O condor segue voando
06/12/2006
- Opinión
Martin Almada não consegue passar despercebido, ainda que esteja no meio de uma multidão. Brilha nele um sorriso que tem um quê de menino, uma inocência, uma coisa pura, que sobressai e impressiona. Sabe-se lá de onde esse homem, que já viveu tanta dor, tira tamanha doçura. O certo é que ela ali está e se derrama, mesmo quando ele conta das horas mais amargas, da prisão, da tortura e da morte da primeira mulher.
O dono desta ternura abissal é paraguaio, nascido no ano de 1937, em Puerto Sastre, região do Chaco, e é referência mundial na luta pelos Direitos Humanos, tanto que, em 2002, foi o vencedor do prêmio Nobel da Paz Alternativo, oferecido pelo parlamento sueco. Foi ele quem encontrou os documentos que trouxeram à luz toda a podridão e o terror da Operação Condor, responsável pela morte de milhares de pessoas em toda a América Latina, no que as ditaduras militares chamavam de “luta contra a subversão”. Hoje, ele segue sua luta incansável para colocar na cadeia cada um dos que levaram a cabo a operação, e mantém firme a conduta de defensor dos ativistas populares que enfrentam a prisão ou o desaparecimento, pois como bem assinala: “o condor segue voando”.
Quando a América Latina foi tomada pelas ditaduras militares nos anos 60, Martin Almada era apenas um jovem professor que dirigia um colégio. Não tinha nenhuma compreensão do que era a luta de classes e tudo o que fazia era repetir os ensinamentos de cunho eurocêntrico que havia recebido. Até que um dia todo o seu mundo desmanchou-se no ar. Por acaso, encontrou um livro do educador brasileiro Paulo Freire e desde aí sua existência mudou radicalmente. Aplicar a idéia freiriana de transformação foi seu primeiro pecado durante a ditadura de Alfredo Stroessner. Depois, envolveu-se na luta social, dirigindo o sindicato dos professores. Naquele período teve ainda a ousadia de propor uma cooperativa de construção de casas, viabilizando o sonho de moradia própria dos educadores paraguaios. Era seu segundo pecado, mas ele nem sonhava que aquilo estaria voltando os olhares da repressão para sua pessoa.
Tempos depois partiu para a cidade de La Plata, na Argentina, onde faria seu doutorado discutindo educação e dependência. Já estava totalmente alfabetizado nas lutas sociais que pululavam no continente e tinha clareza de que a educação, tal como se aplicava, só beneficiava a classe dominante e que, esta, estava a serviço do subdesenvolvimento e da dependência. E foram essas idéias que chamaram a atenção do poder. Assim, tão logo colocou os pés no Paraguai, em 1974, retornando do doutorado, Martin foi seqüestrado de sua casa e preso, sendo submetido a um tribunal militar. Seu trabalho produzido na Argentina foi considerado pela ditadura como “terrorismo intelectual”, e aí começou seu calvário.
Seguindo o manual da malfadada Escola das Américas, os policias paraguaios iniciaram um período de violentas torturas. Por 10 dias seguidos, um coronel chileno e um chefe policial argentino infligiram os mais torpes sofrimentos ao educador. No mesmo período, a mulher de Martin - Celestina - também foi presa, e a tortura a que a submetiam era a de escutar, pelo telefone, as torturas sofridas pelo marido. Passados 90 dias da prisão de Martin, os torturadores cometeram mais uma vileza. Mandaram para a casa do professor, endereçada à sua mulher, que já estava livre, a roupa ensangüentada do marido, seguida de um telefonema: “Venha buscar o cadáver”. Golpeada pela dor, Celestina não resistiu e teve um infarto fulminante. Morreu sem saber que aquilo era só mais um momento de tortura. “Essa morte marcou minha vida pra sempre. Até hoje meus filhos me culpam por isso”.
A morte de Celestina levou Martin a uma greve de fome e em todo país começou um movimento - liderado pela igreja - pela sua libertação. Finalmente, em 1978, o professor, chamado de “terrorista intelectual” saiu da cadeia, exilado para o Panamá, onde o presidente era Omar Torrijo, um militar progressista. Lá, conhecido por sua conduta transformadora na educação, caiu nas graças do presidente que o convidou para assumir um cargo em Paris. E foi na França que Martin Almada viveu por mais de 15 anos, tendo sido inclusive consultor da UNESCO para assuntos de educação. “Foi um período difícil, longe da minha terra e convivendo com o ódio surdo dos filhos, pois, haviam repetido os militares, incessantemente, que eu havia matado minha mulher. Esta é uma chaga que ainda não foi cicatrizada. Hoje os filhos conseguem perceber melhor tudo que aconteceu, mas ainda não conseguimos superar”, diz, com os olhos marejados. O silêncio que se segue dá testemunho do tamanho da dor.
Há uma vontade férrea por trás do sorriso doce de Martin Almada. Ele nunca perdoou a ditadura de Stroessner por todo o terror que infligiu ao povo do Paraguai. Para além da sua tragédia pessoal, Martin não deu descanso aos que comandaram a tortura e a morte de milhares de outros homens e mulheres. Assim, tão logo pode voltar para o país, depois da morte do ditador, ele iniciou a cruzada que o levaria a descoberta de toda a documentação da Operação Condor, responsável pelo assassinato de mais de 100 mil pessoas na América Latina.
De volta ao Paraguai a primeira ação de Martin foi entrar na Justiça para saber os motivos de sua prisão, que tanta dor trouxe a ele e aos seus. Queria que o Estado respondesse o que vinha a ser um “terrorista intelectual”. Surpreso, descobriu que, para a polícia, ele nunca havia sido preso. Não havia arquivo algum que comprovasse. Ele não sossegou, insistiu na busca dos documentos. Impossível não existirem. Em algum lugar estariam. Um telefonema anônimo informou: “Estão fora do país. Esse monstro é maior do que pensas”. Martin continuou brigando na Justiça até que, em 22 de dezembro de 1992, encontrou. Eram milhares de documentos que comprovavam os convênios do terror que estabeleciam os países entre si. As ditaduras do Chile, da Argentina e até do Brasil celebravam contratos que garantiam préstimos na chamada luta anticomunista. No que ficou conhecido como Operação Condor – só na Argentina milhares de pessoas foram jogas, com vida, no mar - mais de 100 mil pessoas entre estudantes, intelectuais, dirigentes sindicais, camponeses e lideranças indígenas foram assassinadas. “Praticamente toda a classe pensante da América latina foi eliminada com essa operação, orientada pelos Estados Unidos e levada a cabo pelos governos ditatoriais”.
Hoje, Martin Almada atua como advogado no pequeno Paraguai. Ali, apesar de ter se acabado a ditadura, a luta dos empobrecidos segue dura e toda a reivindicação por direitos é criminalizada. No Paraguai estão em luta os povos originários, os camponeses sem-terra, os desempregados. “Eu sempre pensei que a educação mudaria o mundo, mas, aqui no Paraguai, vejo que, hoje, ser advogado é mais importante do que ser professor. Os pobres são largados a própria sorte na mão da Justiça, não têm ninguém por eles. Então, decidi que tinha de atuar por aí”. Por sua luta pelos Direitos Humanos foi condecorado pelo governo Francês, premiado no Brasil e recebeu o Nobel Alternativo.
Marcado pela dor, mas sem jamais se deixar vencer por ela, Martin segue a vida, defendendo os empobrecidos nas lutas judiciais e denunciando as arbitrariedades que se cometem, todos os dias, contra os que lutam por vida digna. Vigilante, ele mantém os olhos e a mente fixos nas asas do Condor. Não aquele, bicho, que embeleza o céu dos Andes, mas a lúgubre operação de assassinatos e desaparições que ainda segue sendo praticada nas entranhas de toda a América Latina.
- Elaine Tavares - jornalista. www.ola.cse.ufsc.br
América Latina Livre - www.ola.cse.ufsc.br
O dono desta ternura abissal é paraguaio, nascido no ano de 1937, em Puerto Sastre, região do Chaco, e é referência mundial na luta pelos Direitos Humanos, tanto que, em 2002, foi o vencedor do prêmio Nobel da Paz Alternativo, oferecido pelo parlamento sueco. Foi ele quem encontrou os documentos que trouxeram à luz toda a podridão e o terror da Operação Condor, responsável pela morte de milhares de pessoas em toda a América Latina, no que as ditaduras militares chamavam de “luta contra a subversão”. Hoje, ele segue sua luta incansável para colocar na cadeia cada um dos que levaram a cabo a operação, e mantém firme a conduta de defensor dos ativistas populares que enfrentam a prisão ou o desaparecimento, pois como bem assinala: “o condor segue voando”.
Quando a América Latina foi tomada pelas ditaduras militares nos anos 60, Martin Almada era apenas um jovem professor que dirigia um colégio. Não tinha nenhuma compreensão do que era a luta de classes e tudo o que fazia era repetir os ensinamentos de cunho eurocêntrico que havia recebido. Até que um dia todo o seu mundo desmanchou-se no ar. Por acaso, encontrou um livro do educador brasileiro Paulo Freire e desde aí sua existência mudou radicalmente. Aplicar a idéia freiriana de transformação foi seu primeiro pecado durante a ditadura de Alfredo Stroessner. Depois, envolveu-se na luta social, dirigindo o sindicato dos professores. Naquele período teve ainda a ousadia de propor uma cooperativa de construção de casas, viabilizando o sonho de moradia própria dos educadores paraguaios. Era seu segundo pecado, mas ele nem sonhava que aquilo estaria voltando os olhares da repressão para sua pessoa.
Tempos depois partiu para a cidade de La Plata, na Argentina, onde faria seu doutorado discutindo educação e dependência. Já estava totalmente alfabetizado nas lutas sociais que pululavam no continente e tinha clareza de que a educação, tal como se aplicava, só beneficiava a classe dominante e que, esta, estava a serviço do subdesenvolvimento e da dependência. E foram essas idéias que chamaram a atenção do poder. Assim, tão logo colocou os pés no Paraguai, em 1974, retornando do doutorado, Martin foi seqüestrado de sua casa e preso, sendo submetido a um tribunal militar. Seu trabalho produzido na Argentina foi considerado pela ditadura como “terrorismo intelectual”, e aí começou seu calvário.
Seguindo o manual da malfadada Escola das Américas, os policias paraguaios iniciaram um período de violentas torturas. Por 10 dias seguidos, um coronel chileno e um chefe policial argentino infligiram os mais torpes sofrimentos ao educador. No mesmo período, a mulher de Martin - Celestina - também foi presa, e a tortura a que a submetiam era a de escutar, pelo telefone, as torturas sofridas pelo marido. Passados 90 dias da prisão de Martin, os torturadores cometeram mais uma vileza. Mandaram para a casa do professor, endereçada à sua mulher, que já estava livre, a roupa ensangüentada do marido, seguida de um telefonema: “Venha buscar o cadáver”. Golpeada pela dor, Celestina não resistiu e teve um infarto fulminante. Morreu sem saber que aquilo era só mais um momento de tortura. “Essa morte marcou minha vida pra sempre. Até hoje meus filhos me culpam por isso”.
A morte de Celestina levou Martin a uma greve de fome e em todo país começou um movimento - liderado pela igreja - pela sua libertação. Finalmente, em 1978, o professor, chamado de “terrorista intelectual” saiu da cadeia, exilado para o Panamá, onde o presidente era Omar Torrijo, um militar progressista. Lá, conhecido por sua conduta transformadora na educação, caiu nas graças do presidente que o convidou para assumir um cargo em Paris. E foi na França que Martin Almada viveu por mais de 15 anos, tendo sido inclusive consultor da UNESCO para assuntos de educação. “Foi um período difícil, longe da minha terra e convivendo com o ódio surdo dos filhos, pois, haviam repetido os militares, incessantemente, que eu havia matado minha mulher. Esta é uma chaga que ainda não foi cicatrizada. Hoje os filhos conseguem perceber melhor tudo que aconteceu, mas ainda não conseguimos superar”, diz, com os olhos marejados. O silêncio que se segue dá testemunho do tamanho da dor.
Há uma vontade férrea por trás do sorriso doce de Martin Almada. Ele nunca perdoou a ditadura de Stroessner por todo o terror que infligiu ao povo do Paraguai. Para além da sua tragédia pessoal, Martin não deu descanso aos que comandaram a tortura e a morte de milhares de outros homens e mulheres. Assim, tão logo pode voltar para o país, depois da morte do ditador, ele iniciou a cruzada que o levaria a descoberta de toda a documentação da Operação Condor, responsável pelo assassinato de mais de 100 mil pessoas na América Latina.
De volta ao Paraguai a primeira ação de Martin foi entrar na Justiça para saber os motivos de sua prisão, que tanta dor trouxe a ele e aos seus. Queria que o Estado respondesse o que vinha a ser um “terrorista intelectual”. Surpreso, descobriu que, para a polícia, ele nunca havia sido preso. Não havia arquivo algum que comprovasse. Ele não sossegou, insistiu na busca dos documentos. Impossível não existirem. Em algum lugar estariam. Um telefonema anônimo informou: “Estão fora do país. Esse monstro é maior do que pensas”. Martin continuou brigando na Justiça até que, em 22 de dezembro de 1992, encontrou. Eram milhares de documentos que comprovavam os convênios do terror que estabeleciam os países entre si. As ditaduras do Chile, da Argentina e até do Brasil celebravam contratos que garantiam préstimos na chamada luta anticomunista. No que ficou conhecido como Operação Condor – só na Argentina milhares de pessoas foram jogas, com vida, no mar - mais de 100 mil pessoas entre estudantes, intelectuais, dirigentes sindicais, camponeses e lideranças indígenas foram assassinadas. “Praticamente toda a classe pensante da América latina foi eliminada com essa operação, orientada pelos Estados Unidos e levada a cabo pelos governos ditatoriais”.
Hoje, Martin Almada atua como advogado no pequeno Paraguai. Ali, apesar de ter se acabado a ditadura, a luta dos empobrecidos segue dura e toda a reivindicação por direitos é criminalizada. No Paraguai estão em luta os povos originários, os camponeses sem-terra, os desempregados. “Eu sempre pensei que a educação mudaria o mundo, mas, aqui no Paraguai, vejo que, hoje, ser advogado é mais importante do que ser professor. Os pobres são largados a própria sorte na mão da Justiça, não têm ninguém por eles. Então, decidi que tinha de atuar por aí”. Por sua luta pelos Direitos Humanos foi condecorado pelo governo Francês, premiado no Brasil e recebeu o Nobel Alternativo.
Marcado pela dor, mas sem jamais se deixar vencer por ela, Martin segue a vida, defendendo os empobrecidos nas lutas judiciais e denunciando as arbitrariedades que se cometem, todos os dias, contra os que lutam por vida digna. Vigilante, ele mantém os olhos e a mente fixos nas asas do Condor. Não aquele, bicho, que embeleza o céu dos Andes, mas a lúgubre operação de assassinatos e desaparições que ainda segue sendo praticada nas entranhas de toda a América Latina.
- Elaine Tavares - jornalista. www.ola.cse.ufsc.br
América Latina Livre - www.ola.cse.ufsc.br
https://www.alainet.org/es/node/118549?language=en
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