Olhar do sul sobre Caracas
- Opinión
“Acabou-se o período de transição na Venezuela e começa a era da construção real do socialismo e de uma mudança estrutural da sociedade na qual ocorrerá uma verdadeira distribuição de renda e se realizará a justiça social”, afirmou Hugo Chávez no discurso de vitória nas eleições presidenciais de 03/12/2006.
Em Caracas, a tarde deste domingo, 03 de dezembro 2006, se iniciou luminosa e a partir das quatro se transformou quase repentinamente em instável e chuvosa. De qualquer forma, as chuvas não prejudicariam mais as votações presidenciais que se encerravam justamente às 16 horas deste 03 de dezembro. Em uma avenida central do
Posteriormente, a presidenta daquela zona eleitoral declarou - e isso foi comprovado por várias testemunhas - que, quando, naquela zona eleitoral, ela declarou encerradas as eleições às 16:10 h, não tinha ninguém querendo votar. Encerraram a votação. Dez minutos depois, chegou um ônibus de pessoas trazidas pela oposição para votar. Como não puderam mais entrar, trouxeram uma câmara de televisão e começaram a protestar contra a lisura destas eleições. Quando viram chegar o ônibus cheio de observadores internacionais, começaram a gritar e a exigir que eles os ajudassem a forçar a entrada. Uma pessoa começou a atirar fogos de artifício para parecer tiros e aumentar o clima de confronto. Um segurança me pegou pelo braço: “Vamos sair daqui porque, em poucos minutos, a violência pode explodir”. Antes mesmo que eu pudesse optar, fui levado em meio à pequena multidão de volta ao ônibus. Seis observadores que chegaram primeiro conseguiram entrar e acompanhar por quase uma hora o processo de auditoria e depois de apuração.
Das oito da manhã ao meio dia e novamente das três da tarde às cinco, assim como os outros 400 observadores internacionais de mais de 50 países do mundo, pude visitar oito zonas eleitorais diferentes no centro da cidade, na periferia e em uma cidade do interior, próxima a Caracas. Outros companheiros foram para zonas rurais e outros viajaram de avião para cidades da fronteira. É difícil resumir minhas impressões que, em geral, senti que foram as da imensa maioria dos observadores. Partilho com vocês o que consigo formular:
1. Sobre a estrutura e a organização do processo eleitoral
Descobri que a Venezuela tem 25.028.715 habitantes recenseados, dos quais mais de 16.083.986 têm mais de 18 anos e estão inscritos como eleitores. Isso significa 59,51% da população ativa, o que é um índice bom na América Latina. Conforme a lei do país, o voto não é obrigatório. Entretanto, o resultado destas eleições mostra que o nível de abstenção foi o mais baixo de toda a história recente do país: 26%. Neste domingo de eleições, o que se via nas ruas era uma multidão de jovens e pessoas velhas, gente sadia e pessoas doentes sendo levadas para as seções eleitorais. Todos vestidos com sua melhor roupa como para uma grande festa. Filas imensas. Muita gente que saiu de casa às 03:30hs e às 04:00hs da madrugada para conseguir votar perto de meio dia. Uma manifestação de verdadeiro civismo. Por outro lado, uma multidão de mesários, de seguranças das seções e de testemunhas ou vigias dos diversos partidos. Todos trabalharam desde a madrugada e, em geral, o clima era de alegria e confraternização.
Quando eu vi aquelas filas imensas, achei que jamais eles conseguiriam fechar as votações às quatro da tarde. Surpreendentemente, entre quatro e cinco da tarde, todos os venezuelanos que quiseram tinham votado e o processo de votação tinha sido encerrado em paz.
As diversas delegações internacionais constataram que a forma de votação na Venezuela é das mais avançadas e seguras do mundo. De fato, a pessoa se apresenta na sua seção eleitoral e a primeira coisa é deixar as impressões digitais do dedo maior na máquina (catahuellas) que o registra e não permitirá mais em todo o país que o dono daquelas impressões possa votar de novo. Então, a pessoa assina sua rubrica na folha de eleição e vai até a máquina eletrônica que está protegida por uma pequena parede de papelão para garantir o segredo. Na máquina, há uma tela com a foto de cada candidato e o seu nome, ligado à bandeira e ao nome de um partido. O eleitor ou eleitora aperta o botão no candidato que quiser, seja na foto, seja na bandeira do partido e a máquina lhe mostra a cédula eleitoral para que ele possa ainda confirmar se aquela é mesmo a opção que ele escolheu. Se sim, ele confirma e a máquina imprime uma cédula eleitoral em papel que é o seu voto e ele deposita na urna lacrada que está no meio da sala.
É claro que este processo torna uma eleição mais lenta. Em alguns casos, para algumas pessoas mais velhas ou que tenham dificuldade de usar a máquina eletrônica, deixa o eleitor inseguro e houve mesmo alguns que acabaram anulando o voto, mas, de fato, todos os observadores se colocaram de acordo que esta forma garante uma segurança maior.
Vários brasileiros observaram que, diferentemente do Brasil, as ruas estavam todas limpas e não havia aquela multidão de papéis, santinhos e propaganda eleitoral sujando os postes e enchendo calçadas. Havia sim faixas e cartazes espalhados nos postes, mas dava uma impressão de mais ordem e menos bagunça. Alguém ponderou que estas eleições são somente presidenciais, ao contrário do processo brasileiro que sempre une votações em várias instâncias. Por outro lado, é verdade que isso deve corresponder também ao temperamento ou estilo do povo.
2 – Sobre o resultado das eleições
As votações se encerraram às quatro da tarde. Às oito, o Conselho Nacional Eleitoral proclamava o resultado ainda não oficial, mas garantido. Chávez tinha conquistado uma vitória maior do que das duas eleições anteriores a que concorreu e de uma forma que todos garantiam ser justa e democrática. Os diversos centros internacionais de observação e as comissões ligadas a organismos da ONU, OEA e União Européia declararam que as eleições foram limpas e democráticas. Elogiaram o processo como dos mais perfeitos e evoluídos do mundo atual.
Era uma vitória esperada. O que, antes, não se podia saber era a quantidade de votos de Chaves e a diferença proporcional entre governo e oposição. E circulava uma notícia de que Manuel Rosales, o candidato derrotado, não aceitaria a derrota e impugnaria a legitimidade das eleições, o que daria mais fôlego à tentativa do governo dos EUA e seus aliados de falar do processo venezuelano como ilegítimo e ditatorial.
Para dirimir qualquer dúvida sobre a lisura deste processo de votações, o Conselho Nacional Eleitoral, órgão que corresponde a um Supremo Tribunal Eleitoral no país, convidou 400 observadores internacionais para estar presente no país nestes dias e fazer uma supervisão de todo o processo eleitoral, podendo depois dar o seu testemunho independente e objetivo. Além disso, aceitou que percorressem o país e verificassem quaisquer seções eleitorais representantes de muitos grupos e organizações civis do mundo todo.
Encontraram-se nestes dias na Venezuela, além de diversos outros grupos, uma delegação de observadores do Centro Carter que tem vasta experiência em supervisionar eleições em diversos países, uma missão oficial da OEA (Organização de Estados Americanos) e uma Missão da União Européia com 79 delegados, vindos de 22 países da Europa.
Estes delegados estavam na Venezuela desde 21 de novembro, tiveram reuniões com representantes de todos os partidos políticos, puderam seguir o processo eleitoral e se espalharam pelos 17 estados do país para ver de perto o processo de votação neste domingo. A delegação européia foi liderada pela euro-deputada italiana Mônica Frassoni e uma equipe central de dez peritos que organizaram uma sede da delegação
Além
Todos estes observadores deveriam ter um papel importante se a oposição não aceitasse a derrota e tentasse desligitimar o processo. Entretanto, na noite do domingo, Manuel Rosales, candidato derrotado, foi à televisão e reconheceu a derrota. Isso pôs um termo final ao receio de que se instalasse no país uma situação de instabilidade política e confronto quase de guerra civil. O presidente Chávez recebeu o público no palácio e agradeceu a vitória com um discurso espontâneo e mesmo improvisado, mas muito claro e profundo. Em síntese, disse que, agora, acabou-se o período de transição e começa a era da construção real do socialismo e de uma mudança estrutural da sociedade na qual ocorrerá uma verdadeira distribuição de renda e se realizará a justiça social. É a revolução bolivariana que se define como uma revolução não violenta, de teor cultural indígena, de inspiração evangélico-cristã e de conteúdo socialista.
O povo tomou as ruas e começou a festa da vitória.
No hotel que hospedou a maioria dos observadores, era também evidente o clima de alegria, principalmente dos latino-americanos. Um deputado e uma deputada da FLMN de El Salvador, junto com um jovem porto-riquenho do partido que luta pela libertação de Porto Rico e ainda vários índios de Honduras riam e quase choravam de emoção. Descobri em todos estes países membros do Congresso Bolivariano dos Povos, instituição que, tenho certeza, a maioria dos brasileiros nem sabe que existe já instituída e funcionando. A vitória do presidente Hugo Chávez garante a consolidação deste processo revolucionário e de integração continental.
Para mim, foi um privilégio e uma responsabilidade muito grande estar aqui e representar a muitos irmãos e irmãs do Brasil que desejam ver o nosso continente tomado pelo espírito novo e transformador desta revolução bolivariana.
3 - Uma lição de civismo e democracia
Os diversos grupos de observadores emitiram cada um a sua nota. Na segunda feira, 04/12, à tarde, foram ao centro de imprensa do Conselho Nacional Eleitoral e cada grupo nomeou um/uma representante para ler o documento redigido. Todos reconheceram a beleza e honestidade deste processo democrático e felicitaram o presidente reeleito. O grupo dos observadores independentes reuniu-se no domingo à noite e se puseram de acordo para emitir a seguinte declaração:
Informe dos observadores do processo de eleição presidencial da República Bolivariana da Venezuela no dia 03 de dezembro de 2006.
Caracas, 04 de dezembro de 2006.
Os 400 observadores internacionais, convidados pelo Conselho Nacional Eleitoral, provenientes de diferentes âmbitos sociais de 96 países, composta por parlamentares, acadêmicos, pesquisadores, representantes de movimentos sociais e ONGs, magistrados de Tribunais Eleitorais, prefeitos e vereadores, juízes, intelectuais e religiosos, com uma vasta experiência em processos eleitorais, tendo como base a nossa observação, declaramos o seguinte:
1 – O processo eleitoral na República Bolivariana da Venezuela no dia 03 de dezembro de 2006 transcorreu de maneira pacífica, sem incidentes maiores, desenvolvendo-se com normalidade o direito constitucional ao voto.
2 – A participação eleitoral foi massiva, registrando-se os mais baixos níveis de abstenção na história eleitoral da República.
3 – A organização e operação do processo dirigidas pelo Conselho Nacional Eleitoral se realizou com eficácia e de acordo com previsões normativas. O cumprimento das normas eleitorais durante o dia foi corroborado de modo repetitivo pelas testemunhas das principais formações (partidos) presentes nas seções eleitorais.
4 – Esta observação internacional constata que o segredo do voto ficou garantido e que todas as pessoas que vieram às urnas puderam exercer livremente seu direito ao sufrágio.
5 – Verificamos que o processo automatizado de votação funcionou sem dificuldades significativas. As auditorias ocorridas por ocasião do encerramento das votações, auditorias presenciadas por observadores, coincidiram fielmente com os resultados expressos nos boletins do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) em cada uma das mesas.
6 – Quanto à captação das impressões digitais, podemos observar em algumas seções, seu uso implicou em uma maior duração do processo de voto, apesar do qual não se verificou nenhuma limitação no exercício do direito ao sufrágio. Igualmente se observaram alguns atrasos na abertura de seções eleitorais, assim como esperas excessivas para se poder votar. Em termos gerais, observamos uma conduta cívica por parte dos distintos membros das mesas e testemunhas que facilitaram todo o processo.
7 – Constatamos a independência do Conselho Nacional Eleitoral neste processo e vemos o seu trabalho como garantia do marco legal e constitucional da República Bolivariana da Venezuela, em consonância com o seu Estado de Direito e o aprofundamento do processo democrático.
Em nome de todos os observadores, assina a comissão central escolhida pelo conjunto.
- Marcelo Barros é Padre e monge beneditino, biblista e teólogo da Libertação, assessor da CPT, CEBs e MST.
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