Quero um mundo sem justiça

15/02/2007
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Entre os grupos sociais da etnia kichwa, no Equador, conta o advogado, professor e reitor da Universidade Intercultural Amawtay Wasi, Luis Fernando Sarango, as pessoas não tem a menor noção do que signifique a palavra justiça. Porque, sabem bem os autóctones, este é um conceito que só nasceu com o advento da sociedade burguesa, por sua vez originária na Europa. A idéia de justiça está colada ao chamado contrato social que as pessoas celebram para viver no espaço do burgo, da cidade. Está ligada a idéia de um código expresso de leis e normas feitas por uma parcela específica da sociedade citadina (os que dominam), e que organiza a vida de todos. Tem, portanto, um caráter universal, embora, no seu conteúdo majoritário, diga respeito aos interesses de uma classe em particular. Um exemplo disso é a intocabilidade da propriedade particular. Ora, se a maioria das gentes não tem uma casa própria, porque deve respeitar a intocabilidade da casa dos outros? Não parece paradoxal? Pois não o é nos códigos de leis que regem as sociedades.

Assim, a regra é simples. Seguimos com o mesmo exemplo usado acima. Quem não tem terra não pode pegar terra de quem tem. Está na lei. Mas, os que têm terra, e, portanto dinheiro, podem pegar as terras de quem não tem. É o que a gente vê todos os dias nos campos do Brasil. Quem são os grileiros? Então, a idéia de justiça volta a ficar obscurecida, embora juristas de toda a ordem existam para fazer com que a dita lei se cumpra. Deixando claro que quem rouba um tablete de manteiga vai para a cadeia na hora, mas um juiz que lesa a Previdência ou um presidente de banco que rouba o dinheiro do povo têm toda a sorte de subterfúgios para escapar do encarceramento. Esta é, enfim, a justiça da sociedade capitalista.

Entre os kichwas não há idéia de justiça porque entre eles a prática vivencial é a comunitária, ou seja, as terras são comunais, os trabalhos coletivos, o cuidado com as crianças é feito por todos, os velhos são respeitados como sábios. Quando alguém comete uma falta dentro do código que, segundo eles, garante o equilíbrio do cosmos - portanto não há justiça, e sim equilíbrio - a pessoa é chamada ao centro da comunidade e todos lembram a ela o quanto aquilo que fez foi errado. Ninguém fica confinado em presídios superlotados, onde podem virar feras. Eles são levados a assumir responsabilidades em prol da pessoa que prejudicaram. Se roubam alguém, o que é raro, já que quase tudo é de todos, precisam devolver. Se matam alguém, têm a obrigação de sustentar a família da vítima até o fim de seus dias, e assim por diante. Existem regras, leis, normas, códigos, mas tudo é construído coletivamente, na força da ancestral convivencialidade comunal.

Parece um sonho mítico? Uma utopia? É, parece. Mas em muitas comunidades no Equador, na Bolívia, na Colômbia, no Brasil, enfim, até nos Estados Unidos, onde ainda sobrevivem as gentes originárias, isso é praticado. Já nós, os cidadãos da pólis moderna, os filhos do sistema capitalista/burguês, temos a justiça. Aquela da qual eu falava. Com leis definidas por poucos, para todos. Com um sistema de punição e não de recuperação, de reflexão sobre o erro. E um jeito de viver baseado na competição, no egoísmo, na posse, no desequilíbrio, na desarmonia, no salve-se quem puder.

O resultado é esse que aí está. Cidades com seu tecido social esfacelado, produzindo uma multidão de prescindidos, gentes que não importam sequer ao sistema. Exércitos de desvalidos. Seres aos pedaços. Gente que se mantém viva - num mundo de caos e miséria - pendurada na droga, na cachaça, na fé cega, na ilusão de que pode “chegar lá”, nem que seja pela força do revólver. Gente acossada pela ideologia religiosa do capital, que não mede esforços para se igualar àqueles que a TV mostra, incessantemente, tal qual uma lavagem cerebral, como modelo de sucesso.

Então, quando os que conseguem ultrapassar, de alguma forma, as barreiras da miséria da cidade, se vêm cara-a-cara com os desvalidos, que tipo encontro pode haver? Um encontro amoroso entre diferentes que se respeitam? Claro que não! Há muito ódio, muita dor, muito rancor, muito medo. Então, quando nos toca viver algum desses desafortunados encontros, passamos a gritar por justiça. Mas, afinal, de que justiça falamos? De que direitos? Os nossos, só os nossos? No mundo de hoje têm sido comum as caminhadas por justiça. E, no mais das vezes, elas sempre são compostas por quem teve alguma experiência ruim. Poucos são aqueles, que nunca tendo vivido um encontro com a tragédia, se levantam em busca de justiça. A justiça no mundo capitalista virou um direito individual.

Eu, estúpida, sonho com um mundo sem justiça. Um mundo de equilíbrio, em que ninguém seja lobo do outro. Um mundo bonito, de riquezas repartidas, de jardins, onde todos possam ter a oportunidade de viver feliz, na comunhão com a natureza e com o cosmos. E, sonhando, caminho... construindo...construindo...

- Elaine Tavares – jornalista no Ola/UFSC. O OLA é um projeto de observação e análise das lutas populares na América Latina.

http://www.ola.cse.ufsc.br
https://www.alainet.org/es/node/119284?language=es
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