O impeachment e a reação popular
28/08/2005
- Opinión
A crise política brasileira está se agravando rapidamente e seus efeitos são
imprevisíveis. O depoimento “espontâneo” do publicitário Duda Mendonça que
confessou ter recebido R$ 11,4 milhões do empresário Marcos Valério, dos quais
cerca de R$ 10 milhões na conta Dusseldorf, no BankBoston do paraíso fiscal das
ilhas Bahamas; a declaração requentada do ex-deputado Waldemar Costa Neto à
revista Época de que “Lula sabia do acordo de R$ 10 milhões com o PL”; e outros
episódios lamentáveis atiçaram o apetite dos que pregam o impedimento do
presidente. Se antes a oposição liberal-conservadora optara por “sangrar” Lula até
a sucessão de 2006, agora ela até parece disposta a acelerar a morte prematura do
atual governo.
A direita está excitada e quer sangue! “A lama cobriu o terno de Lula. Até agora
muitos tergiversaram, inclusive na oposição, mas chegou a hora de chamar as coisas
pelo nome: existe, sim, motivos para abrir processo de crime de responsabilidade
contra o presidente. O impeachment deixou de ser uma hipótese remota. Passou a ser
possível e, mais do que isso, provável”, festeja o panfleto tucano Primeira
Leitura. A deposição do primeiro presidente operário do Brasil, algo inimaginável
para os que diziam que isso não interessaria às elites, agora parece bastante
real. O perigo golpista ronda as instituições do país! O cenário político mudou de
qualidade, o que exige um reposicionamento rápido e certeiro dos movimentos
sociais.
Não dá para se apegar apenas aos aspectos jurídicos deste processo, resvalando num
outro tipo de ilusão de classes. É verdade que não há “qualquer fundamento legal
hoje para se acusar o presidente de crime de responsabilidade”, como demonstra o
conceituado jurista Clèmerson Merlin Clève, vice-presidente da Associação
Brasileira de Constitucionalistas Democratas. Pelo artigo 85 da Constituição,
“este crime diz respeito a algo praticado durante o mandato do presidente. Se
houve algo antes da posse, como um crime eleitoral, isso não configura o crime de
responsabilidade”. Também é fato que o atual parlamento, lotado de “picaretas”
confessos, não tem legitimidade para depor um presidente eleito com 53 milhões de
votos.
Ocorre que o problema não é jurídico, mas sim político! Se o bloco PSDB-PFL
conseguir reunir as peças necessárias, ele não vacilará em acionar o impeachment.
Até agora, ele já ativou quase toda a mídia venal ao coro golpista e reforçou sua
musculatura institucional, agregando à oposição conservadora o PDT, PPS e PV. Só
faltam duas peças para o golpe fatal. Ele não conta ainda com o consenso das
elites. A parte que teve lucros recordes com a política neoliberal da dupla
Palocci-Meirelles teme turbulências. “Se há boas notícias na economia, elas estão
acima da crise política”, aponta Marcio Cypriano, presidente da Febraban e chefão
do Bradesco. Já a outra parte conspira descaradamente. “São tantas as denúncias
que não vejo motivo para não haver impeachment”, apela Nabhan Garcia,
latifundiário presidente da direitista UDR.
A outra peça decisiva que falta é a da voz das ruas. Não é para menos que o bloco
liberal-conservador tem abanado, pelas vias transversas “à esquerda”, as
manifestações do “Fora Lula”. Ele sabe que o presidente ainda conta com forte
carisma nas camadas mais sofridas do povo e que, apesar do bombardeio diário da
mídia, continua com altos índices de popularidade. Seu único temor é com a reação
dos setores populares. A lembrança do suicídio de Getulio Vargas, em agosto de
1954, quando o povo depredou sedes de jornais conservadores, prédios de
multinacionais e outros símbolos da oposição, é o que apavora atualmente este
bloco. Se conseguir levar as “massas às ruas”, ele deixará de vacilar e partirá
para o ataque derradeiro.
Guerra declarada
Com as denúncias de corrupção “subindo a rampa do Planalto” e com a “guerra das
ruas”, a crise política ingressa num novo patamar. A fase que se abre será
decisiva para o futuro das esquerdas brasileiras – e, mais ainda, para o futuro
das esquerdas na América Latina. Nesta hora, não dá para cair no ceticismo, na
passividade, na omissão, na visão rotineira, na choradeira das Cassandras ou na
impostura dos que tentam salvar os seus mandatos. É uma oportunidade histórica,
num Brasil controlado pelas elites há mais de 500 anos, que está em jogo. Na
guerra, é preciso tomar partido! Apesar das graves limitações do atual governo é
preciso evitar, a todo custo, o retorno do bloco liberal-conservador. “Ruim com
Lula, pior sem Lula”.
Nesta hora, como ensina o presidente Hugo Chávez, que varou a madrugada numa
conversa de quatro horas com Lula, “é importante que os brasileiros não percam de
vista o estratégico, que apontem para o futuro”. Para ele, que já enfrentou e
derrotou inúmeras tentativas de desestabilização do seu governo na Venezuela, é
preciso ter clareza que “hoje se reúnem diversos setores das elites brasileiras
para tratar de reduzir, render e quebrar Lula”. Sem temer a gritaria da direita,
ele inclusive chegou a sugerir que este “ataque irresponsável tem de vir de algum
centro de planificação, do próprio país ou do exterior”.
A guerra foi declarada. O PFL já consultou sua assessoria jurídica para abrir o
processo de impeachment. O PSDB, que vacilava neste rumo temendo a reação popular
e a sua péssima credibilidade nas pesquisas, também dá sinais de que pode trilhar
este caminho. O artigo mensal de FHC no jornal O Globo já deu a senha. Após
criticar Lula, que não aceitou seu conselho para abdicar da reeleição e partiu
para o contato direto com o povo – “tornou-se palanqueiro” –, foi incisivo na
defesa do impeachment: “O país perderá se deixarmos passar a hora. A hora é já”.
Denunciado pela compra de votos para a sua reeleição, entre outros casos cabeludos
de corrupção nunca apurados e sempre blindados pela mídia, ele agora quer a
revanche!
A mídia está assanhada. A revista Veja, que financiou campanhas de deputados
tucanos e tem no posto de diretor de finanças do Grupo Abril o ex-presidente da
Caixa Econômica Federal do governo FHC, Emílio Carazzai, está tresloucada. Uma
capa recente foi repugnante – Lula com símbolo de Collor. Para Venício Lima,
diretor do Núcleo de Estudos sobre Mídia da UnB, “com essa capa, ela evidentemente
está jogando na mobilização da classe média” e “entrou num caminho que não tem
mais retorno”. Já o jornal Folha de S.Paulo voltou a fabricar pesquisas sobre a
queda de popularidade do presidente. O circo está armado.
Nesse processo, inclusive setores com certa inserção social entram em cena com
papéis dos mais jocosos. A Força Sindical, que nunca criticou a corrupção no
governo FHC, agora se traveste de baluarte da ética. “Só vejo duas saídas para
Lula: ou renuncia ou se suicida”, propõe Paulo Pereira, presidente desta central
financiada por Collor e protegida de FHC. O PDT, presidido por ele em São Paulo, o
PPS, do ex-ministro Raul Jungamann que criminalizou o MST, e o PV, do secretário
de meio ambiente do direitista César Maia, também atiçam as bases. Já no PSOL, que
tem na sua executiva uma maioria egressa do PSTU, há quem sonhe com a
ultrapassagem pela esquerda do governo Lula. “Essa crise é uma oportunidade para a
ruptura revolucionária”, teorizam Roberto Robaina e Pedro Fuentes, destacados
dirigentes deste partido.
Pecado original
O que explica a violenta escalada do bloco liberal-conservador, e a confusão e a
dispersão reinantes nos setores populares? Indiscutivelmente, o governo Lula tem
culpa no cartório. Ele deu brechas para o atual imbróglio. Sem cair no
diletantismo impotente e sem abdicar da guerra das ruas, é preciso estudar porque
um governo que despertou tantas esperanças chegou nesta situação tão deplorável.
Os erros foram graves. Até o presidente, em seu insosso pronunciamento à nação,
desabafou que “me sinto traído por práticas inaceitáveis, das quais nunca tive
conhecimento”; “estou indignado com as revelações que aparecem a cada dia e que
chocam o país”; “não tenho vergonha de dizer ao povo que temos de pedir
desculpas”.
Os erros foram graves e precisam ser estudados para que sejam evitados no futuro
e, principalmente, para que sirvam de alerta ao próprio presidente. Nas greves do
ABC, um personagem do cartunista Laerte ganhou fama: o João Ferrador. Ele sempre
dizia: “acorda, peão”. Acorda, Lula! A grave crise atual decorre dos equívocos do
seu governo e do seu partido, o PT, e não estão limitados à questão da ética. O
pecado original foi acreditar no fim da luta de classes, no “lulinha paz e amor”.
Essa concepção, de viés socialdemocrata sem jamais ter as conquistas da
socialdemocracia da Europa, resultou no atual desastre. A política da conciliação
de classe se manifestou em todos os terrenos, com destaque para três:
- No campo econômico, levou o governo a tratar uma necessidade, da transição, já
que a ruptura imediata era difícil devido aos estragos do neoliberalismo, como uma
virtude. A manutenção do tripé neoliberal – monetário, fiscal e libertinagem
financeira – e a continuidade das contra-reformas do capital, como a da
previdência, arrefeceram as esperanças do povo, fraturaram o apoio nas bases
sociais organizadas e não conseguiram acalmar o deus-mercado. Após enquadrar o
governo, a elite agora joga na desestabilização e quer tornar o governo ainda mais
refém. Ela sabe das dificuldades da resistência, da confusão e dispersão reinantes
nos setores populares. A elite tem classe. Neoliberal por neoliberal, prefere o
original.
- No campo político, resultou numa aposta ingênua, até amadora, no jogo
institucional. Esse problema já vinha de antes. Diante da defensiva dos movimentos
sociais, parte da esquerda exclusivizou este caminho. O processo eleitoral foi
americanizado – sem militância, com cabos eleitorais pagos e gastos bilionários em
agências de publicidade. O financiamento de campanha virou coisa de profissionais
– alguns inclusive aproveitaram, já que operavam milhões, para comprar coberturas
e carros de luxo. Na busca da necessária governabilidade, alianças programáticas
sucumbiram ao pragmatismo dos métodos sempre condenados da compra de deputados, da
formação artificial de maiorias. A ilusão de classe levou a acionar vampiros para
cuidar do banco de sangue. Esquemas ilícitos antes usados pela direita, como o de
Marcos Valério, foram acionados. O presidente deu “cheque em branco” para
renomados oportunistas. A democracia capitalista de fachada, cada vez mais dos
ricos, cobrou seu preço! Os espertos foram pegos de cueca e malas na mão!
- Ainda no campo político, a conciliação de classe levou a um distanciamento das
bases sociais de apoio. Procurou-se, ao máximo, evitar a mobilização, a
conscientização e a pressão dos movimentos sociais. O governo Lula, bem diferente
do prepotente FHC, tratou com respeito as organizações populares, mas não apostou
na sua participação ativa na luta pelas mudanças no país. No caso da CUT, chegou
até a interferir na indicação de um presidente mais amigável e dócil. Com suas
metáforas irritantes, o presidente sempre pediu paciência ao povo – tratando-o
como objeto e não como sujeito da história. Na via da conciliação, tentou o
impossível: fazer omelete sem quebrar ovos! Por isso, não ativou e estimulou sua
principal base original de apoio e impulso. Temendo as elites, não apostou na
mobilização dos trabalhadores.
Revanche da direita
Agora, a direita dá o troco. Ela sabe que o governo está debilitado, sem um
projeto nacional de mudanças que cative a sua base social de sustentação; que ele
se enredou na armadilha da política macroeconômica recessiva e antipopular; e que
tem dificuldade na construção da nova base parlamentar de sustentação. Na sua
cínica ofensiva, a direita inclusive tenta se apoderar da bandeira da ética, tão
cara às esquerdas. Logo ela que sempre se chafurdou no abjeto patrimonialismo, no
uso do erário público, na cumplicidade com os corruptores privados. O PFL,
expressão secular do conservadorismo obsceno, e o PSDB, pólo “moderno” da
privataria do Estado e da agiotagem da oligarquia financeira, preparam eufóricos
sua revanche!
Apesar do apoio à política macroeconômica da dupla Palocci-Meirelles, blindada de
qualquer turbulência, o bloco liberal-conservador deseja freneticamente o retorno
ao governo por diversas razões – nem sempre nuançadas por setores que adotam
leituras sectárias sobre a atual correlação de forças e sobre a natureza
contraditória do governo Lula. Em primeiro lugar, por uma questão de classe. Os
“donos do poder” no Brasil, mesmo os poucos beneficiados pelo continuísmo
neoliberal, nunca engoliram a subida ao Planalto de forças oriundas dos movimentos
sociais – sindicalistas, sem-terra, pastorais sociais da igreja, partidos de
esquerda. As elites têm nojo dos setores populares, como revelam algumas colunas
sociais da mídia.
Como argumenta o teólogo Leonardo Boff, “mesmo vitoriosas no campo econômico, elas
não se sentem tranqüilas. Suspeitam que os movimentos sociais poderão, num momento
crítico, pressionar o governo a mudar as regras do jogo econômico, dando
centralidade ao social. Por isso, segundo elas, há de pressionar e até emparedar
Lula. Ele é um obstáculo à volta das elites ao poder. É empecilho ao seu
enriquecimento perverso. O lugar de operário, dizem, é na fábrica, não no governo
e na gerência da coisa pública. Trata-se de uma questão de cultura de classe. O
fato da corrupção, que deve ser investigada e apurada, ofereceu agora a ocasião
que faltava para suscitar o velho sonho traiçoeiro das elites de se livrar de
Lula”.
Além disso, o bloco liberal-conservador tem diferenças abissais com várias
políticas implementadas pelo atual governo. Mesmo no terreno econômico, a
concordância não é integral. Há duras críticas ao fim das privatizações, à
contratação de servidores públicos, à contenção da terceirização, ao investimento
público em projetos de inclusão social, ao microcrédito, etc. Ele almeja a
privatização do Banco do Brasil e da Petrobras e a autonomia do Banco Central;
quer total liberdade para as empresas privatizadas; prega a urgência da reforma
trabalhista; propõe a redução do papel do Estado, com a demissão de servidores e o
desmonte de políticas sociais. Sua plataforma econômica para sucessão já está
pronta. Ela é ultraliberal!
Em recente entrevista à revista Exame, FHC criticou o arquivamento do projeto de
autonomia do Banco Central, a descontinuidade no desmonte da Previdência e a
“demora” na flexibilização trabalhista. Já Luiz Carlos Mendonça de Barros, pivô da
criminosa privatização das estatais no reinado passado, condenou “a paralisia” do
governo no processo de desestatização e antecipou: “A retomada do movimento de
redução da participação do Estado nos negócios só deve ocorrer no próximo mandato
presidencial”. Também tem feito críticas às medidas de controle das agências
reguladoras do petróleo, telecomunicações, energia, etc.
Porém, os dois alvos prediletos da oposição liberal-conservadora são: a nova
política externa do Itamaraty e as relações democráticas do governo Lula com os
movimentos sociais. O PSDB é hoje um fiel intérprete dos interesses dos EUA no
país – FHC inclusive integra um grupo de assessoria em Washington. Rubens Barbosa,
presidente do Conselho de Comércio Exterior da Fiesp e homem-forte de FHC na área,
já prega uma “retomada das negociações da Alca” e a mudança da política externa
“para restabelecer uma atitude positiva e cooperativa”. Quanto à postura
democrática, o bloco liberal-conservador não esconde seu ódio ao MST, ao
sindicalismo e a esquerda como um todo, crítica o “assembleísmo de Lula” e tem
saudades dos tempos de FHC – do exército ocupando as refinarias contra a greve dos
petroleiros, das portarias de criminalização da luta pela terra, das medidas
provisórias impostas para flexibilizar direitos trabalhistas.
Acorda, Lula!
Diante dos erros do governo Lula e do iminente perigo do retorno ao poder do bloco
liberal-conservador, como devem se portar os movimentos sociais brasileiros? A
resposta não é simples, exige muito debate e tolerância e não comporta sectarismos
e adjetivações. O pior dos mundos seria que a crise aprofundasse a divisão e a
dispersão do campo popular. O que foi construído nos duros anos de luta contra a
ditadura e na resistência ao neoliberalismo não pode ser jogado fora. O governo
Lula pode até minguar, mas a luta dos trabalhadores prosseguirá e exigirá
instrumentos afiados, unitários e combativos. Nestes tempos bicudos, seria uma
irresponsabilidade apostar na cisão ou no partidismo tacanho visando colher
espólios da crise.
A grave crise atual, que coloca em risco uma oportunidade histórica de mudanças no
Brasil, não comporta nem posturas passivas, acríticas, típicas de movimentos
chapa-branca; nem atitudes voluntaristas, que não levam em conta os limites do
governo Lula e reforçam as ações desestabilizadoras da direita. Neste rumo, a
plataforma costurada pela Coordenação dos Movimentos Sociais, que reúne o grosso
das entidades mais representativas do campo popular, continua bastante atual. Ao
mesmo tempo em que denuncia a ofensiva do bloco liberal-conservador, ela não dá um
cheque em branco para o governo Lula e exige mudanças dos rumos. Ela posiciona bem
os movimentos sociais diante da crise, centrando em quatro eixos de atuação:
1- Contra a postura hipócrita e desestabilizadora da direita. Esta bandeira ganhou
centralidade com a atual ofensiva pelo impeachment. Ela é o ponto de discórdia
entre setores da esquerda diante da crise – e revela a miopia sectária dos que
afirmam que a direita não visaria desgastar ou derrubar o governo Lula. A defesa
intransigente do legítimo mandato do presidente tornou-se a questão central. Se
esta experiência, mesmo com suas limitações, for abortada, não haverá espaços de
imediato para construção de um projeto mais avançado. Sua ultrapassagem se dará
pela direita, com efeitos prolongados, trágicos e obscurantistas.
A onda do impeachment é uma declaração de guerra, é um ato ilegal, é golpe – não
no sentido clássico do tempo da “guerra fria” e dos generais, mas sim dos tempos
modernos, dos novos golpistas da mídia, do capital financeiro e das instituições
apodrecidas. E na guerra é preciso ter lado, é preciso ousar, é preciso acionar
todas as forças. Já viraram símbolos da resistência as passeatas dos metalúrgicos
do ABC na Via Anchieta e as paralisações de advertência dos metroviários. A
evolução da crise pode requerer ações deste tipo. A direita não está brincando em
serviço; a esquerda política e social não pode se iludir ou vacilar!
2- Apuração rigorosa das denúncias de corrupção e punição exemplar dos culpados.
Não dá para cair no discurso vazio de que a corrupção é sistêmica e de que a
direita sempre se chafurdou na lama. A esquerda não pode se confundir com os
mesmos métodos sujos. O povo está enojado e cansado de tanta podridão nas
instituições. Afinal, o dinheiro público desviado é retirado das camadas pobres e
serve aos poderosos. É a expressão reversa do superávit primário, que corta gastos
nos programas sociais. Também não dá para passar a mão na cabeça dos que se
seduziram com as “tentações do poder”.
A militância política e social não pode cair na defensiva diante das revelações
constrangedoras, não pode ser comparada com aqueles que confundiram o público e o
privado, que montaram esquemas abjetos, que se locupletaram na sujeira. Não pode
ser acuada nas ruas com as piadas do mensalão, do cuecão e outras. É preciso ser
duro no combate a todos os desvios e exigir a apuração e a punição dos culpados. É
preciso pressionar o governo neste sentido. Ele deve dar o exemplo sem titubear; o
partido majoritário, também.
3- Reforma política democrática que amplie o protagonismo popular. Diante de uma
democracia cada vez mais de fachada, a serviço dos ricos, é preciso ampliar a
participação e controle da sociedade sobre as instituições apodrecidas. Na
ofensiva, a direita pretende impor uma reforma que cerceie o debate político e
imponha barreiras aos partidos. Setores do PT, que não abandonaram a sua
arrogância, concordam com esta restrição. Para os movimentos sociais interessa
exatamente o oposto. É preciso criar mecanismos de democracia direta, com a adoção
de referendos, plebiscitos, revogação de mandatos. Hoje não basta votar; é
indispensável controlar os representantes eleitos. Do contrário, eles cedem às
pressões do capital!
Numa visão ampliada de reforma política, também é urgente discutir a real
democratização dos meios de comunicação. As nove famílias que controlam a mídia
brasileira têm um poder excessivo de manipulação das mentes e corações; elas
operam um novo tipo de fascismo societário, acima do Estado de Direito. O governo
Lula, na sua opção conciliadora, iludiu-se com o seu papel e agora paga alto
preço. A sociedade deve ter mecanismos de controle público sobre os meios de
comunicação, não pode deixar de exercer a democracia frente ao autoritarismo
midiático. Além disso, é preciso investir mais em formas alternativas de
comunicação, como as rádios e TVs comunitárias. A democracia exige o fim da
ditadura da mídia!
4- Por mudanças na política econômica do governo. Por fim, a CMS exige uma
alteração profunda nos rumos do governo Lula. Mantendo a autonomia dos movimentos
sociais, ela não dá o apoio incondicional aos atuais ocupantes do Planalto. Um
cheque em branco seria extremamente perigoso quando se sabe que a “quinta-coluna”
do governo continua orquestrando medidas para acalmar o deus-mercado, como a do
déficit nominal zero. Ao mesmo tempo em que se opõe às manobras da direita, a CMS
exige mudanças à esquerda. Bate e assopra, numa relação dialética que preserva e
fortalece os movimentos sociais.
É evidente que hoje o governo está mais debilitado. Se já era difícil a transição
do neoliberalismo para um projeto de desenvolvimento no início do mandato, mais
complexo é agora quando ele se encontra acuado e teme turbulências na economia.
Mas isso não inviabiliza a possibilidade do governo de sinalizar com as mudanças,
de ousar no terreno político, de implementar medidas como do assentamento dos
trabalhadores rurais ou da valorização do salário mínimo. Somente desta forma as
camadas populares, confusas diante da enxurrada de denúncias, sairão às ruas para
defender seu governo; apenas desta forma, os movimentos sociais terão maior
capacidade para mobilizar o povo. Nos momentos de crise é que se mede a capacidade
dos estadistas, dos líderes. É preciso convicção e coragem para ser absolvido pela
história!
Estas quatro bandeiras possibilitam que os movimentos sociais não caiam na
passividade, na omissão ou nos subterfúgios do movimentismo e da negação da
política. Permitem que as esquerdas políticas e sociais continuem a lutar, a
acumular forças, a disputar a hegemonia, a construir seu projeto alternativo e,
mesmo no caso de um revés temporário, que recuem de forma organizada. Elas também
dão os elementos para enfrentamento do debate na sociedade e nas suas
organizações, sem cair na apatia, na desistência ou no oportunismo dos que tentam
apenas salvar sua pele. Servem, na fase atual, para intensificar a mobilização
social, participando na temporada da “guerra das ruas” que se abre e disputando
com os que pregam o fim do governo – pela direita ou pela esquerda. Por fim, são
um alerta ao governo, um grito de “acorda, Lula”.
(Exposição apresentada na plenária da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS-SP),
em 13/8/05, e no II Congresso Nacional dos Metroviários, em 19/08/05)
- Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da
revista Debate Sindical e autor do livro “Encruzilhadas do sindicalismo” (Editora
Anita Garibaldi, junho de 2005).
https://www.alainet.org/es/node/112837
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