PT 25 anos e um dilema
01/03/2005
- Opinión
Dizia minha avó, em ânsias casadoiras, à filha solteirona: “Fulano
é um bom partido”. Herdeiro de parte de boa fortuna. Hoje, o
particípio do verbo partir, substantivado, serve para designar
agremiações políticas. Todas elas literalmente partidas: em
tendências, facções, siglas e grupos regionalistas.
Conheci o PT ainda como proposta na cabeça do Lula. Por que
trabalhador votar em patrão, e não em trabalhador? acendeu-lhe
eureca a 15 de julho de 1979, ao participar de encontro sindical
em Salvador, enquanto em São Bernardo do Campo Marisa dava à luz
ao filho Sandro.
A proposta ganhou corpo e adeptos no meio sindical, nas
Comunidades Eclesiais de Base, nos movimentos populares, na
esquerda sobrevivente ao terror da repressão, entre intelectuais
como Mário Pedrosa, Sérgio Buarque de Hollanda, Antonio Candido e
Hélio Pellegrino.
Fiquei fora. Sou afeito a consensos e avesso a disputas. Nunca me
filiei. Mas da trincheira do movimento social torci pelo PT. Vi
dona Maria Clara, na periferia de Vila Velha, fazer da sala
apertada de seu casebre sede do núcleo do partido. Vi Bacuri,
hanseniano, reunir no Acre enfermos de uma colônia para debater o
programa do PT. Vi agricultores do sertão paraibano pintarem
imensa estrela vermelha na parede de um galpão.
Conheci o PT do trabalho de base, da formação política, das rifas
para coletar fundos, dos livros de ouro, da venda de broches e
adesivos, das festas beneficentes. O PT da militância voluntária,
das campanhas eleitorais aguerridas, do sonho socialista, do
orgulho de ser de esquerda. O PT da hegemonia proletária na
direção, dos critérios éticos nas alianças políticas, da
transparência no trato do dinheiro. PT das greves do ABC, da
campanha das Diretas-Já, do “fora Collor”, da luta por reforma
agrária e contra o pagamento da dívida externa. PT do Fórum de São
Paulo, da solidariedade à Revolução cubana, à Nicarágua sandinista,
à causa palestina, aos que lutavam contra o apartheid na África do
Sul e clamavam pela libertação de Nelson Mandela.
Aos 25 anos, o PT poderia gabar-se de comemorar bodas de sangue,
tantos os mártires de sua história: Chico Mendes, Raimundo
Ferreira Lima, Wilson Pinheiro, Santo Dias, Margarida Alves,
Dorcelina FoladorŠ - todos assassinados por coerência aos ideais
do partido. De gota a gota de sangue, de porta em porta, de luta
em luta, de voto em voto, o PT ampliou a sua força política,
elegendo vereadores, deputados, prefeitos, senadores e
governadores. Até que em 2002, na quarta tentativa, fez de Lula
presidente da República.
Hoje é um partido repartido. O futuro se fez presente e, para uns,
não era o que se esperava: o abandono do projeto socialista, o
pudor de situar-se à esquerda, a política econômica neoliberal, o
atraso na reforma agrária, a liberação dos transgênicos, o
permanente adiamento da demarcação da reserva indígena
Raposa/Serra do Sol, em Roraima.
Para outros, o PT governa com realismo e pragmatismo. Não faz o
desejável, mas o possível. Implementa uma política externa ousada,
promove a reforma universitária, estende o crédito à população de
baixa renda, combate a fome e a corrupção, distribui renda a 6,5
milhões de famílias que viviam na miséria. E brilha na
macroeconomia: estabilidade monetária, controle da inflação, queda
do risco Brasil, crescimento da indústria e das exportações, êxito
do agronegócio, aumento das reservas do país e do emprego formal.
O Brasil é a terra dos paradoxos. O mundo se divide em mais de 200
nações e o nosso país sempre figurou entre as 15 mais ricas. No
entanto, é o primeiro em desigualdade social. Segundo o FMI, os
10% mais ricos da população possuem 44% da renda nacional; os 10%
mais pobres dividem entre si apenas 1% da renda.
No andar de cima, jamais faltou mesa farta. No de baixo, a sofrida
labuta pelo pão nosso de cada dia. Será que a fartura do
agronegócio, da indústria automobilística, do preço exorbitante do
aço, do lucro astronômico dos bancos, do robusto caixa do BNDES,
haverão de se refletir no aumento do poder aquisitivo e da
qualidade de vida dos mais pobres? Os mais ricos deixarão de
ganhar tanto para que haja menos miséria?
O dilema do PT é, hoje, o de Hamlet: ser ou não ser um partido
disposto a ganhar eleições ou a construir um projeto histórico
para o Brasil? As duas coisas, dirão alguns. Numa sociedade
objetivamente tão conflitiva, o preço pago pelo êxito eleitoral, à
base de consenso e alianças partidárias sem critérios, pode
equivaler ao de um resgate sem libertação da vítima do seqüestro.
No caso, a esperança depositada no governo Lula.
O Brasil vai bem, o povo brasileiro ainda não. A economia é forte,
a política fútil, o direito social frágil. Lula tem ainda pela
frente dois anos para atrelar suas prioridades sociais ao ideário
político que ele representa e que deve impor-se como senhor, e não
servo, dessa macroeconomia que hoje beneficia o país em detrimento
da nação.
* Frei Betto é escritor, autor de “Treze contos diabólicos e um
angélico” (Planeta), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/111467
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