Procurador diz que poder público deve ser responsabilizado por não investigar denúncias contra fazendeiro

Massacre anunciado deixa 5 mortos

24/11/2004
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O filho da trabalhadora sem-terra Edilene, grávida de seis meses, ainda não nasceu, mas já está condenado a conviver com a dor da impunidade no campo brasileiro. No dia 20, ao meio-dia, 18 pistoleiros contratados pelo fazendeiro Adriano Chafik Luedy executaram a sangue frio seu pai, Iraguiar Ferreira da Silva, seu avô, Joaquim José dos Santos, e seu tio, Miguel José dos Santos. Os assassinos também tiraram a vida de mais dois amigos de seu pai: os trabalhadores Juvenal Jorge da Silva e Francisco Nascimento Rocha. No mesmo atentado, mais de vinte pessoas ficaram feridas, entre elas uma criança de 12 anos. Não satisfeito, o bando ateou fogo aos barracos e expulsou as cem famílias do acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) Terra Prometida, em Felisburgo, região do Vale do Jequitinhonha, uma das mais pobres de Minas Gerais. Engana-se quem pensa que essa tragédia foi uma surpresa na delegacia do município de Jequitinhonha, responsável pela apuração dos crimes na região. A polícia local estava muito bem informada a respeito das insistentes ameaças que as famílias sem-terra sofriam há mais de dois anos. Luedy, entretanto, se sentia tão à vontade diante do poder policial que não deixou de intimidar os trabalhadores mesmo após ter sido aberto um inquérito para apurar indícios de que organizava uma milícia armada. Massacre anunciado "Os trabalhadores foram mortos por omissão do poder público", denuncia o procurador de Justiça Afonso Henrique de Miranda, coordenador do Centro de Apoio Operacional de Conflitos Agrário do Ministério Público de Minas Gerais. Miranda foi um dos primeiros a receber um documento encaminhado pelos sem-terra e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) aos órgãos públicos, em 2002, relatando as ameaças de Luedy contra os trabalhadores. Em função desses alertas, um inquérito foi aberto na delegacia de Jequitinhonha. "Por diversas vezes, eu fiz ofícios solicitando informações sobre o inquérito e pedindo que a polícia agilizasse o processo", relata Miranda. O procurador repassou uma cópia de um desses ofícios com exclusividade ao Brasil de Fato. Porém, a polícia não ouviu os alertas dos trabalhadores. Segundo o procurador, as investigações só prosseguiam quando havia pressão externa. Para ele, o assassinato dos cinco trabalhadores é a comprovação da negligência. "O inquérito foi falho. Se tivesse sido feito com rigorosidade, os assassinatos não teriam ocorrido. A quadrilha já estava toda identificada e cabia até um pedido de prisão provisória, mas nada disso foi feito", explica o procurador, acrescentando que vai recomendar às famílias das vítimas que ingressem com ação na Justiça para responsabilizar o Estado pelos assassinatos. Impunidade "O governo de Aécio Neves tem total responsabilidade pelo massacre", avalia Marcilene Ferreira, agente pastoral da CPT, que encaminhou a denúncia para os órgãos públicos. A chacina não foi a primeira ação armada comandada pelo fazendeiro. Em pelo menos duas outras ocasiões, os pistoleiros atiraram em barracos para os sem-terra deixarem a área. "Nós chamávamos a polícia, que vinha até o local e eles iam embora. Mas algumas horas depois os pistoleiros voltavam", conta o acampado Paulo Paixão. Segundo ele, em uma dessas oportunidades, os sem-terra capturaram dois cavalos carregados de munição. "Entregamos tudo para a polícia. Para nossa surpresa, alguns dias depois os cavalos haviam sido devolvidos para os pistoleiros", lembra Paixão. Marcilene garante que essa situação era de conhecimento geral na região de Felisburgo, um dos locais onde há mais atuação de jagunços. A CPT já fez diversas denúncias sobre a ação de milícias armadas em Minas Gerais, organizadas por articulações como a União de Defesa da Propriedade (UDP). "O massacre poderia ter sido evitado. Por isso, estamos mais revoltados ainda. O Estado não tem compromisso com a reforma agrária e não age de forma efetiva quando recebe uma denúncia, colocando em risco a vida dos camponeses", diz Marcilene (veja reportagem ao lado). Luedy só comandou o massacre de sem-terra porque se sentiu protegido. "Já havia inquérito em andamento e nenhuma providência foi tomada. Essas pessoas não acreditam que o poder público vai agir contra os poderosos", avalia o procurador Afonso Miranda. Esperança Os trabalhadores sem-terra e as organizações progressistas do campo prometem não deixar o caso virar mais um exemplo de impunidade. Em solidariedade, outros acampados do MST bloquearam três rodovias, em Minas Gerais. "Exigimos punição imediata dos responsáveis e caso isso não ocorra vamos fazer mais mobilizações", promete Ademar Ludwig, da direção estadual do MST. Os trabalhadores tentam marcar uma reunião com o governador Aécio Neves (PSDB). Enquanto isso, as famílias expulsas pelos pistoleiros estão retornando ao acampamento. "Nós vamos levantar nossas barracas de novo. Há um sentimento muito grande de revolta e indignação com o que ocorreu", conta Paixão. Até o fechamento desta edição, dia 23, quatro pistoleiros tinham sido presos e a polícia mineira procurava o fazendeiro e seu primo, acusados de serem mandantes do crime. A Secretaria de Defesa do Estado de Defesa Social e Segurança Pública não quis comentar as críticas à condução do inquérito policial. (Colaborou João Peschanski). Descaso com a reforma agrária O massacre dos trabalhadores do acampamento de Terra Prometida não foi uma exceção, mas o ápice de uma situação de impunidade e descaso com a reforma agrária. Estima-se que o Estado de Minas Gerais tenha 500 mil famílias sem terras. Dessas, cerca de 15 mil vivem, hoje, em acampamentos, a metade organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Um estudo da Universidade Federal de Ouro Preto apontou que existem, no Estado, 11 milhões de hectares de terras devolutas, ou seja, que pertencem ao Estado. Mas se há áreas públicas e agricultores sem terra, por que a reforma agrária não sai? "Minas Gerais tem grande potencial de assentamentos, mas o governo do Estado não age com rapidez para arrecadar as áreas devolutas e a Justiça é lenta para julgar os processos", analisa Ademar Ludwig, da direção estadual do MST. A morosidade do poder judiciário aumenta o drama das famílias sem-terra. Na fazenda Ponte Nova, em Betim, por exemplo, 60 famílias estão acampadas desde 1999 a espera de uma decisão judicial. Nessa área, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) fez a vistoria e considerou o terreno apropriado para se viabilizar um assentamento. Depois, o então presidente Fernando Henrique Cardoso deu um decreto autorizando a desapropriação e o caso seguiu para o poder judiciário. Há cinco anos, o juiz pegou o processo e até o momento não deu continuidade. "Há uma conivência da Justiça para não liberar esses processos", diz Ludwig. Marcos Helênio Pena, superintendente do Incra em Minas Gerais, concorda com as avaliações. "O processo de reforma agrária é lento porque há entraves no campo administrativo. O poder judiciário é conservador, por isso é preciso criar varas agrárias. No legislativo, tudo favorece os fazendeiros", afirma Pena. (JPF e JP). Entidades denunciam omissão à ONU Em carta para Asma Jahangir, do Centro de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), com data de 22 de novembro, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Terra de Direitos e o Centro de Justiça Global condenaram a omissão do governo estadual na investigação das denúncias contra a ação de milícias em Felisburgo (MG), onde foram assassinados cinco trabalhadores rurais, dia 20. Leia abaixo principais trechos da carta. "Em 20 de novembro, as cerca de 200 famílias de trabalhadores sem-terra, do acampamento Terra Prometida, em Felisburgo (MG), no local desde 1º de maio de 2002, foram atacadas por um grupo de cerca de 18 pistoleiros, coordenados por Adriano Chafik Luedy e seu primo. A CPT e o MST vêm denunciando as ameaças sofridas pelos trabalhadores há mais de dois anos. Em 24 de setembro de 2002, a CPT encaminhou ofício a diversos órgãos públicos, como o Instituto de Terras de Minas Gerais (Iter) e à Secretaria Estadual de Segurança Pública, denunciando que pistoleiros estavam ameaçando as famílias acampadas na fazenda. Porém, apesar de todos os pedidos, a omissão dos poderes públicos e a morosidade das investigações acabaram permitindo o massacre. Esse crime, absolutamente inaceitável, revela que a lentidão do projeto de reforma agrária no Brasil tem causado um clima de terror no campo. O MST, a CPT, a Terra de Direitos e o Centro de Justiça Global estão extremamente preocupados com o clima de violência e terror no campo, bem como com a impotência ou relutância das autoridades em contê-las, e temendo que mais uma vez prevaleça a falta de apuração dos fatos, vêm comunicar V. Exa. das execuções sumárias ocorridas no Estado de Minas Gerais, Brasil". Repercussão A longa história de impunidade para os que cometem violações a direitos humanos e outros atos de violência contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e outras organizações rurais é uma das causas dos assassinatos do dia 20. Condenamos o ataque e exigimos que as autoridades investiguem imediatamente, levando os responsáveis para julgamento. Anistia Internacional, em nota oficial O novo sangue derramado dos nossos irmãos da Terra Prometida clama ao Céu e clama às autoridades estaduais e federais. Cada vez mais a demora na reforma agrária está se tornando cúmplice. Não podemos permitir que mais este sangue fique infecundo. Dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia (MT) Em hipótese alguma haverá impunidade. Um crime bárbaro, uma violência inaceitável. Estamos falando de cidadãos brasileiros que estavam acampados, com autorização judicial e que foram brutalmente agredidos. Todo o acompanhamento será feito de tal forma que nós possamos, em um prazo muito rápido, identificar e responsabilizar os criminosos. Miguel Rossetto, ministro do Desenvolvimento Agrário * Jorge Pereira Filho. Brasil de Fato.
https://www.alainet.org/es/node/110944
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