O zapatismo e a Via Campesina

02/08/2007
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A convergência da Via Campesina e o zapatismo tem como pano de fundo a intensificação da resistência camponesa (e indígena) contra o saque de suas terras

Há redes sociais alternativas que se tecem em silêncio, com discrição. A trama (os fios colocados verticalmente em um tear) e o urdimento (conjunto de fios dispostos longitudinalmente) da resistência ao neoliberalismo se cruzam com tenacidade e paciência. A convergência entre o zapatismo e a Via Campesina é uma dessas redes.

A recente participação de representantes de várias organizações integrantes da Via Campesina na mesa “Diante do espólio capitalista, defendamos a terra e o território”, organizada pela Outra Campanha, e o Encontro dos povos zapatistas com os povos do mundo, são apenas a última trama desse tecido.

Trata-se de uma etapa inaugurada publicamente em março desse ano, durante o início das atividades da segunda etapa da Outra Campanha em San Cristóbal de las Casas, quando João Pedro Stedile, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, do Brasil, e Rafael Alegría, da Campanha pela Reforma Agrária da Via Campesina, enviaram mensagens de vídeo ao EZLN. A história, no entanto, vem de antes. Em setembro de 2003, em plena reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Cancún, México, um grupo de agricultores coreanos, membros da Via Campesina, cortou um pedaço do grosso barbante que haviam tecido para derrubar as grades que separaram os policiais dos manifestantes que buscavam descarrilhar o encontro. Meteram a corda junto a uma carta em um envelope de papel de cânhamo e escreveram o nome do destinatário do seu presente: subcomandante insurgente Marcos, Exército Zapatista de Liberación Nacional.

Apenas dois dias antes, os zapatistas haviam enviado à Via Campesina umas mensagens gravadas em vídeo, de apoio e solidariedade com sua causa. As saudações foram recebidas com regozijo pelos delegados do agrupamento camponês internacional.

Os sinais mútuos tinham história. Em julho de 1999, no centro de Seul, a capital da Coréia do Sul, integrantes de várias organizações, entre as quais se encontrava a Liga dos Camponeses Coreanos, protestaram contra os organismos financeiros multilaterais, realizando uma performance. Nela, realizou-se uma conversação imaginária entre George Soros e Marcos, na qual o líder rebelde deu um banho retórico ao mestre da especulação.

Recentemente, no marco dos trabalhos do Fórum Social Mundial, efetuado em Nairóbi, Quênia, a Via Campesina lançou o capítulo africano da Campanha Global pela Reforma Agrária. Na ocasião, Diamantino Nhampossa, de Moçambique, representante da UNAC (União Nacional de Camponeses), assinalou: “Há 500 anos, o colonialismo tomou nossas terras. Desde a década de 1980, nossas terras estão sendo tomadas pelo Banco Mundial. Na atualidade, o único que nos resta é nos mobilizarmos e organizarmos campanhas como essa, para motivar as pessoas a lutares por seus direitos”. No encerramento do ato, um grupo de camponeses e camponesas da África receberam sementes autóctonas de milho maia, enviadas pelos zapatistas mexicanos.

Reforma Agrária

A convergência entre Via Campesina e o zapatismo tem como pano de fundo o regresso da reforma agrária na Ásia, África e América Latina, ou, mais adequadamente, da intensificação da resistência camponesa (e indígena) contra o saque de suas terras, territórios e recursos naturais. Esse moderno processo de espoliação e resistência tem um fundo: a disputa entre dois modelos agrícolas distintos. De um lado, a agricultura industrial de monocultura, de vocação exportadora, baseada no uso intensivo de agroquímicos e maquinaria, controlada por grandes consórcios transnacionais, sem camponeses. Do outro, a agricultura camponesa diversificada, produtora de alimentos sadios, rica em uso de mão-de-obra, defensora da sustentabilidade e dos recursos naturais.

Ambos modelos disputam terra, água e sementes. Para o primeiro, a terra é uma mercadoria, mas que deve ser concentrada para chegar a economias de escala, e que não necessariamente deve ser cuidada, já que muitas vezes é arrendada. Para o segundo, por sua vez, a terra é o elemento vital para seu trabalho e, para os povos indígenas, é a mãe, a Pacha Mama, e não uma mercadoria para fazer negócio.

O cultivo de cana-de-açúcar, grãos e palma em grandes desertos verdes para fabricar etanol, hoje em voga, agravará ainda mais os problemas de sobrevivência da produção camponesa e estimulará a concentração da terra.

Salvo na Venezuela e na Bolívia, onde caminham com muita dificuldade reformas agrárias que seguem uma via distinta das reformas agrárias de mercado impulsionadas pelo Banco Mundial, o assunto parece não preocupar os Estados. Passaram-se 28 anos desde que, em 1979, realizou-se a primeira conferência internacional sobre a reforma agrária. Há 16 meses, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) efetuou a segunda conferencia internacional sobre esse assunto em Porto Alegre, Brasil. No entanto, só 80 dos 188 países convidados enviaram delegações à reunião, e nenhum chefe-de-Estado participou dela.

A convergência entre Via Campesia e o EZLN marcha à margem das organizações rurais mexicanas que participam da rede internacional. No México, são integrantes da Via: a Unorca, Anec, Cioac, Coduc, CNPA, CCC a Frente Democrática Camponesa de Chihuahua. O zapatismo vem tendo fortes conflitos com várias delas em Chiapas. Apesar disso, integrantes da Via Campesina de países como Índia, Coréia do Sul, Tailândia ou Brasil se encontram no México para dialogar com os rebeldes e analisar o que podem fazer em comum e para onde podem marchar juntos. Não há, entre as organizações rurais do país, nenhuma que possa disputar o prestígio e a autoridade que os rebeldes mexicanos têm entre os camponeses em luta de todo o mundo. (La Jornada)

Fonte: Brasil de Fato
http://www.brasildefato.com.br
https://www.alainet.org/es/node/122587
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