A vitória de Lula

10/11/2006
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Os pobres reconduziram Lula à Presidência da República. Segundo o Ibope, apenas 11% de seus eleitores ganham mais de cinco salários mínimos por mês (R$ 1.750). Dos que recebem até dois salários mínimos (R$ 700), 56% votaram nele. Desse contingente, em 1989 apenas 37% deram seu voto ao candidato do PT.

A pesquisa se confirma quando encarada pelo nível de escolaridade. Neste ano, apenas 6% dos eleitores de Lula têm curso superior. Em 1989 eles somavam 11%, o mesmo índice dos que haviam atingido a 4a série do ensino fundamental. Agora, a turma que completou o primeiro ciclo soma 35%.

Vários fatores explicam o prestígio do governo Lula junto aos setores mais pobres da população. Houve aumento real do salário mínimo; cerca de 4 milhões de empregos formais foram criados para quem ganha 1 ou 2 salários mínimos; a inflação está sob controle; o preço dos gêneros de primeira necessidade mantém-se estável ou sofreu redução; o Bolsa Família distribui renda mínima para 11,1 milhões de famílias, beneficiando mais de 40 milhões de pessoas.

Tudo isso é pouco, pois não erradica as causas da miséria nem modifica as estruturas que situam o Brasil entre as dez nações mais desiguais. Porém, esse pouco é muito para quem nunca teve nada. Os governos anteriores não tinham políticas sociais. No máximo, ações emergenciais diante de enchentes ou estiagem prolongada, e arremedos, como a Comunidade Solidária, que atingiam um universo restrito de famílias.

Embora o Bolsa Família não esteja isento de corrupção, tanto no uso dos recursos quanto a beneficiários imerecidos, o fato é que eliminou os intermediários entre o cofre da República e o bolso da família cadastrada, através do cartão magnético. Essa distribuição de renda mínima representa uma injeção mensal de dinheiro nas regiões mais pobres, reativando o comércio local. O programa Luz para Todos de fato estendeu a energia aos rincões mais distantes e a agricultura familiar, responsável por 7 de cada 10 empregos no campo, tira proveito das linhas de crédito do Pronaf.

O que mais querem os pobres é dignidade. Isso significa emprego, moradia, escola, saúde. Sentir que, de alguma forma, o governo se preocupa com eles. A questão agora é como o governo agirá com aqueles que o elegeram: abrirá porta de saída para o Bolsa Família, de modo que os beneficiários produzam a própria renda, ou dará continuidade à dependência deles em relação aos cofres públicos?

A porta de saída reside em políticas que ampliem a oferta de empregos e, sobretudo, na reforma agrária. Não há indícios de que o governo Lula pretenda alterar a estrutura fundiária do país, ao contrário das teses defendidas historicamente pelo PT. No máximo, o governo continuará funcionando como um pronto-socorro de emergência frente aos conflitos fundiários: assentar acampados, desapropriar áreas sem interesse para o latifúndio etc.

O mais provável é que o governo dê prosseguimento à receita do Banco Mundial: tostões para os pobres e bilhões para os ricos. Assim, aplaca-se a ira nas duas pontas da estrutura social. Aos pobres, políticas sociais que exigem, do orçamento do Executivo, cerca de R$ 10 bilhões por ano. Aos ricos, detentores dos títulos da dívida pública, o Bolsa Fartura que lhes transfere anualmente aproximadamente R$ 100 bilhões.

Tudo parece simples se no porão das contas públicas não houvesse uma bomba prestes a explodir: os limites da relação dívida/PIB. Quanto mais – em valor e tempo – o governo pode transferir à cornucópia da elite? A resposta não parece animadora vista do buraco em que anda o pífio crescimento do país. Se o PIB crescer, pode-se suportar relativo crescimento da dívida pública. Mas como desatar o nó do crescimento sem cortar gastos públicos e reduzir os juros?

O governo quer manter acesa a vela destinada aos pobres e a fogueira que aquece a renda dos ricos. Até agora, a saída que encontrou para agradar uns e outros é aumentar impostos, hoje em 37,37% do PIB, e apertar ainda mais o cinto do ajuste fiscal. Assim, poderá manter a Bolsa Família e a Bolsa Fartura, e engordar sua poupança no exterior, hoje calculada em US$ 70 bilhões, um recorde comparado às administrações anteriores.

Talvez a opção do novo governo Lula seja mesmo a de manter o Brasil no banho-maria das políticas neoliberais, sem tocar nas estruturas que impedem a redução da desigualdade social e favorecem a multiplicação geométrica da fortuna dos 20% mais ricos da população. Se assim for, nem é preciso falar em “pacto social” ou “concertação”. Basta o PT entender-se com o PSDB e oficializar, como nos EUA, a alternância no poder, deixando o PMDB entregue à sua sina de “hay gobierno, soy favorable”.

Os descontentes que se organizem e mobilizem.

- Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Luis Fernando Veríssimo e outros, de “O desafio ético” (Garamond), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/118121
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