Uma nova esquerda na América Latina?

17/01/2006
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Desde o ano passado que jornais, revistas, televisões e até líderes de direita vêm alardeando o nascimento de uma nova esquerda na América Latina. A avalanche começou com Lula, em 2003 (porque até então Chávez era considerado apenas um louco). Também foram alçados ao rótulo de “esquerda” os governos de Gutierrez, no Equador, e de Toledo, no Peru. Kirchner, na Argentina, entrou como centro-direita, mas já é pintado como um homem que pendeu para a esquerda. Tabaré Vasquez ganhou as eleições no Uruguai e é visto como um governo de esquerda. Evo Morales, na Bolívia, alega que vai fazer um governo socialista e, agora, Michelle Bachelet, no Chile, também é cantada em verso e prosa como socialista. López Obrador, no México, favorito nas pesquisas das eleições presidenciais deste ano, é outro que faz parte deste seleto grupo de nova esquerda. Tudo isso poderia ser bom se realmente as bandeiras do socialismo começassem a andar. Mas, o que se vê não é bem isso. Gutierrez foi arrancado do poder pelo povo equatoriano porque, em vez de fazer valer as promessas que fez, aliou-se ao capital e começou a promover tudo aquilo contra o qual as gentes tanto lutaram: privatizações, tratados de livre comércio com os EUA, dolarização da economia, etc...Toledo, no Peru, não fica atrás. O Pacto Andino já está fechado e joga o povo peruano nas mãos da raposa estadunidense com o famigerado TLC (Tratado de Livre Comércio). Kirchner deu um susto no FMI, embora siga pagando a dívida. A economia cresce, mas o custo social continua alto. Lula é o que é. Governa para e com os ricos e faz jogo de cena com algumas políticas compensatórias para o povo pobre, tais como a Bolsa Família, o Prouni, o Fome Zero. Tabaré Vasquez já fechou acordo de comercio bi-lateral com os EUA debaixo de muito protesto dos trabalhadores e chegou a sustentar por mais de 30 dias, quatro presos políticos, jovens militantes que haviam saído às ruas para protestar. Ponto para o capital que, feliz, é todo elogios para essa nova esquerda. Evo Morales é o que ainda pode ser uma novidade. Apesar das críticas que já surgem acerca de sua atitude mais moderada durante os grandes protestos de 2004 e 2005, não dá para fugir do fato de que, tão logo se elegeu, já deixou clara sua aliança com Fidel e Chávez e proclamou a sua filiação socialista. Nacionalizar o gás (reivindicação histórica das gentes bolivianas), e rever os contratos com as multinacionais de toda ordem são suas bandeiras. Toma posse, em primeira mão, no solo sagrado de Tiwanaco (terra ancestral), na presença de todas as lideranças aymaras. Jura fidelidade ao país diante dos seus deuses mais caros, Pachamama e Tata Inti, e sabe que se decepcionar seu povo vai dar de cara com a rebelião atávica dos bolivianos que, em 200 anos de República, já derrubaram mais presidentes do que podem se lembrar. No Chile, Bachelet não é portadora de tantas esperanças. A mídia brasileira, como sempre desinformada sobre as coisas da América baixa, a tem celebrado como a “primeira mulher a governar um país da América Latina”, o que não é verdade. Podemos lembrar Isabelita Perón, na Argentina, ou Violeta Chamorro, na Nicarágua. Ex-ministra do governo Lagos, que aprofundou ainda mais o processo neoliberal no Chile, Michelle Bachelet não deve ser provocadora de maiores mudanças na política e na economia chilena. O socialismo da “Concertación” (aliança de vários grupos que mantém o poder no Chile) é o mesmo desta auto-denominada nova esquerda, que de esquerda só tem o nome. Suas políticas e posturas diante da vida estão muito mais para a adequação ao neoliberalismo (o que chamam de humanização do capitalismo) do que para rupturas concretas que levem a construção de um tempo novo. Não é sem razão que figuras como a “senhora arroz” (Condollezza Rice) e diretores do FMI tecem fervorosos elogios a esses presidentes “esquerdistas”. Porque, além de se renderem ao discurso da humanização do capital, provocam estragos consideráveis na luta verdadeiramente transformadora, fazendo crer que “todos são farinha do mesmo saco”, despolitizando a política. Nesse patamar, o único que ainda avança é Hugo Chávez, na Venezuela. Num processo de aprofundamento e radicalização da democracia, ele mantém canais importantes de decisão popular, pratica uma política de aproximação cooperativa e solidária com os países da América Latina, inverte prioridades, busca criar no país um cinturão agrário e investe na industria nacional. Tem levantado como bandeira a construção da Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA) e deixa claro que sua intenção é chegar ao socialismo e não a um capitalismo humanizado, até porque sabe muito bem que isso é absolutamente impossível. A regra básica do capital é a competição, para um viver outro tem de morrer e não pode haver “humanidade” nisso. Nesse quadro cheio de promessas que é hoje a América Latina não dá para fugir de um elemento novo. Como bem lembra o professor Nildo Ouriques (UFSC), a novidade é que as gentes estão mesmo ávidas por mudanças. Mesmo os mais simples, que estão longe das análises profundas acerca da política e da economia, percebem, refletido no seu cotidiano, que algo vai mal, que assim como está não dá para ficar, que as coisas precisam mudar de lugar. Não é à toa que as populações têm votado em políticos que - de alguma maneira – significam expressões novidadeiras. Assim, a esperança que fica é que as reações ao engano possam ser rápidas e eficientes. Que, ao perceberem a não vinda das mudanças, as populações possam fazer acontecer a luta renhida, que traga à memória os seus mais secretos desejos de vida digna e os faça andar. Os movimentos populares precisam de organização e firmeza para eles mesmos comandarem os fios de suas realidades. Na América Latina – ou em qualquer parte do planeta - as gentes não podem esperar por benesses dos governos, tampouco podem querer que o Estado (criado para poucos) vá governar para as maiorias. São as pessoas mesmas, organizadas e em luta, as que podem direcionar o leme dos governos que elegeram. Como bem dizem os irmãos de língua castelhada, “a las gentes recomendase: OJO”. O que na nossa língua quer dizer: olho vivo, cuidado. Não basta dizer-se esquerda ou socialista. Isso precisa se fazer na prática, na política, na economia, na vida cotidiana. Sem isso, é engano. - Elaine Tavares – jornalista OLA/UFSC www.ola.cse.ufsc.br
https://www.alainet.org/es/node/114124
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