Assembléia popular mutirão por um novo Brasil
03/08/2005
- Opinión
Prossegue o tiroteio político de denúncias, desmentidos, depoimentos, liminares judiciais e notas de esclarecimento. Apesar dessa enxurrada de ações e discursos, com suas respectivas réplicas e tréplicas, paira no ar muita confusão. Dúvidas, perplexidade e indignação se misturam e se alternam no conjunto da opinião pública. Representantes da grande imprensa, como abutres sobre carniça, disputam avidamente os furos de reportagem. O terreno torna-se fértil para o descrédito frente às instituições políticas.
Diante da possibilidade de marketing gratuito e de olho nas eleições de 2006, os espaços das CPI's convertem-se em palanques para políticos nem sempre preocupados com o bem comum. Frente aos holofotes da mídia, assiste-se diariamente a um glamouroso desfile de acusações e defesas apaixonadas. De um lado da mesa, multiplicam-se à saciedade os "não sei e não vi", "não ouvi e não falei", "não fiz e não conheço", e outros "não", numa tentativa de escapar a qualquer culpa. Do outro lado, a vaidade, o charme e a perfomance pessoal parecem ser a tônica predominante, ficando em segundo plano a seriedade para com os destinos da nação. Se é verdade que o teatro imita a vida, o que se vê é a atividade política imitando o teatro. O cenário é perfeito: palco, bastidores, platéia, luz e som... e máscaras, muitas máscaras!
Enquanto isso, o chefe máximo da nação tenta uma reaproximação desesperada com o "povo que me elegeu". Reaproximação que tem um alto preço, em três dimensões: primeiro, um silêncio suspeito e omisso frente a essa onda de corrupção e turbulência; depois, o abandono à própria sorte dos "companheiros" afundados na lama; por fim, uma tentativa de identificar por trás de tudo isso uma orquestração das "elites golpistas" contra o seu "governo popular e contra uma possível reeleição". E, a exemplo do velho Zagalo, num clima de aberta campanha política, avisa que "eles terão que me engolir".
"Crise política" tem sido a expressão utilizada para designar esse quadro generalizado de corrupção e uso indevido das verbas orçamentárias . Mas ele evidencia, antes de tudo, alguns vícios históricos e estruturais da maneira de conceber o Estado em nosso país. O estudo sobre a formação do patronato brasileiro, de Raymundo Faoro, serve-se do conceito de patrimonialismo para denunciar a apropriação privada da rex publica, seja quanto ao erário e ao patrimônio cultural, seja no que se refere aos privilégios, benesses, prestígio e influência. Com raízes na península ibérica, o patrimonialismo encontra no Brasil solo fecundo para florescer e se consolidar. Um dos principais vestígios disso são as obras públicas com placa e nome da autoridade de plantão. Embora construídas com o dinheiro dos impostos de toda a população, tais obras não são vistas como direitos adquiridos, e sim como favores de Fulano de Tal. Os "donos do poder" são também, e em decorrência disso mesmo, donos da riqueza. Defensores intransigentes do status quo, manifestam-se avessos e retrógrados a qualquer mudança substancial. Constituem, enquanto classe, os maiores entraves ao processo democrático.
Por isso é que um dos temas mais relevantes e mais debatidos na Quarta Semana Social Brasileira (4ª SSB) venha sendo O Estado e seu papel na transformação da sociedade. Tema que se casa, se complementa e se articula com o das Forças sociais, resistência e organização. Ambos, implícita ou explicitamente, colocam em pauta uma profunda e urgente reforma política. O momento é propício a essa discussão. Os escândalos que emergiram nos últimos meses, com suas montanhas de papel sobre a mesa das CPI's, devem ser vistos não como uma crise conjuntural e momentânea, mas como uma prática comum e fortemente enraizada na história da política brasileira. Somente essa investigação corajosa e radical poderá abrir horizontes a uma verdadeira revisão e superação da tradicional promiscuidade entre o público e o privado.
Não bastam punições pontuais e espetaculares! Não basta a atitude corporativista de sacrificar alguns políticos para preservar os restantes. Não podemos simplesmente envernizar os problemas aflorados, como se faz a um móvel usado, e seguir adiante. A corrupção nos três poderes da União e o "balcão de negócios" entre o executivo, o legislativo e o judiciário, por um lado, e, por outro, o hábito de trocar de agremiação como se troca de roupa, merecem um diagnóstico e uma cirurgia profunda. O respeito ao voto do cidadão, por sua vez, é diretamente proporcional à fidelidade partidária.
Além disso, em meio a esse redemoinho de fatos e boatos, ergue-se uma questão de máxima importância: como passar de uma democracia formal e representativa a uma democracia crescentemente direta e participativa? Ou seja, como criar e/ou fortalecer mecanismos e instrumentos de controle por parte dos cidadãos? E ainda, como aprofundar e disseminar a experiência dos Conselhos Paritários, com a condição de que eles sejam livres e autônomos? Evidente que a democracia formal não passa de uma fachada que, não raro, esconde profundas assimetrias sociais.
Basta um exemplo para ilustrar: nos quase vinte anos de democracia brasileira, após o regime militar, o voto livre e universal coexistiu com injustiças flagrantes e com uma crescente concentração de renda e riqueza. Uma democracia efetiva vai além da corrida às urnas, sejam estas manuais ou eletrônicas; vai além da mera disputa política. Põe em jogo os verdadeiros interesses de classe, entrando necessariamente no terreno da economia e da cultura. Daí que os demais temas da 4ª SSB, como a reforma agrária e agrícola, a Alca, a dívida externa, as políticas públicas de saúde, emprego, educação, meio ambiente, etc., são-lhe inerentes e essenciais. Isto para não falar da manipulação do voto por parte das oligarquias e dos senhores coronéis, outros vícios fundamente enraizados nas entranhas de nossa história.
Essas e outras questões, de evidente relevância, deverão entrar na pauta da Assembléia Popular: Mutirão por um Novo Brasil, a realizar-se em Brasília/DF, de 25 a 29 de outubro do ano em curso. O objetivo fundamental é somar forças na busca de alternativas a esse quadro preocupante, quer do ponto de vista sócio-econômico, seja do ponto de vista político-cultural. Nessa assembléia, aberta a milhares de pessoas, convergem os debates e esforços de várias instâncias sociais de articulação nacional, tais como, 4ª SSB, Campanha Jubileu Sul, Consulta Popular, Grito dos Excluídos, CEB's, entre outras. Mais do que nunca, a hora exige que as forças da sociedade civil organizada avancem em propostas e metas comuns, com vistas à construção de um projeto popular para o Brasil.
- Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
https://www.alainet.org/es/node/112699
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