América Latina 2004/2005
17/01/2005
- Opinión
Em um ano que teve a eleição da Frente Ampla para a presidência do Uruguai, a confirmação da
orientação econômica conservadora do governo Lula no Brasil, a derrubada do governo de Aristide
no Haiti e a intervenção de tropas estrangeiras, o fato político mais importante foi a vitória de Hugo
Chavez no referendo venezuelano. Para se imaginar a importância dessa vitória, basta levar em
conta dois aspectos: que euforia teria dado à política de Bush e de Uribe na América Latina, caso a
oposição tivesse ganho; e, por outro lado, o fortalecimento da imagem de Hugo Chavez desde essa
vitória – para nos darmos conta do significado do triunfo do governo no referendo.
A prioridade da Alca ou do Mercosul deve ser um dos temas definidores do futuro da América
Latina em 2005. O calendário eleitoral deixa para 2006 os novos prazos eleitorais – em países como
o Brasil, o México, o Chile (neste país, na realidade, em dezembro de 2005) -, fazendo de 2005 um
ano de consolidação e/ou transformações estruturais e de mobilizações sociais e políticas, que
definirão o novo quadro institucional do continente.
1. O ano foi de expansão econômica para o continente, pela combinação do crescimento
internacional e de preços favoráveis para os produtos de exportação – essenciais para um continente
que foi se reafirmando cada vez mais como primário exportador -, além da forte recuperação da
economia da Venezuela. No entanto, esses fatores – que não prometem se repetir da mesma maneira
em 2005 – não se refletiram no plano social, porque a taxa de desemprego praticamente não foi
alterada – em grande parte pela precarização das relações de trabalho, acentuando a tendência a
salários baixos e jornadas cada vez mais longas -, a capacidade interna de consumo popular não se
ampliou e os conflitos sociais mantiveram sua tendência a aumentar.
Acelerou-se o processo de reinserção do continente no mercado internacional como exportador de
matérias primas – em que a soja segue avançando, assim como o agronegócio -, em detrimento de
uma pauta exportadora mais qualificada, com lugar crescente para produtos industrializados – como
o modelo desenvolvimentista de décadas anteriores havia propiciado. O Mercosul, ao invés de
avançar, valendo-se da incapacidade do governo estadunidense para fazer concessões do seu
mercado interno que promovessem a Alca, devido às eleições internas, ao contrário, retrocedeu,
corroído pelos interesses corporativos de grandes grupos industriais do Brasil e da Argentina. Se
avizinha nova ofensiva da Alca, contando sempre com os setores que, vivendo da exportação, são
favoráveis a essa alternativa subordinada de integração, debilitando mais ainda o Mercosul, que
volta a passar por um momento crítico. Pode-se prever que 2005 será o momento da verdade para o
Mercosul e, por extensão, para a Alca.
No plano econômico, se confirmou a tendência de políticas como a brasileira e a argentina – de
manutenção do modelo neoliberal, acrescido de políticas sociais compensatórias -, que parece se
repetir no Uruguai. O crescimento econômico brasileiro – depois de dois anos de estagnação – dá
novo alento a essa política e à ilusão de que ela pode ser compatível com melhoria nas condições
sociais de vida da massa da população. A criação de cerca de um milhão de empregos formais novos
no Brasil – em grande parte como subproduto das políticas exportadoras, especialmente do
agronegócio – deu a impressão que a política econômica de ajuste fiscal passaria a conseguir efeitos
sociais significativos, porém a disposição do governo Lula de anunciar o aumento do salário mínimo
já em dezembro – com efeito para maio -, confirma como o achatamento salarial existente inibe
fortemente a capacidade de consumo das camadas populares.
A designação de Danilo Astori como ministro da economia por Tabaré Vasquez, no Uruguai,
consolida a tendência ao continuísmo econômico em governos eleitos por partidos de esquerda na
América Latina e as primeiras medidas anunciadas pelo novo governo confirmam essa tendência a
tomar a moderada posição do governo brasileiro como orientação. As negociações do governo
Kirchner com o FMI vão em uma direção distinta no que se refere à dívida externa, mas no resto seu
governo não destoa dessa linha hegemônica atualmente no continente.
Constitui-se assim um grupo de governo moderados, que tem no Brasil, na Argentina e no Uruguai
seu eixo e que pode contar, à sua direita, com a Bolívia, o Paraguai, o Peru, e à sua esquerda a
Venezuela e Cuba, mas cujos destinos não ficam claros, diante das posições conciliadoras do
governo brasileiro no plano econômico diante de Washington. A prioridade da Alca ou do Mercosul
é um dos temas que vai definir o futuro das alianças no continente.
2. O segundo mandato Bush deve representar o aprofundamento das tendências atuais da política
estadunidense, em um marco de baixo perfil dentro do conjunto das políticas imperiais. A Colômbia,
diante do enfraquecimento irreversível do governo de Vicente Fox no México, passa a ser o grande
aliado estratégico do governo Bush no continente, assim como os governos de Cuba e da Venezuela,
seus grandes inimigos. Um elemento importante dessa política se concentra no esforço –
aparentemente bem sucedido – de Álvaro Uribe para introduzir a reeleição e conseguir estender seu
mandato por mais quatro anos, na busca da consolidação da sua política de militarização do conflito
colombiana e fortalecendo-se como eixo privilegiado da política do governo Bush para a América
Latina.
O esforço maior dos Estados Unidos nos próximos anos deve estar concentrado nas tentativas de
consolidar a hegemonia neoliberal no continente – especialmente mediante a Alca e os acordos
bilaterais -, que terminariam de amarrar o continente às políticas de Washington, do FMI, das
grandes corporações multinacionais e do Banco Mundial. Neste plano o acordo mais significativo
assinado em 2004 foi aquele entre os EUA e o Chile, pelo caráter paradigmático que tem, com o país
andino renunciando a qualquer tipo de regulação em qualquer plano – seja em contratos de trabalho,
em exploração do meio ambiente ou dos recursos naturais – que afete o chamado “livre comércio”,
comprometendo gravemente a soberania de um dos países da América Latina que havia contado
com um Estado capaz de assegurar direitos fundamentais para grande parte da sua população no
passado.
3. Os inimigos fundamentais do governo Bush seguirão sendo Cuba e Venezuela, com políticas
diferenciadas para cada um desses paises. Fortalecido pela reeleição, Bush tentará apertar o cerco a
Cuba, em continuação com as medidas tomadas em plena campanha eleitoral, de acentuação do
bloqueio econômico – restrição do envio de dólares dos familiares, das visitas de parentes, etc. -,
combinada com o aumento da retórica de terrorismo militar – com declarações, como as já
realizadas por um assessor seu, de que Cuba e não o Irã seriam as próximas miras de Washington
nos próximos quatro anos.
No caso da Venezuela, o peso da questão petrolífera – da necessidade de importação cada vez maior
por parte dos EUA, assim pela tendência à elevação do preço do barril do petróleo – faz com que o
governo Bush tenha que ser levado a posições mais cautelosas, de relações aparentemente normais
no plano político, mas de incentivo às forças opositoras, tanto as partidárias, quanto especialmente
aos monopólios privados da mídia. O tema da Venezuela deve ser tema de grandes debates no
governo Bush, sem que contem com uma linha de ação mais ou menos clara no próximo período. O
certo é que os EUA voltarão à carga contra o governo de Hugo Chavez, tentando minar seu apoio
nas FFAA – dada a incapacidade de promover uma desestabilização econômica e do
enfraquecimento de gerar um clima de desordem interno, ainda que este continua a ser um dos
elementos com que conta a oposição.
Hugo Chavez sai fortalecido de 2004, depois de fazer a acertada aposta de aceitar o desafio do
referendo, ganhando tempo para intensificar suas políticas sociais e fortalecer sua base popular de
apoio. No entanto, se chocará com a ausência de um instrumento político de direção do processo,
que repousa quase que totalmente na sua capacidade de liderança e de direção estratégica do
processo. A ausência de quadros em quantidade suficiente e de uma estrutura partidária que possa
promover a consolidação política, ideológica e organizativa do movimento, assim como a presença
de elementos oportunistas dentro da estrutura do movimento e do governo, colocam dúvidas sobre a
capacidade do governo de aproveitar o novo espaço conseguido pelo referendo. É no plano político
que se decide o futuro de um processo que se consolida no apoio social e que tem tido na evolução
ideológica de Hugo Chavez horizontes firmes para a sua consolidação.
Cuba voltou a sofrer problemas combinados de seca, furacões e efeitos do endurecimento do
bloqueio estadunidense, mas apesar disso – ou justamente por estes últimos -, decidiu restringir a
circulação do dólar, buscando coibir a política de dupla moeda. Ao mesmo tempo, o triunfo de Hugo
Chavez permite consolidar o intercâmbio entre os dois países – um exemplo de “comércio justo” –
em que Cuba recebe abastecimento de petróleo e envia técnicos em educação, em saúde pública e
em esportes, o que permitiu, entre outras coisas, que a Venezuela cumprisse com as metas da
Unesco na luta contra o analfabetismo.
4. O Brasil apostou em um perigoso jogo de projeção de liderança regional e de candidatura a uma
vaga permanente no Conselho de Segurança, mandando tropas para o Haiti, para substituir as tropas
invasoras dos EUA e da França, que havia derrubado o regime de Aristide, convencendo a
Argentina, o Chile e o Uruguai a fazer o mesmo. A intervenção – como se podia plenamente esperar
– assumiu um caráter puramente militar, sem recursos suficientes nem sequer para essas atividades,
sem o envio de tropas de outros países e, principalmente, sem missões no plano social, que
atendessem o principal problema do país – a miséria material. Rapidamente o próprio governo
brasileiro se dá conta que está tirando a castanha com a mão do gato, mas agora já está lá, com
eleições de difícil realização – somente possíveis no modelo das realizadas no Afeganistão e
prometidas para o Iraque, sob tutela militar e, no caso do Haiti, proibindo a candidatura de Aristide e
a participação de seu partido – e sem condições de atender as necessidades básicas da população.
A simpatia inicial – reforçada pelo o jogo da seleção brasileira de futebol – foi substituída
pela hostilidade e se produzem cada vez mais regularmente enfrentamentos armados que envolvem
as tropas de ocupação, com mortes de civis haitianos. A operação ameaça descamba par ao seu
oposto, com um papel repressivo do Brasil e dos outros países, incapazes de distinguir-se das tropas
que originalmente haviam destituído a Aristide. O problema deve chegar a limites de crise aberta em
2005, exigindo decisões difíceis de tomas pelos governos que enviaram tropas, mas que ao mesmo
tempo não tem soluções de recambio para poderem se safar da armadilha em que se meteram.
5. O movimento de luta antineoliberal teve nas mobilizações na Bolívia um de seus pontos mais
fortes durante 2004, com a luta pela nacionalização da produção de gás, que acabou encontrando a
esquerda desse país dividida – entre as centrais indígenas e camponesas e o MAS, partido político
dirigido por Evo Morales. O movimento social equatoriano, por sua vez, seguiu sentindo os efeitos
do apoio dado na campanha eleitoral de 2002 a Lucio Gutierrez e a rápida ruptura com seu governo,
com divisões internas que enfraquecem as centrais camponesas e indígenas. Na Argentina, o
movimento social surgido do movimento de dezembro de 2001, igualmente sofre uma divisão em
torno do apoio ou da oposição frontal ao governo Kirchner e da contra-ofensiva de forças
conservadoras, que buscam assimilar as mobilizações dos piqueteiros a atividades criminais. No
Brasil, depois de grandes mobilizações no primeiro ano do governo Lula, contra as contra-reformas
propostas pelo governo, 2004 representou uma baixa nesse clima.
No México, os ataques à candidatura de Lopez Obrador – candidato do PRD, favorito à presidência
do país, foram respondidas com a maior manifestação em vários anos, que fortaleceram essa
candidatura.
No seu conjunto, não foi um ano favorável às mobilizações populares, em meio às
orientações assumidas pelos governos de Lula, de Kirchner e daquelas anunciadas pelo de Tabaré
Vazques. Oposições de direita reapareceram no Brasil e na Argentina, enquanto na Venezuela a
derrota da direita incentiva o fortalecimento das organizações populares. Mas a expansão econômica
pode favorecer as mobilizações dos trabalhadores no Brasil e na Argentina.
Dos avanços na constituição de frente nacionais antineoliberais, da capacidade de construir
plataformas que unam a todos os setores interessados nessa luta e de mobiliza-los, depende o
movimento popular em 2005. A luta contra a Alca e por um Mercosul alternativo deve estar no
centro dessa luta no novo ano.
https://www.alainet.org/es/node/111073
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