O tsunami nosso de cada dia
03/02/2005
- Opinión
Agora que a tragédia da Ásia vai deixando melancolicamente
o noticiário, pode ser apropriada uma comparação com a
realidade brasileira, principalmente quando se realiza no
sul do país o Fórum Social Mundial.
A catástrofe produzida pelos tsunamis nos mostrou, entre
tantas histórias de dor, que o mundo está pronto para
reagir e estender a mão diante de situações-limite. As
manifestações de solidariedade, a ajuda das nações e os
milhares de voluntários que se puseram em ação para dar
suporte às vítimas das regiões afetadas são a prova de que
ainda estamos sensíveis às desgraças alheias, ao menos
quando tomam grandes dimensões. O mesmo, entretanto,
lamentavelmente, não se pode dizer das tragédias que
permeiam o dia-a-dia da sociedade. Dramas como o da pobreza,
que vão se acumulando aqui e ali, produzindo vítimas no
varejo, sem alarde, mesmo que em proporções intoleráveis,
não têm a mesma capacidade de provocar reações vigorosas de
solidariedade.
Relatório da ONU divulgado recentemente nos dá uma dimensão
crua da questão. Segundo a instituição, a pobreza produz em
escala planetária o efeito de um tsunami a cada cinco dias.
Isso mesmo. Sem ondas gigantes, sem grandes ataques de
fúria da natureza, sem barulho, sem estrondo, sem a
cobertura da mídia, milhares morrem no mundo antes que se
complete o ciclo de uma semana, em conseqüência das mazelas
associadas à falta de recursos. Passados 365 dias do ano,
é como se tivéssemos enfrentado 68 eventos iguais ao que
se abateu sobre os países asiáticos, sem que notemos o fato.
A pobreza parece mesmo se tornar invisível aos olhos da
coletividade. Passamos diante dela diariamente, travamos
contato com seus personagens, conhecemos suas estatísticas,
resvalamos em seus efeitos, mas não conseguimos reagir em
conjunto para vencê-la, ou mesmo para atenuá-la.
Examinemos o caso do Brasil, por exemplo. Outro relatório
da ONU, também divulgado neste mês de janeiro, nos mostrou
que temos 13 bolsões de miséria no país. Cerca de 26
milhões de brasileiros vivem em 600 municípios onde o
estado de pobreza é semelhante ao registrado em Uganda, na
África (país que ocupa a 147º posição no ranking do Índice
de Desenvolvimento Humano da ONU).
É uma tragédia que mereceria mobilização social igual a que
assistimos no caso da Ásia. Empresas, cidadãos comuns,
entidades de classe e outros atores sociais, deveriam olhar
para esta informação e se perguntar: o que podemos fazer
para transformar a vida destas pessoas, o que podemos fazer
para atenuar os efeitos desta tragédia, que certamente
afeta a vida do país como um todo.
Muitos devem estar pensando que esta é uma questão de
Estado e de política pública. E de fato é. Questões como a
redistribuição de renda, a injeção de recursos em políticas
sociais, a melhora da escolaridade, entre outras, são
fundamentais para reverter indicadores vergonhosos como
estes apresentados pela ONU.
Ocorre, entretanto, que a ação estatal não é suficiente
para enfrentar o problema. Como se sabe, o Estado não
dispõe de recursos para mudar a realidade de todo este
contingente da população sozinho.
A sociedade tem, sim, um papel a desempenhar. Estes milhões
de brasileiros que amargam na miséria quase que absoluta
precisam de solidariedade. A sociedade civil organizada,
por meio de sindicatos , de entidades religiosas,
independente de suas denominações, de ONGs, de entidades
empresariais, precisam se unir e buscar mecanismos que
permitam levar alento, esperança e perspectivas a estas
pessoas que hoje percorrem uma estrada que vai do nada ao
nada, num tormento sem fim.
Ou seja, precisamos sair do casulo. Uma onda gigantesca
está se formando em nosso horizonte. É melhor seguirmos o
exemplo deixado por nações e voluntários que se fizeram
presentes na tragédia da Ásia. Chegou a hora de respirar
fundo e enfrentar de frente o tsunami nosso de cada dia.
Vamos torcer para que os participantes do encontro que se
realiza no Rio Grande do Sul nos tragam uma resposta para
este desafio.
* Milú Villela Embaixadora da Boa Vontade da UNESCO
Presidente do Faça Parte Instituto Brasil Voluntário
https://www.alainet.org/es/node/111291
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