Entre a prática e a doutrina
10/07/2005
- Opinión
Foi divulgada este ano uma interessante pesquisa realizada no Brasil, México, Colômbia e Bolívia (Pesquisa Belden Russonello & Stewart Research and Communications; Ibope/CDD). À pergunta “na sua opinião, os postos de saúde e hospitais devem ou não devem oferecer pílulas para as mulheres que mantiveram relações sexuais sem usar algum método anticoncepcional e não querem engravidar?” Referia-se à chamada pílula do dia seguinte, que se pode tomar no prazo de até 72 horas depois de uma relação sexual desprotegida, para garantir que a mulher não engravide. Muitos a consideram abortiva, sobretudo a Igreja Católica.
Responderam “sim” 58% dos bolivianos, 65% dos colombianos, 77% dos mexicanos e 68% dos brasileiros. Entre várias denominações religiosas, a aprovação foi de 72%. Na comunidade católica, 71% estiveram de acordo que a pílula deveria ser ingerida.
Diante da questão “e para as mulheres que foram estupradas e querem ter a certeza de que não ficarão grávidas?”, o resultado comprovou aprovação entre 84% dos bolivianos, 82% dos colombianos, 88% dos mexicanos e 89% dos brasileiros. Nas denominações religiosas em geral, concordaram 91%. Entre os católicos, 90%.
Levantou-se a questão para os católicos: “Caso a Igreja Católica passasse a permitir que os católicos usem preservativo na prevenção contra a Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis, você aprovaria?” Responderam “sim” 88% dos bolivianos católicos; 93% dos colombianos; 85% dos mexicanos; e 94% dos católicos brasileiros. Quanto ao uso de contraceptivos, a aprovação decresce entre os católicos: 71% dos bolivianos; 83% dos colombianos; 72% dos mexicanos e 83% dos brasileiros.
Ao considerar se as decisões do presidente do país e dos legisladores (parlamentares e juízes) devem se basear nos ensinamentos da Igreja Católica ou na diversidade de opiniões existentes no país, a grande maioria dos católicos latino-americanos manifestou-se a favor do Estado laico. No Brasil, 85% concordaram que devem levar em conta a diversidade de opiniões, superado pelos 92% de católicos mexicanos.
Também merece destaque o elevado percentual de brasileiros (74%) favoráveis à prática de aborto legal nos serviços públicos de saúde, em comparação com os colombianos (21%), bolivianos (27%) e mexicanos (33%). A esmagadora maioria dos católicos (86%) considera que uma pessoa pode usar anticoncepcionais e continuar sendo boa católica.
O paradoxo entre o que pensam e praticam os fiéis e o que exige a doutrina religiosa só pode ser superado se for levantado o véu do tabu e permitido o debate que envolve os pressupostos da teologia moral. E pensar que até 1903 a hierarquia eclesiástica considerava pecado o simples gesto de carinho entre o casal! Mas ainda hoje a cabeça da Igreja Católica defende a finalidade procriatória do casamento, e não o amor que une o casal e do qual os filhos são frutos diletos.
Se a Igreja Católica quer evitar o relativismo moral, denunciado pelo então cardeal Ratzinger, é preciso que se rompa o silêncio quanto à sexualidade e sejam considerados os avanços da ciência. Caso contrário, daqui a pouco teremos um papa repetindo a honrosa atitude de João Paulo II, que pediu publicamente perdão a Galileu e a Darwin, vítimas de uma visão obtusa que confundia a autoridade com a verdade.
Vale lembrar a observação de Santo Agostinho, de que Deus nos deixou dois grandes livros: a natureza e a Bíblia. É sempre bom quando eles dialogam entre si. O cientista que esquadrinha a natureza e o teólogo que interpreta a Bíblia estão imersos no mesmo terreno divino. E a história já demonstrou que tanto o positivismo quanto o fundamentalismo são formas perigosas de miopia.
- Frei Betto é escritor, autor de “Típicos Tipos perfis literários” (A Girafa), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/112401
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