Um retrato
23/05/2006
- Opinión
No dia 28 de maio a Colômbia vai eleger o novo presidente da República. Quem vê as notícias na televisão brasileira já deve ter percebido que, na guerra midiática, o país de Garcia Márquez é o único que "está no caminho certo", se comparado com a Bolívia, de Evo Morales, ou a Venezuela, de Hugo Chávez. É que ali, os Estados Unidos acredita ter o comando, seja através de seus militares encravados no país, ou através do domínio econômico. A Colômbia dirigida por Álvaro Uribe é o primeiro país da América do Sul a fechar o TLC (Tratado e Livre Comércio). O ponto de honra para a política estadunidense é exterminar a guerrilha marxista (as FARCs) e manter a ponta do continente sob suas botas. Uribe pode ser reeleito, mas as gentes estão em luta.
A Colômbia é um país relativamente pequeno, com pouco mais de um milhão de metros quadrados e 44 milhões de almas. Fica na ponta sudoeste da América do Sul, fazendo fronteira com a Venezuela, Brasil, Peru, Equador e Panamá, além do Oceano Pacífico e o Mar das Caraíbas. É território originário das grandes nações Caribe, Arawuak, Chibcha e Muísca, além de outras de menor porte. Em 1508, ano da invasão espanhola, viviam naquelas terras mais de 800 mil pessoas. Sufocadas pela lógica de saqueio, em poucos anos as comunidades autóctones ou foram dizimadas ou feitas escravas. Mais tarde, com a expansão da colônia, vieram os negros, também escravizados. Por ali se fincaram os espanhóis e deles nasceram filhos criollos, e esse é o caldo étnico que forjou a Colômbia moderna.
Hoje, a televisão e os jornais insistem em reproduzir - de forma rasteira, ideológica e preconceituosa - uma imagem que não é totalmente real. A idéia de que o país é apenas o território liberado de traficantes e bandidos barbudos. Para compreender a Colômbia do narcotráfico, das guerrilhas, dos paramilitares, do Estado terrorista, da ocupação estadunidense e das gentes em luta é preciso conhecer sua história desde a raiz. Daí esse pequeno apanhado que visa iluminar a mirada e tornar um pouco mais profunda a decifração da realidade.
Um pouco de história
Desde a conquista até as grandes lutas por emancipação, a Colômbia foi palco de batalhas intensas pela liberdade. Seja por parte dos povos originários, que resistiram desde o começo ou dos negros africanos, que nunca aceitaram a escravidão como coisa natural. Com o passar dos anos, os chamados "criollos" - gente nascida na nova terra - também começaram a se movimentar. É que, nos primeiros tempos da colônia, eles não tinham direito de participar da administração pública e isso gerava muitos protestos. No final do século XVIII já eram em número considerável e exigiam mais poder. Além disso, conspiravam contra os altos impostos e contra o monopólio do comércio com ingleses, franceses e holandeses. Estes protestos foram a ponta do pavio que acendeu as guerras de independência.
Como na maioria dos países da América Latina, com o esmagamento dos povos autóctones, a idéia de independência foi gestada muito mais na consciência dos criollos e dos filhos da aristocracia que iam estudar na Europa. A libertação do Haiti, dos Estados Unidos e a revolução francesa eram o espelho onde os sul-americanos miravam os novos tempos que poderiam surgir. Na Colômbia não foi diferente e em 1810 também ali iniciava uma guerra entre federalistas e realistas. Naqueles dias, chegava de Cartagena o general Simón Bolívar com suas tropas, o que foi decisivo para a vitória dos federalistas. No ano de 1816 a Espanha recupera o território e promove um banho de sangue fuzilando todas as lideranças, enquanto Bolívar vai para a Jamaica. É só em 1819 que o libertador, juntamente com o general Santander, recupera o domínio sobre o lugar, criando assim a Gran Colômbia. Naquele período, travava-se naquelas terras o que ficou conhecido como "guerra a muerte", que, na prática queria dizer: nenhum inimigo vivo. Quem era capturado, era passado na faca. Isso era prática nos dois lados e criou um ethos de violência jamais visto.
Mesmo depois de consolidada a independência da Espanha, a guerra não cessa. Francisco Santander assume o comando da Colômbia e briga com Bolívar. Caído em desgraça, o libertador morre em 1830, mas seus seguidores seguem lutando e muitas são as escaramuças com os santanderistas. A "guerra a muerte" não tem fim. Muitos são os conflitos civis internos que se estendem por décadas. Só em 1886, quando uma nova constituição abole o federalismo e fortalece o poder central é que o Estado consegue alguma paz. Ainda que fosse uma paz de cemitério, pois a centralização do mando levou a falta de garantias dos direitos individuais. Na prática era a guerra, só que silenciosa. Coisa que não durou muito, logo explodindo em mais uma batalha civil: a guerra dos mil dias, que entrou pelo século XX adentro. É nesse período que se consolida na Colômbia o bi-partidarismo no qual o poder passa a ser exercido ora pelos conservadores, ora pelos liberais. Os povos originários, os negros, os camponeses e os trabalhadores estão excluídos de qualquer ingerência na vida da república.
Logo no início do século XX o país passa por um momento difícil. Em 1903, os Estados Unidos, que já se configurava uma potência, impõe à Colômbia um corte no território. Surge aí o Panamá, onde, mais tarde se faria uma das maiores obras de engenharia do planeta: o canal que liga os oceanos Pacífico e Atlântico. Menor, e golpeada em sua soberania, a Colômbia segue um lento consolidar da república, sempre caminhando no rumo do capitalismo dependente imposto. Mesmo aí, a luta não arrefece. Com a empresa estadunidense United Fruit tomando conta de grande parte das terras, explorando e usando de violência contra os trabalhadores, começa a nascer também o movimento sindical. A luta de classe mostra sua cara e o confronto entre o exército e os trabalhadores da United Fruit em 1928 deixa bem claro com quem o Estado colombiano está. A luta dos trabalhadores é grande, mas o com a força a serviço do Estado, eles são derrotados. Passam os anos e nada muda.
A esperança assassinada
Nos anos 30 os liberais assumem o mando do país e alguns avanços são registrados. Mas, em 1946 os conservadores voltam ao poder e inicia o que ficou conhecido com "um tempo de horror". A segunda guerra havia acabado e os Estados Unidos iniciavam sua luta sem trégua contra os comunistas. Na Colômbia, a Doutrina Truman também se fez sentir e o perseguido era um líder popular, de origem camponesa, que começava a se destacar na política. Formado em direito, Jorge Gaitán era também um exímio orador. O povo o amava, considerando-o "niño y jefe". Era alguém que juntava todos os requisitos para fazer parar a violência e governar para a maioria. Defensor da paz, Gaitán buscava envolver as forças políticas para que cessassem com a violência que tomava conta de todo o país. Candidato à presidência pelo partido liberal, Gaitán, que se notabilizara por sua postura de homem de esquerda, seja como advogado, alcade, deputado ou ministro, parecia invencível. Por conta disso, os conservadores aplicavam a lei do terror, roubando as carteiras de identidade dos camponeses para que fossem impedidos de votar, perseguindo lideranças populares e espalhando o medo.
Naqueles dias o clima de desordem era tão grande na Colômbia que as comunidades precisavam formar milícias armadas para se defenderem, seja do exército, das polícias ou dos bandos de desordeiros que aproveitavam a confusão para pilhar e destruir. Foi assim que nasceu o grupo que mais tarde viria a se transformar nas FARCs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), comandado por Pedro Antônio Marín, el Tirofijo, (que adotou o nome de um antigo revolucionário, Manoel Marulanda), um camponês de uma dessas comunidades assustadas, só que com um viés classista e comunista. A idéia era defender o povo trabalhador e lutar por um país soberano e socialista. Assim como o dele, outros grupos surgiram, sempre com o intuito de se defender da violência institucionalizada.
E foi neste cenário de violência e horror que se deu o fato que iria mergulhar a Colômbia em mais um tempo de completa destruição do tecido social. Era nove de abril de 1948. As eleições estavam na porta. A vitória de Gaitán parecia irreversível. E foi neste dia que o líder popular foi assassinado por um homem chamado Juan Roa Sierra. Três tiros certeiros, "a la una e cinco de la tarde". O assassino foi linchado pelo povo pouco depois do crime, mas até hoje os mandantes continuam encobertos. Há muitas versões. Uma fala que foi a mando do governo, outros que foi um golpe da CIA, a agência estadunidense. O certo é que a morte de Gaitán desencadeou um processo de desespero coletivo no país. No dia do assassinato aconteceu o que ficou conhecido como "Bogotazo", no qual a cidade de Bogotá foi completamente destruída pelo povo. Prédios foram queimados. O comércio foi saqueado e destruído. E a loucura de dor e desesperação foi se alastrando pelo país afora. As gentes empobrecidas que viam em Gaitán uma esperança, perderam a razão. O exército desencadeou mais terror. E, de novo, a Colômbia caiu prisioneira da "guerra a muerte" que, naqueles anos produziu mais de 200 mil mortos e ainda hoje não terminou.
Depois de Gaitán
Foram muitos anos de violência desenfreada. Naquele período as milícias armadas eram mais do que necessárias, pois os povoados ficavam completamente desguarnecidos, à mercê do terror. Passado o furacão, um golpe militar - apoiado pela oligarquia - trouxe outra vez a paz do cemitério. Em nome da conciliação, o governo constituído lançou uma campanha de deposição de armas. Segundo os generais, não havia mais motivos para as comunidades se armarem. O governo iria garantir a paz. Muitos grupos atenderam ao chamado e muitas fotos foram tiradas de gente entregando armas. Mas, pouco tempo depois, todas as lideranças foram sendo caçadas e exterminadas, mostrando que tudo aquilo não passara de um engodo. Outros ex-guerrilheiros, sem condições de se integrarem a uma vida normal, se fizeram bandoleiros e o ódio e a ferocidade recrudesceram no país.
Poucos foram os grupos que não depuseram as armas. O grupo de Marulanda não acreditou na conversa de paz e se manteve organizado e armado, até porque tinha muito claro que a independência real da Colômbia só poderia se dar pela via do socialismo, do povo no poder. Foi o que salvou todas as suas lideranças.
O governo militar seguiu até 1957, quando as mobilizações de estudantes e a luta popular levaram a derrocada do regime. Acossado pelo povo e tendo conservadores e liberais unidos contra ele, o general Rojas deixou o cargo. A partir daí, até os anos 70, é a Frente Nacional quem governa o país. Durante aquele período pouca coisa muda no cenário do país. Pobreza, fome, violência. Os mesmos de sempre governam para os mesmos de sempre. Por conta disso, em 1964, inspiradas na vitória popular cubana e nos movimentos de libertação de toda a América Latina, formam-se as FARCs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), em 1965, o Exército de Libertação Nacional e 1967 o Exército de Libertação Popular, todos eles em conformidade com o ideário de uma Colômbia livre, soberana e socialista.
O surgimento das máfias
Até o final dos anos 80 a Colômbia viveu momentos de luta interna muito intensos. Os movimentos guerrilheiros faziam ações espetaculares e o governo respondia com o mesmo peso. A violência continuava seu caminho sem fim. Enquanto isso, nas entranhas do país aparecia um elemento novo que, silenciosamente, foi roendo tudo o que restava do já roto tecido social: as máfias. A primeira delas, é claro, foi a máfia política. O acordo entre liberais e conservadores mostrou que o povo era uma abstração. Só os interesses das classes mais abastadas estavam em pauta e, durante todo o tempo em que durou a alternância de poder, a guerra suja se espalhou pelo país com o assassinato de líderes populares e o ataque feroz aos movimentos guerrilheiros. A Frente Nacional era, no entendimento de Carlos Vidales ( ex-militante do M-19) um governo terrorista. E quando esse acordo entre liberais e conservadores acabou, tampouco as coisas mudaram.
A segunda máfia que se consolida é dos mineradores e comerciantes de esmeraldas, do qual a Colômbia é o segundo maior produtor. Esses grupos dão início a compra de juízes, políticos e fazem girar a roda do comércio clandestino. Percebendo que esta é a melhor forma de sobreviver dentro de um estado totalmente falido, os políticos regionais vão formando redes de poder que se desdobram nas máfias da maconha e, depois, da cocaína. Assim, vão criando também suas próprias milícias e horrores particulares. São estas máfias que criam na Colômbia uma espécie de escola superior de violência, com a proliferação de atentados, assassinatos de juizes e jornalistas, esquartejamentos e outras tantas formas de terror jamais vistas.
Não bastasse isso, nascem os grupos paramilitares que são milícias particulares ou ligadas ao governo que se arvoram no direito de fazer a guerra aos grupos guerrilheiros de esquerda e ao povo que luta. Com isso, aumenta ainda mais o caldeirão da violência no país. Estes grupos são responsáveis por outras tantas histórias bárbaras de matanças de camponeses e de líderes populares e sindicais. Relatos impressionantes e cruéis podem ser conferidos nas reportagens do jornalista Germán Castro Cayedo, transformadas no livro Colômbia Amarga.
Para aqueles que são apenas pessoas comuns e que não comungam nem das máfias ou das guerrilhas, ou dos grupos paramilitares, resta a perplexidade, o medo ou a cooptação. Diante do terror, a decomposição da sociedade é visível. O dinheiro das máfias acaba se alojando nas instituições, nos partidos e até em alguns grupos guerrilheiros. A corrupção penetra capilarmente e a resistência - que é aguerrida - sofre ataques brutais. Esta é a Colômbia de hoje que parece não conseguir se libertar das malhas da violência histórica.
A Colômbia de hoje
Quem governa a Colômbia atualmente é um político jovem, mas de longa experiência na vida pública. Álvaro Uribe é advogado, formado em Antioquia, com especialização nos Estados Unidos e uma passagem na Inglaterra como professor em Oxford. Filho de fazendeiro entrou para a vida pública em 1976, foi secretário do Ministério do Trabalho, vereador e prefeito em Medellín, governador em Antioquia e senador da República. Ganhou as eleições presidenciais em 2002 com 53% dos votos dizendo que ia garantir a paz no país abrindo negociações com os grupos guerrilheiros. Na verdade, embora faça jogo de cena e seja apoiado pela grande imprensa, a política não é de diálogo e sim de endurecimento. Sua ação mais espetacular é a proposta de entrega de armas que fez aos grupos guerrilheiros e paramilitares. Muitos deles têm feito entregas sistemáticas, que são televisionadas e saudadas como grandes vitórias governamentais. Segundo relatos de militantes sociais do país, boa parte destas "entregas" nada mais são do que farsas. As armas são devolvidas depois. Há quem diga que as FARCs são o principal alvo de Uribe, uma vez que esse grupo é acusado de ter assassinado seu pai, um fazendeiro do estado de Antioquia. Assim como também há rumores sobre a frouxidão com que trata a máfia do narcotráfico.
Na verdade, as lutas intestinas na Colômbia recrudesceram pós 2002. Há relatos de matanças promovidas por paramilitares (que os colombianos acusam de conivência com o governo) e também por membros do exército. O governo de Uribe tem promovido medidas severas como escutas telefônicas e a criação de zonas em que as pessoas têm liberdade restringida. Além disso, é deste governo a idéia de recrutamento de civis a base de dinheiro. Já são mais de um milhão de jovens que aceitaram entrar para o exército em troca de uma boa bonificação, entre eles mais de 15 mil camponeses. Promove ainda uma lógica de delação oferecendo pagamento por informações acerca das guerrilhas. Com isso, divide ainda mais o país já tão fragmentado pela violência.
Os relatos de assassinatos, seqüestros e desalojamento de camponeses são intermináveis e, conforme depoimentos dos próprios colombianos, não são praticados apenas pela chamada guerrilha. O exército nacional tem a sua cota de barbaridades. Quase um milhão e meio de pessoas já saíram do país, seja como mulas do tráfico ou atravessando a selva de Darien rumo ao Panamá, buscando uma alternativa "menos pior". Religiosos, militantes sociais, sindicalistas e estudantes são mortos como moscas, basta que se metam a reivindicar. Os Estados Unidos seguem injetando dinheiro no que chamam de combate ao narcotráfico, quando na verdade é para apagar a guerrilha marxista ou qualquer tentativa de transformação. Os protestos sociais, que acontecem e não são poucos, acabam criminalizados. Muita gente é morta. Os povos originários, que vivem há mais de 500 anos esse processo de subjugamento, tampouco se calam, mas, igualmente, sofrem o peso do estado repressor. Na última semana, passeatas pacíficas de protesto contra o TLC foram desfeitas à força e muita gente acabou presa. Isso sem contar os desaparecidos. Nas universidades, os jovens se movimentam e também recebem balas. Muitos são os que caem, vítimas do terror oficial. Assim, a Colômbia parece não oferecer qualquer modificação no seu estado crônico de violência. Pelo contrário, a democracia alardeada por Uribe convive muito bem com a prática de um estado terrorista.
Há ainda um grupo de esquerda não-armada que prefere fazer a luta pela via institucional, apostando na lógica das eleições e de ocupação dos espaços de poder do Estado tais como alcadias, governos departamentais e congresso. Estes políticos apostam na saída constitucional, sem o rompimento radical com a ordem e condenam as ações dos grupos armados. Por outro lado, também têm sido vítimas da violência e não são poucas as mortes registradas neste setor. Daí a crítica da guerrilha a essa tática não-militar que, igualmente tem produzido dezenas de mortes, chegando quase ao extermínio. Isso significa que na Colômbia, para se contrapor à violência institucionalizada e à estratégia da luta armada também está sendo tentada uma via alternativa, por dentro da ordem, mas poucas são as conquistas.
As eleições presidenciais
Agora, no dia 28 de maio, a Colômbia se prepara para novas eleições presidenciais. Álvaro Uribe Vélez é candidato à reeleição. No mês passado, as eleições congressuais garantiram 70% das cadeiras para os apoiadores do atual presidente, numa nova articulação entre os partidos tradicionais, tal qual a antiga Frente Nacional. Dos pouco mais de 26 milhões de colombianos aptos a votar, apenas 11 milhões compareceram às urnas e o índice de votos nulos chegou aos 15%. Mesmo assim, o governo saiu vencedor. Para alguns analistas mais à esquerda, a cara democrática do pleito é só um engodo que acabou garantindo a "primeira ditadura amparada na mais antiga democracia da América do Sul". Isso mostra muito claramente como um estado terrorista pode existir em paz, travestido de democracia. Os Estados Unidos também são um bom exemplo disso.
Entre a população colombiana de classe média, Uribe aparece como aquele que conseguiu "tranqüilizar" a guerrilha e isso já é bom. Essa é uma análise que aparece principalmente nas grandes cidades, mais urbanizadas, e com algumas ilhas de prosperidade. Vêm basicamente daqueles que se recusam a tomar conhecimento da fome que a maioria do povo padece, da privatização crescente da educação, da miséria da oferta de trabalho, do desemprego, do desalojamento massivo dos camponeses, dos assassinatos no campo e na cidade. Além disso, a grande imprensa, ao esconder o que se passa nas entranhas do país, ajuda a formar uma consciência coletiva que legitima a opressão e apresenta a guerrilha libertadora como a culpada por tudo de ruim acontece no país. A face do estado terrorista não aparece na TV.
Nos espaços da periferia, conforme relato da psicóloga brasileira Catarina Gewehr, o que impera é o medo, daí a voz aparentemente calada, amordaçada. "Qualquer liderança que aparece nas comunidades ou entre os estudantes é logo ameaçada ou morta. Há muito medo na Colômbia, mas é um medo que não paralisa, ao contrário, ele é mobilizador". A professora conta que, na verdade, os colombianos lutam sempre e com a consciência do risco que isso implica, a partir de uma força incomensurável e criativa. "Eles lutam todas as lutas. Nas montanhas, com as armas, na cidade, com as palavras. Vi garotos que pegam o ônibus e combinam que um defende, sem muita convicção, o governo do Uribe, e o outro explica, aclara e critica os absurdos do governo. Fica estabelecido estão que o que defende inicialmente Uribe é convencido pelo outro. E assim vão, em voz alta, formando..."
Isso significa que o medo, que existe, passa a ser um desafio à criatividade e à inteligência. As vozes "amordaçadas" só o são aparentemente. Apesar dos riscos, as gentes seguem nas ruas, com manifestações gigantescas e os jovens seguem nas comunidades da periferia fazendo o milagre da vida se realizar. "Porque nenhum medo, nenhuma ameaça, nenhuma morte, pode fazer sucumbir os sonhos, que são imensos feito as montanhas, alegres feito as gentes do Choco, fortes feito os agricultores de Une, bailantes feito as gentes de Cali e generosos feito as gentes de Bogotá".
E é justamente por conta da luta que o Estado colombiano está colocando em prática o Plano Patriota, uma espécie de nova versão do Plano Colômbia, apresentado pelos Estados Unidos como estratégia para derrotar militarmente a guerrilha e os desejos de libertação. Enquanto isso, segue impunemente a lavagem de dólares por parte dos paramilitares e das máfias, acontece uma contra-reforma agrária em que terras são repassadas a grupos paramilitares que expulsam camponeses à bala e créditos são concedidos aos latifundiários, enquanto os pequenos seguem sendo desalojados sob o fogo das armas, muitas vezes do próprio exército. Não bastasse isso, o governo de Uribe continua privatizando empresas públicas e foi o primeiro presidente sul-americano a fechar o Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados Unidos, um projeto que deixará o país ainda mais dependente do ponto de vista econômico, político, militar e cultural.
Na corrida eleitoral disputam ainda o candidato liberal Horácio Serpa, que aparece em terceiro lugar nas pesquisas, Carlos Gaviria, representando a esquerda, e outros três menos expressivos: Antanas Mockus, ex-prefeito de Bogotá, o dentista Carlos Rincón e o ex-ministro da Justiça Henrique Parejo. A queda de braço promete acontecer mesmo é com Carlos Gaviria, o candidato do chamado Pólo Democrático Alternativo (composto pela coalizão Alternativa Democrática - Frente Social y Político, MOIR, Unidad Democrática, Movimiento Ciudadano y Opción Siete), que é a aposta da esquerda democrática constitucional para virar o jogo na Colômbia. Carlos também é nascido no estado de Antioquia e igualmente um homem do Direito. É um renomado intelectual colombiano com larga trajetória na carreira de educador, visto que por quase 30 anos deu aulas na faculdade de Direito. Também como Uribe fez estudos de pós-graduação nos Estados Unidos, ocupou o cargo de magistrado da Corte Constitucional e foi senador da República.
Assim, entre aqueles que acreditam que pela via institucional pode-se chegar a um caminho para a paz na Colômbia, Gaviria aparece como uma possibilidade concreta. A campanha presidencial está apertada e tem suscitado momentos de tensão. Uribe se recusa a participar de debates e nega-se a discutir a vida do país com seu opositor. As FARCs, através de um de seus comandantes, Raul Reyes, divulgou na semana passada um comunicado apelando à união dos partidos políticos de esquerda para a formação de um governo pluralista, visando a paz negociada. Mas, este pedido não encontrou eco. Muitas foram as respostas de parlamentares de esquerda, alguns deles ex-guerrilheiros, de que não há qualquer possibilidade de acordo com grupos armados.
Assim, as propostas - pela via da eleição - estão polarizadas. Uma, a de Uribe, é seguir mais do mesmo, um estado terrorista, sempre atrelado aos Estados Unidos e a toda a política de submissão e subserviência. A outra, de Gaviria, é uma possibilidade de recuperação da soberania, fugazmente antevista naqueles dias em que Gaitán se preparava para assumir a presidência. Resta saber se haverá espaço para discutir o país com os grupos em armas. É certo que os tempos são outros, outros são os sonhos das gentes, mas alguns deles seguem os mesmos, como a paz, verdadeira, real, e a idéia de um país soberano e livre. Vários grupos em luta na Colômbia também deixam claro que não é o processo eleitoral ou mesmo a possibilidade de ter um político mais progressista na presidência que vai resolver todos os grandes dilemas vividos pelo país desde há séculos. Para eles, só o povo organizado e em luta pode mudar a vida, mas ocupar espaços e abrir brechas pode representar passos decisivos na direção deste ainda-não tão sonhado.
- Elaine Tavares - jornalista no OLA . O OLA é um projeto de observação e análise das lutas populares na América latina. www.ola.cse.ufsc.br
https://www.alainet.org/es/node/115295
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