido pelo Tribunal Supremo ante a passividade do Senado. Ora o que aconteceu na Florida em 2000 pode acontecer lá e noutros estados em 2004. A fraude pode assim assumir várias formas: intimidação ou mesmo impedimento de votar; anulação irregular de votos; viciação dos programas electrónicos de contagem de votos; impossibilidade de recontagem de votos pela ausência de boletins de voto em papel. A fraude mais recentemente denunciada consiste no plano de interrogar sistematicamente, no dia das eleicoes, os novos recenseados oriundos de minorias etnicas sobre possiveis irregularidades do recenseamento. O objectivo e\' intimidar ou desencorajar alguns de votar ou atrasar a sua chegada `as mesas de voto de modo a que, quando confrontados com o comprimento da fila, desistam de o fazer. A um observador estrangeiro pode causar surpresa este nivel de disputa eleitoral e o recurso a tacticas desesperadas para condicionar o resultado de uma eleicao onde, segundo os criteiros politicos europeus ou latinoamericanos, um candidato se posiciona no centro-direita( Kerry) e o outro na direita- extrema direita (Bush). A verdade e\' que, em termos de politica interna, esta\' muito negocio em causa para a industria militar ( o orcamento militar para combater o actual eixo do mal e o provavelmente proximo: Castro, Chavez, Lula e Kirchner), medico-farmaceutica ( impedir os consumidores de se organizarem para fazer baixar os precos dos servicos e medicamentos ou importa-los da Europa ou do Canada), energetica ( eliminando o que ainda resta da regulacao e proteccao ambiental) e para o capital financeiro ( a privatizacao da previdencia e do sistema de aposentacoes). Nao deixa de ser ironico que o Carter Center, tao diligente em fiscalizar a regularidade das eleicoes em tantas democracias "problematicas" por esse modo fora, assista impassivel ou impotente aos problemas da democracia caseira. Apesar disso, nao parece que desta vez seja possivel cometer a fraude com a mesma desfacatez do passado. Perante o facto de ser o campo republicano o suspeito de cometer fraude, o partido democrático solicitou a presença de observadores internacionais para fiscalizar a regularidade das eleições e o mesmo foi feito por importantes organizacoes nao-governamentais dos EUA. Para mim, contudo, o mais significativo e\' o movimento que se esta\' a gerar na sociedade norte-americana, sobretudo entre os jovens, no sentido de proteger as eleições contra a fraude: são inúmeras as páginas de Web com informações sobre as fraudes e o modo de as detectar; estão a ser treinados cerca de 25.000 voluntários, dos quais 5.000 advogados, para fiscalizar as mesas de voto; estão a ser instaladas linhas telefónicas para onde podem ser denunciadas as suspeitas de fraude. Entretanto, foi criado um "conselho consultivo para as eleições justas", o qual, se houver fraude nas eleições, accionará a "rede de resposta urgente" destinada a mobilizar os cidadãos por todo o país em defesa da democracia. Este movimento é perturbador, mas é, ao mesmo tempo, encorajador porque revela um novo fôlego democrático na pátria doente da democracia.
https://www.alainet.org/es/node/110823
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