Diário de Pernambuco, a História ou a história

27/10/2005
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Todas as segundas-feiras de manhã, nas últimas quatro semanas, os leitores do Diário têm recebido fascículos de título geral O Diario e a História. Eles vêm a propósito do aniversário dos 180 anos do jornal, “o mais antigo em circulação da América Latina”. A propósito, escrevemos, e repetimos, muito a propósito os fascículos vêm. A iniciativa imediata deveria ser um saudar, mais que um saldar, um cumprimento, mais que um comprimento, um salve, salve, sem salvo engano. Isto porque todos esperamos a cada segunda-feira o que seria uma viagem pela história. E, façamos justiça, “faça-se justiça” sem boca cheia de farinha, nos anúncios reproduzidos das páginas do século XIX, saudamos. Se a coleção O Diario e a História se limitasse a eles, a missão estaria cumprida e menos comprida, salva, salva, salvo engano. Por exemplo, como em “Fugio Joanna, a crioula Fugio uma negra crioula por nome Joana, velha, baixa, cara comprida, cabelos rallos, seca de corpo, levou vestido no corpo, dois vestidos, um de xiita azul por cima de outro de xiita novo também azul...”, ou em “Mulher de bons costumes Uma mulher de bons costumes se encarrega da criação de meninos de peito, impedidos e desimpedidos, e também recebe meninos para se desmamarem, no que promete esmerar-se...”. Ou mesmo neste “CHEGARAM MANEQUINS Para familias e modistas A 25$000 Serve para qualquer senhora por mais magra ou gorda que seja”. Pero o periódico desejou mais, não se contentou em ser ele mesmo um documento histórico, porque o título dos fascículos é O Diario e a História – 180 anos. Portanto, À história À maneira da história, ou a uma certa maneira, os fascículos gostariam de ir do quadro geral, do Brasil, de Pernambuco, para o específico, para as páginas do Diário. Dizemos “gostariam” não por um livre exercício de adivinho, mas porque é notável o esforço de indecisão entre o documento específico e o quadro circundante. A solução mais sensata, a história refletida nas páginas do Diário, com breves esclarecimentos e remissões a livros onde os fatos das notícias são melhor situados, nem sempre é feliz. E cada fascículo parece guardar uma história. O primeiro, o “Nos tempos do Império”, deveria ser mais propriamente o “Nos tempos do primeiro Diário”. E aqui, apesar do falso título (um vício dos titulares de todos os dias?), a viagem é boa, porque os olhos da pesquisa navegam pelo específico, pelo que foi o Diário de Pernambuco entre 1825 e 1854. Dizemos boa porque desejamos dizer boa ao nível de nossa esperança, da nossa acostumada esperança, que em se tratando de nossa imprensa nunca é boa. Se ela, a imprensa, a esperança, não nos mata de irritação e raiva pela desinformação ou má-fé, então é boa. O primeiro fascículo, para o público geral, de não-historiadores, é bom porque nos permite caminhar pelo documento histórico em si mesmo. Do dramático ao cômico, nos pequenos anúncios à margem dos textos: “Vende-se uma preta por muito baixo preço, por estar doente...”, ou então “Roga-se ao senhor que, na tarde do dia 25 do corrente, levou por engano ou brincadeira um relógio de ouro, o queira mandar entregar ou terá o desgosto de ver o seu nome por extenso”. Mas no segundo fascículo, onde começa mais claramente a indecisão entre o geral e o específico, entre a ambição de ser um filho do século e um jornal de anúncios, os problemas também começam. Para os anos de 1855 a 1884, a capa nos anuncia a Guerra do Paraguai, com a foto de uma trincheira e a legenda “Uma guerra no continente, uma questão religiosa, uma grande seca no Nordeste...”, por Deus, tudo é grande, demais, para caber em textinhos curtos de 24 pequenas páginas. Se deixamos de lado uma coisa menor, um cochilo do gênero “Literatura ganha página fixa e quadro da Saúde”, que não remete à morte por tuberculose dos poetas românticos no Recife, podemos ver algo realmente grande. Desde o início até o fim dos relatos e notícias sobre a Guerra do Paraguai neste fascículo, Solano López é chamado de “ditador paraguaio”, sem qualquer observação ou ressalva a esse homem que é um herói para o seu povo. O título é um achado: Paraguai desafia o Brasil no campo de batalha. Ora, isto é o que os historiadores chamam de frase da “historiografia nacional-patriótica brasileira”. Dizer, como está no caderno, que “ao final da guerra, a proporção era de 28 mulheres para cada paraguaio em condições de constituir uma família”, é uma forma educada de dizer: na guerra do Paraguai houve um genocídio. Brasil, Argentina e Uruguai uniram-se contra o povo paraguaio, que perdeu territórios e quase 70% da sua gente na guerra do “ditador Solano López”. Mas há neste segundo fascículo algo mais, não sabemos que palavra utilizar, se ameno, se a menos, ou se, digamos, a ocorrência de um lapso de fotografia. Para o mesmo abril de 1882, no que deve ser uma coincidência de ano e mês das mortes de Charles Darwin e de Jesse James, no mesmo nível de importância pelo registro, o fascículo publica ao pé da página a foto de Jesse James! Isto deve ser lido um lapso, ou da falta de foto disponível do velho calvo e barbudo no arquivo, acreditamos. Ou por razões estéticas, talvez. A indecisão se decide Aquela dúvida de não saber se revela o específico ou se vai ao geral do Brasil, a pesquisa do Diário resolve no terceiro fascículo, anunciado como a Guerra de Canudos, que cobre os anos de 1885 a 1914. Se antes apontávamos que o mais sensato, para resolver a encruzilhada, seria um caminho da história refletida nas páginas do jornal com breves esclarecimentos, aqui se cumpriu o nosso desejo, parece. Diz-nos o fascículo: “A campanha de Canudos dominou o noticiário em 1897 e o Diário, ao contrário do ano anterior, destinou a parte nobre de suas edições para informar aos leitores o que acontecia no sertão baiano. Até uma seção foi criada, em letras maiúsculas, batizada de ‘Campanha de Canudos’, para facilitar a leitura do material recebido por telegramas e correspondências. De janeiro a outubro, quando os conselheiristas são finalmente derrotados, o jornal acompanhou os avanços e recuos do exército”. E então, na mesma linha, sob invisível costura: “Ao todo, em 12 meses de conflitos foram mobilizados mais de dez mil soldados convocados de 17 estados brasileiros, distribuídos em quatro expedições militares. O número estimado de mortes é de 25 mil pessoas. O sertanejo, antes de tudo um forte, resistiu até a última degola. Somente mulheres e crianças foram poupadas.... No dia 18 de janeiro, a expedição comandada por Febrônio de Brito...”. Percebem? O texto faz a passagem das notícias do jornal para o narrado em outras fontes como se isto fosse natural e automático, como se os fatos estivessem assim retratados nas páginas do Diário. Ao anterior conflito entre o fato escrito nas páginas do jornal e o fato histórico, faz-se uma montagem, assim como as biografias reescritas, assim como as vidas atualizadas conforme a última moda e tempo. “No primeiro dia de outubro, o exército entra no povoado, que é incendiado. Mesmo assim, os conselheiristas resistem. No dia 2, um homem surge com uma bandeira branca. Era Antônio Beatinho, que pede ao comandante para as pessoas saírem com segurança dos escombros. Ele reaparece com um grupo de 300 pessoas, mulheres, crianças e velhos. Os homens restantes não aceitam a proposta de rendição. Beatinho e parte das pessoas que se entregaram são degoladas no dia 3”, diz-nos o texto da série O Diario e a História . Ora, um incauto é levado a crer que assim, com tais denúncias, se posicionou o Diário de Pernambuco. No entanto, eis o que a pesquisa no arquivo da Fundação Joaquim Nabuco, que possui microfilmada a coleção do Diário, nos revela: “TELEGRAMMAS Rio de Janeiro, 8 de Outubro... No dia 5 as forças legaes fizeram para mais de 1.0000 prisioneiros, dos quais eram mais de duzentos combatentes, e quasi todos gravemente feridos no dia 4.... Quasi todos os chefes fanaticos foram mortos, e entre elles salientam-se: João Abbade, general em chefe dos jagunços, Antonio Bentinho, Barnabé Cruz, João Bispo, Antonio Macario, Joaquim Macambira, Cyro Borges e Fogueteiro.... Outros chefes fanaticos que achavam-se nas furnas, fazendo resistencia, foram anniquilados pelas forças legaes”. Ou seja, nas páginas do Diário, esses homens foram mortos em combate, inclusive Antonio Beatinho, que se entregara, sem resistência. É, no entanto, da pagina de Os Sertões que é retirada a denúncia: “E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e entre eles aquele Antonio Beatinho que se nos entregara, confiante – e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa História?”, pergunta-nos Euclides da Cunha em 1902, para melhor subsídio de O Diario e a História em 2005. Esses, digamos assim, erros, ficam explicados ao fim, lá no expediente da coleção, onde se lê que um só e não mais que um jornalista foi chamado para tão importante trabalho. Pesquisa sobre quase dois séculos, creiam, mais edição e textos a cargo de um só profissional. Que dizer diante de semelhante empresa? Que desprezo, não é?, para uma coleção que deveria merecer uma grande equipe de historiadores, jornalistas e estudiosos das mais diferentes especializações. Chega a ser um milagre o que sai às bancas todas as segundas-feiras. Tal maravilha, nos 180 anos do Diário, bem que merecia uma missa em ação de graças.
https://www.alainet.org/es/node/113357?language=en
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