A condenação do terrorista George Bush
20/12/2005
- Opinión
O discurso pronunciado pelo dramaturgo e poeta britânico Harold Pinter,
durante a sua premiação como Nobel de Literatura-2005, é uma das mais
contundentes e lúcidas peças de acusação contra o presidente dos EUA, George
W. Bush, taxado de “criminoso de guerra”. O belo texto merece ser lido e
amplamente divulgado (ele está disponível na página do Centro Brasileiro de
Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz – www.cebrapaz.org.br). Hospitalizado
em Londres com câncer linfático, o escritor de 75 anos gravou um discurso de
46 minutos que foi transmitido em vídeo para os presentes na cerimônia em
Estocolmo. Numa cadeira de rodas e com a voz debilitada, Pinter foi firme na
condenação do maior terrorista da atualidade.
Após relembrar um texto seu de 1958, no qual alegava que “não existem
distinções concretas entre o que é real e o que é irreal” no trabalho
artístico e que “a verdade na dramaturgia é sempre fugaz”, o renomado
escritor revelou toda sua coragem intelectual, hoje tão em falta nos meios
acadêmicos e culturais vendidos ou acovardados diante do deus-mercado. “Como
escritor eu reafirmo o que disse. Mas não posso fazê-lo como cidadão. Em
minha condição de cidadão, me cabe perguntar: O que é verdadeiro? O que é
falso?”. Para ele, cabe ao intelectual desmistificar as mentiras dos
poderosos. “Para manter o poder é essencial que as pessoas sejam mantidas na
ignorância, que vivam ignorando a verdade, até mesmo a verdade das suas
vidas. O que nos cerca, portanto, é uma vasta tapeçaria de mentiras, das
quais nos alimentamos”.
Em defesa da verdade, o premiado dramaturgo desmascara cada um dos embustes
alardeados pelos EUA, seus aliados e a mídia. “A justificativa para a invasão
do Iraque era o fato de que Saddam Hussein possuía perigoso arsenal de armas
de destruição em massa, algumas das quais podiam ser disparadas no prazo de
apenas 45 minutos, e seriam capazes de causar chocante devastação.
Garantiram-nos que isso era verdade. Não era verdade. Fomos informados de que
o Iraque tinha um relacionamento com a rede Al Qaeda e era co-responsável
pelas atrocidades do 11 de setembro em Nova York. Garantiram-nos que isso era
verdade. Não era verdade. Fomos informados de que o Iraque representava uma
ameaça para segurança do mundo. Garantiram-nos que isso era verdade. Não era
verdade. A verdade é algo inteiramente diferente”.
Para ele, toda esta manipulação serve unicamente aos propósitos desta
potência imperialista. Ele recorda de uma reunião do qual participou na
embaixada dos EUA em Londres, no final dos anos 80. Na ocasião, a diplomata
ianque Raymond Seitz teve de ouvir as duras críticas do padre John Metcalf ao
financiamento dado aos contra-sandinistas: “Senhor, cuido de uma paróquia no
norte da Nicarágua. Os fiéis construíram uma escola, um centro de saúde, um
centro cultural. Vivíamos em paz. Alguns meses atrás, uma força dos contras
atacou a paróquia. Destruíram tudo: a escola, o centro de saúde, o centro
médico. Estupraram enfermeiras e professoras, massacraram médicos.
Comportaram-se como selvagens. Por favor, exija que o governo dos Estados
Unidos retire seu apoio a essas chocantes atividades terroristas”. O
diplomata ianque ouviu a crítica e reagiu: “Padre, permita-me dizer-lhe uma
coisa. Na guerra, pessoas inocentes morrem”.
Pinter descreve toda sua repulsa diante deste episódio mórbido. Lembra ainda
que o presidente dos EUA naquela época, Ronald Reagan, disse que “os contras
são o equivalente moral de nossos pais fundadores”. Para ele, é esta mesma
lógica criminosa que hoje ensangüenta o Iraque. “Os Estados Unidos apoiaram
e, em muitos casos, engendraram todas as ditaduras de direita surgidas no
mundo depois da Segunda Guerra Mundial. Basta citar Indonésia, Grécia,
Uruguai, Brasil, Paraguai, Haiti, Turquia, Filipinas, Guatemala, El Salvador
e, evidentemente, o Chile... Os crimes dos EUA foram sistemáticos,
constantes, impiedosos, mas pouca gente fala sobre eles. Temos de reconhecer
o talento norte-americano. O país exerceu uma manipulação clínica do poder em
todo o mundo, enquanto posava o tempo todo como força que deseja o bem
universal. Foi um ato brilhante, e até mesmo sutil, de hipnotismo, que obteve
imenso sucesso”.
Na sua opinião, esta manipulação inclusive seduz a consumista e cínica
sociedade ianque. “A linguagem é empregada de maneira a impedir que o
pensamento atue. As palavras ‘o povo norte-americano’ oferecem a almofada
verdadeiramente voluptuosa de segurança, de confiança. Não é preciso pensar.
Simplesmente, recoste-se na almofada. A almofada talvez sufoque a sua
inteligência e as suas faculdades críticas, mas é muito confortável. Isso não
se aplica, claro, aos 40 milhões que vivem abaixo do limiar da pobreza, ou
aos dois milhões de homens e mulheres detidos no vasto gulag de
penitenciárias que se estende ao longo do território norte-americano”. É
contra essa deprimente alienação que Harold Pinter levanta a sua voz.
“O que aconteceu à nossa sensibilidade moral?”, pergunta de forma estridente,
provocadora. “Será que isso morreu? Pensem na baía de Guantánamo. Centenas de
pessoas detidas sem acusação por mais de três anos, sem direito a
representação legal, sem direito a processos justos, tecnicamente detidas
para sempre... Esse ultraje criminoso está sendo cometido por um país que se
declara ‘líder do mundo livre’. Será que nós pensamos sobre os habitantes da
baía de Guantánamo? O que a imprensa tem a dizer sobre eles? O que o
primeiro-ministro britânico tem a dizer sobre isso? Nada. Por que nada?
Porque os Estados Unidos determinaram que criticar sua conduta na baía de
Guantánamo constitui violação de aliança. Quem não está com eles, está contra
eles. Por isso, [Tony] Blair mantém a boca fechada”.
Nesta parte de seu corajoso discurso, Pinter decreta: “A invasão do Iraque
foi um ato de banditismo, um ato de gritante terrorismo de Estado, e
demonstrou o completo desprezo pelo conceito de lei internacional. A invasão
foi uma ação militar arbitrária inspirada por uma série de mentiras e mais
mentiras, por absurda manipulação da mídia e, portanto, do público; um ato
cujo objetivo é consolidar o controle econômico e militar norte-americano no
Oriente Médio... Uma formidável afirmação de poderio militar, responsável
pela morte e mutilação de milhares e mais milhares de pessoas inocentes. Nós
levamos tortura, munição fragmentável, projéteis de urânio, inumeráveis atos
de homicídio aleatório, miséria, degradação e morte ao povo iraquiano, e a
isso chamamos de ‘levar a liberdade e a democracia ao Oriente Médio’”.
Diante deste veredicto implacável, o escritor sentencia: “Quantas pessoas
será preciso matar antes que o líder possa ser qualificado como assassino em
massa ou criminoso de guerra? Cem mil? Mais que o suficiente, é o que eu
imaginaria. Portanto, é justo que Bush e Blair sejam indiciados diante do
Tribunal Internacional de Justiça. Mas Bush foi esperto. Não ratificou o
tratado que constituiu o tribunal. Assim, se qualquer soldado ou, aliás,
político norte-americano for levado a julgamento, George Bush já alertou que
recorrerá à força para libertá-lo. Mas Tony Blair ratificou a constituição do
tribunal e, portanto, pode ser processado. Podemos fornecer o endereço dele
ao tribunal. É Downing Street, número 10, Londres”.
Harold Pinter tem consciência de que o cumprimento desta sentença não será
nada fácil. “A morte neste contexto é irrelevante. Tanto Bush quanto Blair
dão importância muita pequena à morte. Pelo menos 100 mil iraquianos foram
mortos por bombas e mísseis norte-americanos antes que a insurgência do
Iraque começasse. Essas pessoas não importam. As mortes delas não existem.
São um vazio. Não estão sequer sendo registradas como vítimas fatais. ‘Não
contamos cadáveres’, disse o general Tommy Franks... Os dois mil soldados
norte-americanos mortos são motivo de embaraço. São transportados para seus
túmulos no escuro. Os funerais são discretos, realizados em locais distantes.
Os mutilados apodrecem nas camas, alguns pelo resto de suas vidas. Assim,
mortos e mutilados apodrecem em tipos diferentes de leito”.
Num mundo marcado pela crescente e brutal agressividade das potências
capitalistas, a guerra é encarada como natural, as torturas são justificadas,
as mortes são banalizadas. “Os Estados Unidos ocupam hoje 702 instalações
militares em todo o mundo, em 132 países... Os EUA possuem oito mil ogivas
nucleares ativas e operacionais. Duas mil delas estão em alerta imediato,
prontas para lançamento em 15 minutos. O país está desenvolvendo novos
sistemas de força nuclear, conhecidos como ‘arrasa-bunkers’... Contra quem,
imagino, eles estão apontados? Osama Bin Landen? Você? Eu? China? Paris? Quem
sabe. O que sabemos é que essa infantil insanidade é o cerne da filosofia
política atual dos Estados Unidos”.
Para este engajado escritor, a única forma de deter a atual escalada
agressiva, que coloca em perigo a própria existência do planeta, é erguer a
voz, é pressionar, é lutar. “Acredito que a despeito das enormes
dificuldades, cabe-nos como cidadãos, com ferrenha, inamovível e feroz
determinação intelectual, definir a verdade real de nossas vidas e nossas
sociedades. Trata-se de uma obrigação crucial para todos nós. É de fato
compulsória. Se essa determinação não for incorporada por nossa visão
política, não teremos a esperança de restaurar aquilo que está quase perdido
para nós: a dignidade humana”. Ao receber o talvez mais merecido Nobel da
Literatura, Pinter não falou de literatura, mas sim do futuro da humanidade.
A poesia recitada por ele na ocasião, de Pablo Neruda, explica as razões do
seu contundente discurso.
“E vocês perguntarão porque a poesia dele
não fala de sonhos e folhas
e dos grandes vulcões de sua terra natal.
Venham e vejam o sangue nas ruas.
Venham e vejam
o sangre nas ruas.
Venham e vejam
o sangue nas ruas!”.
- Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da
revista Debate Sindical e autor do livro “As encruzilhadas do sindicalismo”
(Editora Anita Garibaldi, junho de 2005).
https://www.alainet.org/es/node/113914
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