A crise do PT: o Partido partido
28/08/2005
- Opinión
A fratura sofrida pelo PT no bojo do denuncismo desencadeado pelo deputado
federal Roberto Jefferson deve ser encarada num contexto mais amplo, além da
turbulência conjuntural. Crise vem do verbo acrisolar, que significa purificar,
depurar. O PT nasceu da crise de identidade e perspectivas da esquerda
brasileira marcada, em fins da década de 1970, pelos segmentos oriundos da
militância estudantil e derrotados pela ditadura military.
A derrota decorreu de uma série de fatores, ressaltando-se o exíguo apoio
popular às ações, sobretudo armadas, de resistência ao regime militar. A
“vanguarda do proletariado” carecia da presença de proletários. Estes,
entretanto, não estavam inertes. Pelo contrário, uma parcela de seu setor mais
organizado, o sindical, mantinha uma resistência tática à ditadura,
distanciando-se daqueles que se deixaram cooptar (os pelegos), graças às
oposições sindicais, às lideranças sindicais de esquerda e à renovação dos
quadros dirigentes em setores estratégicos, como metalúrgicos e petroleiros. O
novo sindicalismo desencadeou um processo reivindicatório a partir das
campanhas salariais, comprovando a vulnerabilidade do alicerce do regime: a
política econômica. Os avanços da macroeconomia não se traduziram em
benefícios para as camadas mais pobres da população.
A confluência
O PT nasceu da confluência do novo sindicalismo, cujo desempenho tático não
chegava sequer a propor a derrubada do regime, e da esquerda portadora de uma
visão estratégica, de um projeto alternativo de nação (o Brasil socialista). O
novo sindicalismo evitava vôos teóricos e centrava seu potencial de luta na
conquista imediata das perdas salariais, corroídas pela inflação e pela
falsificação dos índices econômicos, e da ampliação de seus direitos
trabalhistas.
Na confluência entre o sindicalismo e a militância remanescente da esquerda,
cada um entrou com a sua cota de experiências e conceitos. O novo sindicalismo
atraiu os movimentos populares e, em especial, as Comunidades Eclesiais de
Base. Estas venceram a tentação de se transformar em partido e
confessionalizar a política. Encontraram no PT o espaço laico no qual seria
possível tornar realidade, via ação política, o conteúdo da fé libertadora
alimentada no espaço pastoral.
A esquerda atraiu ao PT setores representativos da intelectualidade e do mundo
das artes, imprimindo-lhe caráter estratégico. O PT não seria apenas a via
privilegiada pela qual trabalhador deixaria de votar em patrão para eleger
trabalhadores. Seria também o partido que haveria de manter acesa a tocha do
futuro da nação sem opressores e oprimidos, e tendo por horizonte o socialismo.
A diferença é que, agora, a tocha seria conduzida, não pelos subterrâneos da
história, mas pela via institucional recapeada pela reforma partidária
ocorrida nos estertores da ditadura, reflexo do processo de redemocratização
do país.
O PT surgiu com características inéditas na tradição da esquerda brasileira:
repudiou o centralismo democrático, instaurando mecanismos internos de
democracia radical; evitou a subordinação acrítica a seu fundador e líder
(Lula), e a retórica acadêmica dos conceitos que pretendiam servir de molde à
realidade. Acolheu a diversidade de tendências e, em plena ditadura (que
expirou cinco anos após a fundação do partido), optou pela via institucional,
acatando as regras do jogo democrático burguês.
Este era o terreno minado que o PT escolheu trilhar: ser alternativa
“proletária” de poder dentro da institucionalidade demarcada e comandada pelo
poder burguês. O risco já havia sido apontado por Robert Michels em 1911, ao
comprovar, em seu clássico “Os partidos políticos”, que partidos de esquerda
atuantes na legalidade burguesa dificilmente resistem à cooptação, afrouxando
paulatinamente seu vigor ideológico e seu propósito de transformação da
sociedade.
Na via institucional - a única possível naquela e na atual conjuntura -, não
restou outra saída ao PT senão buscar o poder pela porta da disputa eleitoral.
Este é um jogo cujas regras e critérios estão definidos por aqueles que
divergem das propostas do PT. Porém, o Partido trazia um capital muito mais
precioso e politicamente rentável que os parcos recursos financeiros de que
dispunha em campanhas eleitorais: o apoio dos movimentos sociais. Com poucos
recursos, comparado aos demais partidos, o PT elegeu, na década de 1980,
parlamentares e prefeitos, expandindo-se nacionalmente graças aos movimentos
sociais, que favoreceram a implantação dos núcleos de base, células vivas da
capilaridade do partido.
Corrida aos votos
A queda do Muro de Berlim afetou toda a esquerda mundial, inclusive o PT. E
coincidiu com a derrota de Lula para Collor e seu projeto também vitorioso
de adequação do Brasil ao paradigma neoliberal do Consenso de Washington. A
poeira levantada pela queda do Muro ofuscou o horizonte utópico do PT. A
perspectiva socialista obliterou-se. De certo modo, a busca do poder ficou
restrita à mera disputa de cargos eleitorais, sem que houvesse o respaldo
consistente de um projeto novo de nação. Aos poucos, a política de princípios
cedeu espaço à política de resultados. À medida que esta ganhava corpo, os
quadros do partido descolavam-se da base social, os núcleos de base
desapareciam, a formação política minguava, as tendências paroquizavam os
espaços conquistados, e o Partido deixava de ser ferramenta de transformação
da sociedade para tornar-se quase que somente a via de acesso ao poder de seus
quadros. O pragmatismo produziu a troca da ideologia pelo marketing de
campanha, e cada vez mais se debateu menos o projeto alternativo de nação.
Nas eleições, a despolitização da propaganda comprovava a teoria de Michels
o PT adequou-se de tal modo ao jogo burguês, que se aliou a adversários
históricos numa política de alianças que, se de um lado possibilitou a eleição
de Lula, de outro inviabilizou, na atual conjuntura, a implementação dos
compromissos históricos do Partido, como, por exemplo, a postura crítica
frente ao FMI, as auditorias da dívida externa e das privatizações, a taxação
das grandes fortunas na reforma tributária, e a prevalência das políticas
sociais sobre a política econômica atrelada aos interesses do Mercado.
Governabilidade
A eleição presidencial de Lula não foi propriamente uma vitória do PT, e sim
de uma engenharia política que, cacifada por pelo menos 30% do eleitorado,
construiu uma coligação partidária que aparentemente daria ensejo a um pacto
social. Se bem funcionou no período eleitoral, a coligação não obteve, no
Congresso, a representação necessária para assegurar maioria no apoio às
propostas do Executivo. E este desconsiderou, como fator importante de
governabilidade, seu maior capital político: os movimentos sociais. O frágil
apoio parlamentar abriu caminho aos operadores da política de resultados, que
lançaram mão de práticas que, trazidas à luz, macularam gravemente a natureza
ética do partido.
Estourada a bomba do suposto mensalão detonada por um líder coligado o
Congresso e o PT, e com eles o país, mergulharam na crise. A primeira reação
da direção petista foi, no mínimo, equivocada, ao negar as acusações, mesmo
consciente de que recorrera a métodos escusos. Como se a explosão da bomba não
tivesse desencadeado um processo de erosão política. A imagem ética do PT foi
duramente abalada. E a cada dia os atores envolvidos na trama tropeçavam em
mais e mais contradições. Tentou-se tapar o sol com a peneira, reprovando a
instalação da CPI.
Mais uma vez Lula revelou sua genialidade política. Frente à gravidade da
crise, preferiu agir do que respaldar explicações e desculpas. Demitiu o
ministro chefe da Casa Civil; fez o PT rever sua posição e apoiar a CPI;
destituiu os dirigentes envolvidos na crise; deslocou ministros para as
principais funções do partido; e instou-os a reaproximar o partido do
movimento social.
Agora, cabe ao PT, uma vez aclarada as responsabilidades, punir eventuais
culpados, recuperar seu padrão ético de confiabilidade, reestruturar sua
política interna, contendo as filiações fisiológicas, restaurando a formação
política e a implantação de núcleos de base, reavivando o entusiasmo da
militância e, sobretudo, delineando seu projeto alternativo de nação. E Lula
terá de desfazer o nó górdio: adequar a política econômica às políticas
sociais e ao programa de reformas estruturais. Caso contrário, em 2006 a
esperança corre o risco de não vencer a desconfiança e o desencanto. Lula até
poderá ser reeleito, mas verá seu partido enfraquecido, com menos
representatividade no Congresso. Nesse caso, não restará a ele outra
alternativa senão abandonar seu projeto de mudanças, de redução da fome, da
miséria e das desigualdades, para se tornar mero fiador de uma política
econômica cuja estabilidade dificilmente resultará na diminuição significativa
da instabilidade que ameaça a sofrida sobrevivência da maioria da nação.
- Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais, autor de “Típicos
Tipos coletânea de perfis literários” (A Girafa), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/112832
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