De repente, nas ruas dos EUA...
28/03/2006
- Opinión
A vida das gentes é assim. Às vezes, pensa-se que, por estarem quietas, estão submissas e dominadas. Não é verdade. A quietude também pode ser resistência e luta. Quando a dor é muita e a opressão pesada sempre é tempo de aquietar-se e preparar terreno para novas sementes que germinarão. Então, enquanto os dominadores estão tranqüilos, descansando sobre a paz de cemitério que construíram, os pequenos brotos começam a espocar no chão, lavrado com sangue, suor e lágrimas. Aí, aqueles que se curvavam, quietos, assomam, gigantes. É hora da colheita. É o que acontece agora mesmo nas ruas de centenas de cidades dos Estados Unidos.
Por longos e longos anos, imigrantes hispânicos, árabes, asiáticos e africanos, dirigiram para lá todos os seus sonhos, iludidos com a terra de “leite e mel” que parecia ser aquele lugar. Terra das oportunidades, bastião da liberdade e da democracia, onde quem quisesse poderia se fazer rico e famoso. Em busca dessa promessa, levas e mais levas de gente se aventuram a cruzar desertos, rios caudalosos, muros da morte e oceanos. E o que encontram é sofrimento, dor, subemprego, cadeia, exclusão da vida digna. A própria fábrica de sonhos, Hollywood, já mostrou em vários de seus filmes a desgraça de ser imigrante no país do Tio Sam. Ainda assim, milhares de seres seguem arriscando suas vidas para cruzar a fronteira. Hoje, são milhões os que conseguiram entrar, e perfazem quase a metade da população estadunidense.
Boa parte dessa gente que chegou no país vive como “ilegal”. São ninguém, pessoas sem documento e sem cidadania. Até hoje têm conseguido viver em empregos subalternos, passando as piores privações. Por serem “ilegais”, os empregadores se acham no direito de explorar ao máximo e eles vão se submetendo, esperando que um dia possam agarrar a tal da “oportunidade”. Mas, agora, no segundo mandato de George Bush, as coisas têm recrudescido. Tramitam no Congresso estadunidense várias propostas de lei anti-imigração.
Com a mesma – velha e esfarrapada – desculpa de que todo imigrante é um terrorista em potencial, o governo pretende tornar ainda mais dura a fiscalização nas fronteiras do país, impedindo a entrada do que considera “gente de segunda”. Além disso, pretende criminalizar a situação de pessoas ilegais e punir quem as emprega. Outra idéia é criar a instituição de emprego temporário para “trabalhadores hóspedes”, válido apenas para os empregos que os estadunidenses não quiserem. Proposta considerada aviltante e muito propícia para os empresários locais. Terão mão de obra barata e não correrão o risco de ter “essa gente” lá por muito tempo, visto que passado o prazo, eles serão obrigados a voltar para o país de origem.
O saco de maldades não fica por aí. Dentre as propostas que pipocam no Congresso está uma que é de uma espetacular sordidez: cobrar dos próprios imigrantes uma taxa e, dos recursos arrecadados, fazer um muro ainda mais seguro do que o que já existe na fronteira com o México. Ali, desde 1994, mais de quatro mil pessoas (dados oficiais) morreram tentando cruzar o muro.
Segundo os mexicanos, o número de desaparecidos é muito maior, e só no último ano o número de mortes chegou a 500. Com a nova lei, também as entidades de direitos humanos ou que prestem qualquer ajuda a imigrantes sofrerão as penas da lei. O cerco contra os imigrantes estará completamente fechado. Para se ter uma idéia, o departamento de imigração agora está sob o comando da Seguridade Nacional.
Essa discussão anti-imigração tem sido a gota d´água para a rebeldia. De repente, aqueles seres que viviam se escondendo, nos esgotos, na escuridão, decidiram sair às ruas em marchas de protesto. Por todas as cidades – inclusive em Washigton - as passeatas estão acontecendo, cada dia maiores, e recebendo o apoio de estudantes e lutadores sociais. Sem querer, o governo estadunidense, acendeu um estopim e provocou as gentes. Os homens e mulheres quietos principiam a falar.
O Fórum Social Fronteiriço
O terreno da rebeldia já vinha sendo semeado desde há anos, nas catacumbas dos grandes centros estadunidenses onde a população hispânica é cada vez maior. Hoje, são mais de 11 milhões de pessoas oriundas da imigração vivendo no país - grande parte mexicanos - cansadas de serem tratadas como gente de segunda classe. Esses seres são os que estão agora nas ruas. Não aceitam mais serem chamados de ilegais. “Nenhum ser humano é ilegal. Ilegal é quem gera a pobreza e obriga as gentes a saírem de seus lugares ancestrais”, dizem os organizadores do primeiro Fórum Social Fronteiriço, que vai se realizar em Ciudad Juarez, no México. A proposta é fazer uma grande caminhada, com gente de todo o mundo, até o muro que separa o México dos Estados Unidos, e cruzá-lo.
Os imigrantes mexicanos, principalmente, têm motivos de sobra para exigir respeito nas terras do Tio Sam, até porque praticamente a metade dos Estados Unidos (o que hoje são os estados do Texas, Nevada, Utah, Colorado, Nuevo México, Arizona e Califórnia) pertencia ao México até 1847, quando, através de uma ação militar, foi usurpada. Desde então, a fronteira desenhada sob o peso das armas tem sido ferozmente vigiada e milhões de pessoas já morreram tentando passar. “O que acontece na fronteira com os EUA é um genocídio que se estende por 500 anos. Muito antes da nação estadunidense existir, as gentes já cruzavam aquelas terras e esse direito não pode mais ser negado. Por isso vamos fazer o fórum e vamos cruzar o muro, passe o que passe”, afirma Sandra Soto, uma das organizadoras.
A caminhada em direção ao muro já começou. De vários lugares do México já saíram manifestantes. Eles devem entrar na cidade de Chiuaua no dia 22 de abril e dali seguir até Ciudad Juarez, onde acontece o Fórum, de 1 a 7 de maio. “O centro vai ser Ciudad Juarez porque é ali que está mais caracterizado o “homo capitalistas”, diz Sandra. Nessa região estão encravadas centenas de fábricas e empresas multinacionais, que empregam mais de 500 mil mulheres em regime de quase escravidão. Segundo denúncias dos organizadores do Fórum, há notícias da desaparição de mais de quatro mil mulheres. Todas elas, em algum momento, se rebelaram contra o sistema de trabalho opressor. “Ali, quando as mulheres se empoderam elas são mortas sem dó. Por isso elas não podem confiar em nada e em ninguém. Por isso elas precisam da força dos trabalhadores de todo o mundo, para que possam se organizar em segurança”.
A data de sete de maio, convocada para a derrubada do muro não foi escolhida ao acaso. Ela é histórica para os trabalhadores e camponeses do México. Foi nesse dia, durante a revolução mexicana do início do século XX, que o grande comandante dos Exércitos do Norte, Pancho Villa, entrou vitorioso em Ciudad Juarez, inaugurando um tempo de poder popular. “Nós vamos fazer o mesmo. Vamos entrar vitoriosos na cidade e derrubar o muro da vergonha, em nome da liberdade e da felicidade”.
Os organizadores do Fórum Social Fronteiriço estão convocando militantes de todo o planeta para esse feito histórico. E agora, não há melhor hora. Do lado mexicano, as gentes caminham em direção ao muro. Do lado estadunidense, aqueles que tinham estado em silêncio começam a dizer sua palavra, tomar as ruas, exigir direitos. De novo, está em andamento o “trem subterrâneo”, uma rota, não de fuga, mas de chegada. O país de Bush principia uma hora histórica. É certo que os motivos das marchas e da rebeldia atende a um apelo muito particular, mas, por outro lado, quando as gentes despertam e saem da letargia, quem pode saber onde vão parar? Que sejam sábias e façam o império tremer...
* O OLA é um projeto de observação e análise das lutas populares na América Latina. www.ola.cse.ufsc.br
- Elaine Tavares – jornalista no OLA/UFSC*
https://www.alainet.org/es/node/114707
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