A cara do governo Lula
13/12/2004
- Opinión
Aos dois anos, o governo Lula ganhou fisionomia
permanente. Pode vir a haver modificações, porém
dificilmente elas serão substanciais. As opções essenciais
feitas pelo governo indicam os rumos do governo pelo menos
no seu mandato atual – seja pelas declarações de Lula,
seja pelo peso determinante que a equipe econômica – e, em
particular, o principal ministro do governo, Antonio
Palocci – tem dentro do governo.
Essa fisionomia tem na política econômica seu eixo
fundamental. Foi ao longo do primeiro ano que o governo
passou dos argumentos iniciais – manutenção da política
econômica porque "não se muda de médico durante uma
doença", porque a "herança maldita" recebida não
permitiria uma ruptura imediata, porque se tratava de uma
política de transição – para assumi-la como permanente,
conforme as palavras do próprio Palocci. Uma das
características do segundo ano do governo Lula foi a
assunção da política econômica atual como permanente.
Os eventuais questionamentos à política de Palocci se
enfraqueceram com os golpes sofridos pela imagem de José
Dirceu – eventual pólo de divergências - como efeito das
denúncias conhecidas como "caso Valdomiro", logo no início
de 2004. Enfraqueceram-se igualmente conforme foi se
criando, ao longo do ano, um clima de otimismo econômico,
a partir da previsão de crescimento de 4, de 4,5 e depois
até mesmo de mais de 5% no ano, com aumento da criação de
empregos formais e de expansão do mercado interno.
A autonomização nas decisões sobre a taxa de juros e as
discussões sobre o nível do salário mínimo, foram
indicadores claros de que a equipe econômica – e o Banco
Central em particular – têm força própria para definir as
orientações econômicas, assim como se constituem em
filtros até mesmo para a determinação do salário mínimo.
Este episódio foi um dos que marcaram o segundo ano do
governo Lula, pela simbologia que têm uma decisão como
essa, especialmente em um governo presidido por um ex
líder sindical, que se notabilizou por dirigir um
movimento de base que rompeu com a rigidez da política
salarial da ditadura militar.
Depois das reformas previdenciária e tributária, no
primeiro ano de governo, o governo chegou a anunciar as
reformas trabalhista, universitária, dos partidos
políticos, mas seja o enfraquecimento das bases internas
do governo, seja o ano eleitoral, seja também as
dificuldades para conseguir apoio e coesão nas propostas,
acabaram fazendo com que o governo não avançasse. O mesmo
aconteceu com a anunciada proposta de autonomia do Banco
Central, que encontrou oposição forte dentro do próprio
PT, mas a atuação desse banco não demonstrou necessitar
dessa decisão para se autonomizar. Diante de acusações ao
presidente do Banco Central, o governo conseguiu impor sua
blindagem, para o que teve que estende-la aos outros
presidentes anteriores do banco.
Depois de uma reforma tributária inócua em termos de
distribuição de renda – em um país com as brutais
desigualdades sociais que o caracterizam -, o governo
passou a apostar nas chamadas Parcerias Público-Privado
(PPP), como alternativa para obter recursos para os
investimentos. Isto ocorre porque a manutenção de
superávit fiscal superior ao solicitado pelo FMI impede
que o governo possa dispor de recursos para impulsionar o
desenvolvimento. O governo aposta em um financiamento que
só poderia concorrer com os investimentos nas bolsas de
valores, oferecendo tais vantagens, que representariam um
novo passo na privatização do Estado.
As eleições municipais acabaram sendo o acontecimento
político mais importante do segundo ano do governo Lula,
seja pela medição da popularidade do governo e da força do
PT e da oposição, seja pelo novo quadro político que
passou a projetar, na perspectiva das eleições
presidenciais, de governadores e parlamentares de 2006 –
em particular pelo tema da reeleição de Lula. Os balanços
não podem deixar de constatar a derrota política do
governo e o enfraquecimento do PT, assim como os
resultados que a oposição conseguiu obter, com o oxigênio
que recebeu das crises governamentais, vitaminada também
pelos resultados eleitorais.
Do ponto de vista político pode-se dizer que o fato mais
importante do segundo ano do governo Lula foi o
fortalecimento da oposição ao governo, correlato do
enfraquecimento do governo. Enquanto no primeiro ano se
esboçou uma oposição de esquerda, quem acabou encontrando
espaço para se afirmar foi a oposição de direita. O
enfraquecimento do governo se deu pelo fracasso na
capacidade de pôr em práticas políticas sociais
eficientes, em elevar de forma significativa o salário
mínimo, em manter e ampliar sua base de apoio partidário,
a proliferação de denuncias de corrupção dentro do
governo, as derrotas eleitorais – especialmente em São
Paulo e Porto Alegre -, além da incapacidade em avançar na
reforma agrária, das posições totalmente conflitantes com
os movimentos ecológicos.
A direita tradicional, centrada no eixo de alianças
partidárias do governo de FHC – PSDB-PFL -, que havia
perdido iniciativa e audiência, reapareceu com força a
partir das denuncias do caso Valdomiro e ganhou confiança,
confirmada pelos resultados eleitorais. Seus porta-vozes,
antes reduzidos a Jorge Bornhausen e a Tasso Jereissatti,
voltaram a ocupar espaços generosos na imprensa, a começar
pelo próprio FHC. Se antes não queriam antecipar o debate
presidencial, quando Lula parecia franco favorito, agora
articulam candidaturas – até mesmo a de César Maia -, se
deram conta, especialmente pelas eleições de São Paulo,
que podem derrotar o PT e Lula. Polarizam pela direita,
aguçam as críticas às políticas sociais do governo, ao
tratamento ao MST, multiplicam as denúncias, ao mesmo
tempo que distinguem a política econômica, exaltada sempre
por eles e pela grande mídia, como que a dizer que o que é
resgatável no governo Lula veio de FHC.
O ressurgimento de um pólo de oposição de direita ao
governo, animado pelos resultados eleitorais e pela
incapacidade do governo de mobilizar setores de massa em
seu apoio, levou também a um enfraquecimento da base de
apoio partidária ao governo federal. A estratégia de fazer
do PMDB o aliado mais importante do PT no governo – no que
a direção deste havia caracterizado como uma aliança de
centro-esquerda (sic) – fracassou, com a maioria desse
partido participando com o pólo opositor nas eleições
municipais e manifestando claramente seu desejo de retirar
o apoio ao governo. O mesmo aconteceu com o pequeno PPS –
ex-partido comunista – que rompeu com o governo e
formalizou sua aliança com o eixo PSDB-PFL.
Como resultado, o governo terá grandes dificuldades na
Câmara e mais ainda no Senado, para fazer aprovar suas
iniciativas. E o governo começa a pensar na estratégia da
campanha de reeleição de Lula com um cenário partidário
negativo – que se não é determinante no voto popular, pelo
menos diminui o tempo gratuito na televisão. A reunião do
ministério de Lula para comemorar a metade do governo e
projetar as ações de 2005 foi marcada pelo tom de euforia
com a situação econômica por parte de Lula e uma série de
medidas que pretendem concentrar os investimentos na
infra-estrutura para tentar dar um impulso mais longo à
expansão atual da economia, assim como uma série de
medidas nas áreas de educação, saúde e previdência social,
para tentar fortalecer os programas sociais do governo.
Incluem-se entre essas medidas um salário mínimo superior
à inflação e com data anterior ao prevista originalmente,
assim como um reajuste da tabela do imposto de renda,
destinado a favorecer os setores médios – considerados
como os que mais deram apoio à oposição nas eleições
municipais.
A esquerda foi derrotada nas eleições, tanto pelas
candidaturas que, de alguma forma, a representavam –
especialmente Porto Alegre, Belém, Caxias, Campinas -,
como porque a polarização passou a ser feita contra o
governo Lula pela direita. A tendência à dispersão se
acentuou, tanto pela fundação do PSOL, sem que este
conseguisse canalizar o amplo descontentamento com o
governo Lula, como pela tendência a desfiliação da CUT por
parte de alguns sindicatos, o que aumentaria a dispersão,
pela inexistência de outro pólo de agrupação. As
tendências de esquerda dentro do PT também revelam
fraturas internas, bloqueando sua capacidade de polarizar
o debate pela esquerda dentro do governo ou pelo menos
dentro do PT.
Para a esquerda, o problema não se reduz à avaliação do
governo Lula e as previsões sobre seus desdobramentos
futuros. Mais importante é o tema da afirmação do perfil
da esquerda, dentro e fora do governo, dentro e fora do
PT, no movimento social e nas outras forças políticas.
Trata-se de definir as melhores vias de acumulação de
forças da esquerda. As diferenças principais não se dado
entre o nível de críticas e de expectativas em relação ao
governo Lula, mas sobre as formas de acumulação de forças.
Há a proposta de ruptura com o governo e com o PT, cujo
melhor exemplo é o PSOL, ainda que deva-se incluir o PSTU
e as forças sindicais que se propõem a se desfiliar da
CUT. O movimento inicial é claro: denuncia do caráter
assumido pelo governo Lula e proposta de um espaço de
acumulação externo ao governo e ao PT, contra o governo
Lula e contra o PT. Se o primeiro passo é claro, o segundo
apresenta problemas, principalmente quando a proposta
inicial de construção de um fórum que abrigasse a todos os
setores de esquerda críticos foi substituída pela de
construção imediata de um partido, talvez condicionada
pelo calendário eleitoral. Esse passo é menos claro, tanto
porque a formação de um partido não é um ato, mas um longo
processo – como a própria história do PT demonstra -,
assim como porque dividiu, separou, distanciou os
descontentes situados dentro e fora do PT ou em outros
partidos, ao invés de uni-los. Definiu um caminho claro –
a construção de outra força -, mas de forma redutiva. Suas
dificuldades e limitações ficaram claras durante a
campanha eleitoral de 2004, assim como no desaparecimento
de posições de esquerda no debate político nacional –
restrito a artigos esparsos na mídia.
Iniciativa importante foi tomada pela OAB, com o apoio
da CNBB, mediante a apresentação do projeto de iniciativa
popular, que propõe a utilização de plebiscitos e
referendos populares para questões essenciais – de acordos
comerciais a temas de importância estratégica, como a
privatização de empresas. Esta iniciativa, além de
permitir resgatar instrumentos de convocação para a
participação popular, utilizados até aqui pelo movimento
popular de forma autonomia – sobre a dívida externa e
sobre a Alca/Mercosul -, tem tido um papel importante em
paises como a Itália e o Uruguai e podem abrir espaço para
a retomada de iniciativa por parte da esquerda.
Aos dois anos do governo Lula, com hegemonia liberal na
política econômica e nos discursos governamentais, a
esquerda precisa afirmar um espaço e uma identidade
próprias. Uma das vias pode ser um plebiscito sobre a
política econômica e a convocação à formação de uma frente
antineoliberal – que não seja apenas de negação dessa
política, mas também de formulação de uma perspectiva
alternativa. Esse pólo pode aglutinar todos os
descontentes com os rumos atuais do governo, cruzando
setores de vários partidos, dos movimentos sociais e do
próprio governo, com a formação de uma banca parlamentar
de vários partidos e de uma coordenação de movimentos
sociais para defender essa plataforma.
https://www.alainet.org/es/node/111039
Del mismo autor
- Hay que derrotar políticamente a los militares brasileños 07/04/2022
- China y Trump se fortalecen 04/03/2022
- Pandemia e Ucrânia aceleram decadência da hegemonia norte-americana no mundo 28/02/2022
- Pandemia y Ucrania aceleran la decadencia de la hegemonía norteamericana en el mundo 28/02/2022
- La anti-política generó la fuerza de extrema derecha 22/02/2022
- Las responsabilidades del PT 10/02/2022
- Estados Unidos, más aislado que nunca en América Latina 03/02/2022
- Memoria y olvido en Brasil 27/01/2022
- 2022: tiempos decisivos para Brasil y Colombia 05/01/2022
- Brasil: una historia hecha de pactos de élite 18/12/2021
Clasificado en
Clasificado en:
