Conclusões da reunião latino-americana do fórum mundial das alternativas

24/03/2008
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Quito, 26 a 29 de fevereiro de 2008.

Na América Latina, novas e múltiplas iniciativas procuram dar respostas às necessidades econômicas, sociais e culturais das populações profundamente afetadas por décadas de neoliberalismo. Estes esforços são uma aposta na superação da crise generalizada do modelo econômico capitalista mundial que foram o tema de vários encontros continentais como “Em Defesa da Humanidade”, os encontros sobre a globalização, as reuniões internacionais contra o neoliberalismo, os Fóruns Sociais das Américas, entre outros.

O desequilíbrio ecológico e o aquecimento global, conseqüência da exploração dos recursos naturais em particular dos recursos fósseis, afetam a todas as regiões do mundo e se fazem sentir mais intensamente nas regiões mais deprimidas, e dentro delas, nos setores empobrecidos.

Há uma crise financeira que se expressa na queda do dólar, na insolvência dos bancos, no incremento da dívida entre outras coisas, que fazem parte da crise de conjunto do sistema de produção e distribuição.

Há uma crise do Estado colocado a serviço do capital; há um  questionamento e deslegitimação dos governos, de partidos políticos e  da construção de espaços e processos democráticos; problemas sociais  que desembocam na exacerbação da violência como método da solução dos  conflitos cotidianos; desorientação cultural, produto da hegemonia de  uma cultura de progresso sem limites e excludente, que provoca  desesperança, visões fatalistas e a emergência de fundamentalismos  religiosos. Pode-se afirmar que a tudo isso se soma o fato de que a  maior parte dos meios de comunicação é dominada pelos interesses do  capital e servem como instrumentos de deformação da consciência.

A guerra é o instrumento que o sistema capitalista não titubea em  utilizar para se apropriar dos recursos naturais, em particular  energéticos, como no Iraque e no Afeganistão, ou para resolver as  contradições internas, não descartando o uso de armas nucleares. A  região não está à margem dessa estratégia geopolítica que ainda  repercute em uma crise militar.
 Está claro que se trata de uma crise estrutural e não somente  conjuntural, uma crise de modelo de desenvolvimento de tipo  civilizacional que exige uma readequação de parâmetros ao qual a  lógica do capitalismo não pode responder.

Exige-se construir na prática a teoria de um pós-capitalismo, ou seja,  socialismo sobre a base de princípios que incluam o uso sustentável  dos recursos naturais e sua apropriação social, a predominância do  valor de uso, ou seja, respostas às necessidades das pessoas sobre o  valor de mercado, uma democracia generalizada em todas as relações  sociais, políticas, econômicas, culturais, de gênero e a  multiculturalidade, permitindo a todas as culturas, saberes,  filosofias e religiões dar a sua contribuição particular a uma nova  construção social.

Na América Latina as resistências ao modelo têm sido e são numerosas,  se encontram em todos os setores populares: camponeses, operários,  povos indígenas, afrodescendentes, mulheres e jovens. Observam-se  novas experiências do tipo cultural: na literatura, na música, na arte  e na religião com uma releitura da Teologia da Libertação. Grandes  convergências das resistências têm se manifestado frente à *ALCA* e  aos Tratados de Livre Comércio. Estas convergências manifestam-se nos  diferentes Fóruns Sociais.

O fato novo é que na região se passou das resistências à busca de  alternativas que expressem a construção de novas institucionalidades  através dos processos de Assembléias Constituintes; o desenvolvimento  de processos de integração como a Alternativa Bolivariana para a  América Latina (*ALBA*), os trabalhos articulados das redes e os  instrumentos de comunicação como a *Telesur *e o *Satélite Simón  Bolívar*. Vários aspectos da experiência latino-americana ajudam a  compreender como a lógica do capitalismo pode ser confrontada para  entrar em um processo de transição ao socialismo. São processos  diversos, com atores múltiplos que enfrentam oposição radical em  função dos interesses de classe ou de grupos dominantes. Encontram,  como todos os processos sociais de organização, de ordem cultural,  éticas e ideológicas. São processos dialéticos que exigem  determinação, realismo, estratégias concretas, mas sobretudo clareza  de visão.

Com o objetivo de aprofundar esse debate se faz necessário incorporar  dimensões econômicas, sociopolíticas e culturais do processo como um  passo dentro da dinâmica de mudança.

* I – DIMENSÃO ECONÔMICA*

*A – A crise do capitalismo e a sua superação na América Latina *

*1 – O capitalismo mundial está imerso em uma crise sistêmica grave*

Com o neoliberalismo, o setor produtivo tende a crescer cada vez  menos. O setor financeiro especulativo se tornou dominante e é o  centro da crise econômica, financeira, política, social, militar e  cultural. Estamos próximos ao limite da produção mundial de petróleo e  a água e os recursos minerais se tornam recursos cada vez mais  escassos. Por outro lado, apresenta-se uma disputa entre os  biocombustíveis e os alimentos pelo uso da terra, o que encarece a  produção dos últimos.

As maiores reservas de recursos naturais se encontram no Sul e são  ferozmente disputadas pelos países dominantes que geram guerras que  tendem a ampliarem-se para outras regiões do planeta. Por essa razão,  para se proteger da crise, é preciso que os países latino-americanos  reivindiquem a soberania dos seus recursos naturais, que possuem um  peso determinante na economia mundial e para a sua própria sobrevivência.

Acompanha a atual crise econômica e financeira, uma crise ecológica e  de recursos naturais. Estes não são suficientes para atender o atual  estilo ocidental de vida; atualmente os 20% da população mundial,  concentrada no Norte, consomem 80% dos recursos naturais.

Assiste-se a uma distribuição extremamente desigual da riqueza e da  renda, alimentada por um fluxo permanente do Sul ao Norte. É  necessário um processo de redistribuição da mesma em função dos países  pobres e dos setores populares.

O século XXI é um período de esgotamento das reservas das  matérias-primas, e esta realidade configura uma nova situação e um  problema muito grave para a humanidade. Os preços ascendentes dos  minerais conduzem a uma deformação da estrutura econômica dos países  possuidores desses recursos. Por outro lado, a taxa de inflação dos  produtos agrícolas é hoje o dobro da taxa de inflação geral.

Com a imposição do modelo neoliberal, a corrupção vinculada ao poder  converteu-se em uma forma de apropriação de recursos que degrada a  funcionalidade do setor público. Esta desestruturação do Estado  implicou na decomposição generalizada em todos os níveis da sociedade.  A corrupção é constitutiva da lógica econômica das transnacionais e  das elites, ao mesmo tempo em que a sua ação nas economias  periféricas, ao priorizar a acumulação de lucros, distorce as funções  racionais da economia em prejuízo da provisão de bens, serviços e  emprego para as suas respectivas sociedades e agrava a renovação dos  recursos naturais.

*2 – Quais podem ser os passos que se podem dar na América Latina para  mitigar a crise?*

Aos países latino-americanos não lhes convém mais possuir suas  reservas internacionais em dólares. Entretanto, as moedas de todos os  países estão presas ao dólar. Isto é uma fragilidades estratégica, já  que hoje o dólar está perdendo o seu papel de reserva internacional.  Atualmente, a grande maioria delas se encontra em bônus presos aos  Estados Unidos recebendo rendimentos baixos, enquanto a dívida externa  latino-americana é paga a taxas de lucro muito mais altas. É  recomendável diversificar e mudar de moeda de referência.

A alta de preços dos alimentos básicos é uma tendência a longo prazo.  A importação de alimentos, sobretudo transgênicos, é um fenômeno  preocupante e cada vez mais generalizado. Diante de uma crise é  fundamental garantir a soberania e a segurança alimentar.

A nacionalização e o controle soberano sobre os recursos naturais,  resultaram em um processo muito difícil num passado recente. O  aprofundamento da crise internacional pode oferecer uma melhor  oportunidade para a nacionalização e a socialização dos mesmos. Diante  de uma crise mais profunda, o controle sobre os preços dos recursos  naturais pode ser favorecido através de um acordo de preços Sul-Sul,  seguindo o exemplo da *OPEP*.

O aprofundamento da crise atual é uma oportunidade para se desconectar  das políticas neoliberais e para (re)conectar-se com as necessidades e  demandas populares e orientar a economia para um desenvolvimento  auto-centrado e não baseado no fomento das exportações. Assim, é uma  oportunidade de recuperar o controle sobre os fluxos financeiros, em  particular sobre os capitais especulativos para reduzir a  vulnerabilidade de nossas economias.

*3 – O que é possível fazer?*

Os países latino-americanos deveriam desenvolver uma maior reflexão  sobre a necessidade de criar uma moeda única regional. Impulsionar a  criação de um sistema multilateral de pagamentos que favoreça os  intercâmbios com o objetivo de criar uma nova arquitetura financeira  regional.

A integração latino-americana não pode ser tratada no abstrato, mas  sim no concreto, e não deve ser postergada. A integração que  propugnamos é a união dos povos, não dos mercados, construída a partir  dos interesses populares, não apenas a partir dos aspectos econômicos,  mas sobretudo a partir da totalidade da sociedade. Se não se muda o  caráter do Estado, a integração será sempre em benefício do capital. O  tema do *Banco do Sul* precisa ser colocado nestes termos: saber a  quem vai se beneficiar e para que.

Os governos devem priorizar políticas que busquem salvaguardar as  reservas naturais e utilizá-las para atender as necessidades da  população. Ou seja, recuperar o campo para preservar a soberania e a  segurança alimentar, assim como os recursos naturais.

Devemos construir uma sociedade que seja sustentável com a natureza,  às necessidades humanas presentes e futuras, com uma ética solidária,  definidas desde os setores populares, tendo como fim a construção de  uma sociedade socialista baseada em valores da solidariedade,  liberdade, democracia, justiça e equidade.

Diante da crise, inviabilidade e contradições do sistema existente se  faz necessário uma ruptura imediata e profunda, assim como a  construção de novas alternativas e o aprofundamento das que já estão  em marcha, tais como a *ALBA*, o *Banco do Sul*, a *Telesur *etc.

*B.- A Integração Latino-americana como forma de resposta *

*A Crise*

A crise capitalista criou um espaço de oportunidades para os povos da  América Latina e dependerá da acumulação das forças sociais políticas,  a orientação que tomarão os processos de integração.

O período de crise parece ser muito mais forte do que se acreditava. É  um período de crise de transformação qualitativa das estruturas do  sistema dos últimos 30 anos. Instalou-se um sistema de competitividade  em base de baixos salários, com deslocalização das transnacionais que  permitiu a aparição da China como ator fundamental.

Nos EUA, é já uma crise de solvência dos bancos, os instrumentos de  salvação fracassam e se avizinha uma recessão com forte impacto social  com menos capacidade de repassarem a sua crise para os seus rivais  competidores.

A novidade consiste na incerteza sobre o papel que poderá jogar a  semi-periferia em uma compensação parcial da crise, num cenário de  ascenso de países semi-periféricos associados com grandes empresas  transnacionais. Esses países estão juntos na nova divisão  internacional do trabalho; uns com produção de salários baixos e  outros aproveitando o ciclo de ascenso das matérias primas.

É uma crise planetária pelas conseqüências devastadoras sobre o meio  ambiente mas cujo impacto recai primeiro nos países do centro e não  apenas na periferia. O grau de alcance da crise (de desaceleração ou  de recessão profunda) e a forma em que desemboque vai ser determinante  para o curso da integração, tanto no interior da América Latina e do  Caribe, como em suas relações com o resto do mundo. A crise pode  terminar consolidando a hegemonia capitalista em suas diversas versões  fazendo uso da força militar, legitimada na política de segurança  nacional, como aconteceu com o fim da crise dos petrodólares com uma  contra-ofensiva transnacional, como a da dívida e os ajustes  neoliberais; ou com o fortalecimento dos processos de mudança nos  países da América Latina e o surgimento de formas alternativas de  integração de união dos povos.

*Os passos e os desafios*

Toda crise busca a reacomodação das forças. A perda do domínio dos  Estados Unidos e o estancamento das negociações na *OMC*, reacendem  atores na luta pela hegemonia.

O correlato dessa crise de livre comércio é também o esgotamento das  políticas neoliberais mais violentas dos anos 1990. Alguns governos,  como os de *Uribe, Calderón* e *Alan García*, mantêm essa política e  governos que não tem esse rosto direitista como o Chile, mantém uma  política neoliberal de desigualdade social e privatizações. Esta linha  dos 90 está em crise, entretanto em alguns países a pesar de ter  havido mudanças políticas importantes se mantém traços fundamentais do  modelo.

À perda de força dos Estados Unidos na imposição do seu modelo, se  somam às experiências de luta de resistência dos povos à ofensiva dos  ajustes neoliberais e em defesa dos seus territórios e recursos, numa  época de escassez dos combustíveis fósseis junto à destruição ambiental.

Neste contexto, os projetos de integração econômica dos anos 60,  *ALALC* e *Pacto Andino*, reconvertidos nos sub-regionais do  *MERCOSUL* e *CAN*, surgindo acoplados à expansão instrumentada pelos  ajustes neoliberais, começam a perder a sua força original.

A lógica de integração econômica hemisférica de inserção à economia  mundial transnacional, hoje fragmentada, poderá ser reorientada e  adequar-se para manter os mecanismos de dominação. A crise sistêmica  pode permitir mudanças radicais e a emergência de outra lógica de  integração comandada pela união dos povos.

O *MERCOSUL*, apesar das limitações estruturais, continua avançando.  Deve se reconhecer que o marco institucional flexível do *MERCOSUL*  admite a disputa entre diferentes concepções de integrações. Continua  o debate sobre a entrada da Venezuela e o eventual ingresso da Bolívia.

Mas, para além disso, é evidente que o *MERCOSUL* se fortalece  economicamente por excedentes comerciais, acumulação de reservas  internacionais, dados evidentes do fortalecimento dos setores  dominantes na América do Sul. Um ator fundamental desse processo são  as transnacionais, que expressam uma nova modalidade de associação  internacional de classes dominantes com interesses próprios e com  nexos importantes na região. O correlato dessa fisionomia social, cuja  perspectiva vai depender basicamente do Brasil, de se as elites do  Brasil apostam ou não apostam em um projeto regional.

A crise em que entra a *CAN*, a partir da /Denúncia/ do tratado pela  Venezuela em abril de 2006 e das diferentes políticas entre o Perú e a  Colombia de um lado e o Equador e a Bolívia, por outro, agravado pelos  *TLCs* do Perú e da Colombia e a negociação com a União Européia, a  mantém em um terreno inativo, buscando sobreviver a través da entrada  do Chile e da proposta de que a *UNASUR* se constitua na convergência  institucional da *CAN* e do *MERCOSUL*.

*UNASUR* se debate entre constituir-se sobre um tratado radical, como  o proposto na *Cúpula dos Povos em Cochabamba* (dezembro de 2006), com  a presença protagônica dos sujeitos sociais e políticos, ou de  fundar-se sobre a convergência institucional da *CAN* e do *MERCOSUL*  favoráveis ao processo de expansão capitalista, com uma agenda  encabeçada pelo *IIRSA* (Iniciativa para a Integração da  Infra-estrutura Regional Sul americana) que é o único acordo firmado  entre os 12 países que inclui mais de 500 megaprojetos com um custo de  mais de 400 bilhões de dólares, como projeto de integração física que  tem como objetivo final principal, facilitar a extração da riqueza  produtiva latino-americanas com a intenção de criar uma nova  geopolítica do espaço territorial.

*As Propostas*

A América Latina tem diante de si três opções de integração  internacional que terão profundas implicações econômicas, políticas,  sociais no futuro do continente.

* Aprofundamento da neocolonização com base em acordos de livre
§*  comércio e de proteção de investimentos com os Estados Unidos e seus  satélites.

 *A aposta em um novo desenvolvimento capitalista, tal qual é
§*  realizado no *MERCOSUL* com o Brasil e a Argentina.

* Inscrever-se nos processos com horizonte socialista na
§* *ALBA*.

A integração pela União dos Povos é o que sugere a *ALBA*. A *ALBA* é  um projeto político e soberano que substitui os princípios da  competividade e do livre comércio, pela ética da solidariedade,  perseguindo a complementaridade produtiva e o intercâmbio compensado.  As propostas de integração da *ALBA* se alimentam da cultura coletiva  dos povos originários valorizando o ‘bem viver’ frente ao ‘viver  melhor’. A ALBA se fortalece com os Tratados de Comércio entre os  Povos (*TCP*). A *ALBA* propõe integrar as capacidades humanas junto  às riquezas territoriais para satisfazer necessidades de produção e  reprodução da vida. Hoje, impulsionam essa proposta com uma clara  vontade política antiimperialista, Cuba, Venezuela, Bolívia e  Nicarágua. À *ALBA* se incorporam os movimentos sociais através de  convênios de cooperação social.

A elaboração política dos convênios da *ALBA* exige que se discutam  dois grandes problemas da agenda latino-americana: as nacionalizações  e as finanças.

* A nacionalização dos recursos naturais é um tema latino-americano,
§*  depende da decisão soberana de cada país, mas é chave para a  utilização produtiva. A nacionalização não é apenas a antítese da  *REPSOL*, da velha *PDVSA*, também é a antítese da *PETROBRAS* atual  ou da *PEMEX*. Não se trata que a empresa seja formalmente estatal  como a *PETROBRAS*, que com as suas ações limita o alcance da política  soberana de Evo Morales. Necessitamos nacionalizações genuínas ao  serviço dos interesses do projeto popular latino-americano.

 *As finanças. O problema da dívida não desapareceu como tema
§*  importante para certos países, ainda que não com a relevância imediata  que se apresentava nas décadas passadas. Mas é como um câncer potente,  não se pode esquecer que antes da crise de 82 não aparecia como  problema e de repente estourou. Enquanto a dívida persista  constitui-se em um perigo.

Outro problema é a discussão sobre o *Banco do Sul*. Temos que dar  continuidade ao perfil que vem sendo adotado pelo Banco. Há Bancos  muito importantes como o *BNDES* do Brasil, estatal, que pelo seu peso  é quase um *Banco do Sul* e, o que faz é financiar as multinacionais.  Não podemos chegar a ter um Banco do Sul que financie as  transnacionais. Um dos perigos que corre o *Banco do Sul* é o de  contribuir com a reorganização da arquitetura financeira continental  em condição favorável para a resolução das crises a favor dos  poderosos e não dos povos.

É preciso aproveitar a oportunidade que gera a crise do capitalismo e  os avanços políticos na América Latina para dar passos até a transição  ao socialismo. Um projeto de integração plena, socialista, tem muitos  pontos em comum com os princípios da *ALBA*, mas vai para mais além. O  central é a vida em comum com a natureza, a redução crescente das  desigualdades sociais e o respeito pelos projetos pluriétnicos e  multiculturais em um mundo sem explorados, nem exploradores. Os  projetos populares avançam na medida em que se fazem reais com  reformas sociais que lhe dão legitimidade. Uma contribuição importante  desde a América Latina para o Fórum Mundial de Alternativas é destacar  que em nossa região estão surgindo uma variedade de alternativas ao  calor das rebeliões populares que possibilitam desenvolver uma  importante consciência anti-neoliberal, antiimperialistas e  anticapitalista rumo ao socialismo.

*II.- DIMENSÃO SOCIOPOLÍTICA *

*1. A SITUAÇÃO EM NOSSO CONTINENTE*

Abre-se um novo processo histórico na América Latina, caracterizado  por acontecimentos que questionam radicalmente a vigência do modelo  neoliberal e que abrem à possibilidade de mudanças profundas. Vivemos  um período de transição que combina a luta contra o neoliberalismo, o  capitalismo e o império em uma busca original na construção de  alternativas pós-capitalistas e socialistas.

Atravessamos uma conjuntura de mudança que apresenta elementos e  processos múltiplos que oscilam “entre o que não pode deixar de ser e  o que, todavia não é”. Os movimentos sociais e organizações políticas  em suas diferentes formas são protagonistas indiscutíveis da história  regional contemporânea, em que está em jogo a configuração do Estado e  sua institucionalidade, o exercício de uma cidadania que inclua  setores historicamente excluídos, a convivência inter e multicultural  e a democracia.

O processo de resistência e luta em nosso Continente tem diferentes  tempos e ritmos. De um lado, estão os países onde estão se produzindo  reformas radicais e transformações mais profundas; outros, em que os  governos progressistas caíram na administração da crise, e outros, no  qual os movimentos sociais desde a oposição, desenvolvem lutas contra  o imperialismo e o sistema. Esta conjuntura abre expectativas para o  triunfo de novos governos progressistas na região.

A presença dos atores sociais é múltipla e configura um panorama  extremamente complexo onde se destaca a ação dos povos originários e  dos movimentos indígenas que passaram da reivindicação étnica à luta  pelo governo e o poder, das mulheres e dos trabalhadores de empresas  públicas estratégicas. Esta participação se combina com o trabalho dos  movimentos políticos revolucionários em diversos setores. A direção  das lutas não é uniforme, em alguns casos, surge das bases e também da  transformação de movimentos sociais em organizações políticas; em  outros, vem desde cima, da iniciativa dos governos.

A combinação de tarefas, no período de transição, de resistência ao  imperialismo e ao sistema com as de governo, tem recolocado a relação  entre movimentos sociais, partidos políticos e governo e, em alguns  casos, como tema não resolvido.

O discurso dos atores sociais mais fortes passou da defesa das  condições de vida à defesa dos recursos naturais, à proposta de um  Estado plurinacional, à convocação de Assembléias Constituintes.

Os processos eleitorais se converteram em um instrumento para o acesso  das forças populares ao governo aproveitando as estruturas  institucionais existentes. A convocação das Assembléias Constituintes  é a aposta institucional dos movimentos.

O uso por governos progressistas dos excedentes gerados pela  exploração de recursos naturais para financiar o seu desenvolvimento e  a cooperação com outros países converteram-se em uma base para a  integração regional. Cuba, por sua vez, contribui com um paradigma de  solidariedade apoiando com seus limitados recursos a outros países da  região.

*2. Tarefas. **O que é possível fazer em função do socialismo ou do  pós-capitalismo?*

/Entre as diversas tarefas destacam-se as seguintes:/

• Ter presente a presença ativa do imperialismo em sua fase atual e  dos perigos que ele entranha para a humanidade e para os povos do  terceiro mundo, concretamente para os povos da América Latina e os  atuais processos de governos populares ou de esquerda.

• Prestar a atenção para as possibilidades que se abrem na atual  conjuntura continental em cada país com o objetivo de articular as  lutas de resistência com os processos eleitorais, entendendo os  governos como instrumentos políticos para aprofundar o processo de  mudanças e a construção do sujeito revolucionário, não como um fim em  si mesmo. É importante para isso o papel vital que cumprem as  Assembléias Constituintes baseadas na mais ampla participação popular.

• A organização política tem entre as suas responsabilidades e  potencialidades a de superar a setorialidade e setorialização dos  olhares, das lutas e as propostas e os atores, reconstruir o tecido  social (a sociedade) e a consciência, ou seja, desenvolver redes  sociais, econômicas e culturais etc.

• A construção do ator coletivo, força social e política capaz de  protagonizar e impulsionar os processos de mudança: articular  partidos, movimentos sociais, e outras organizações, criar frentes  políticas, coordenações conjunturais, etc. Levar em conta o peso  específico que tem os indígenas, negros e mestiços. Considerar também  o papel que podem desempenhar as classes médias. Buscar temas e  interesses para incorporá-los à plataforma alternativa.

• Assumir o lugar central da batalha cultural, nas distintas  manifestações e âmbitos em que ela existe e se desenvolve: construção  de subjetividades, imaginários, ideais, não apenas para combater a  hegemonia dominante e de dominação, mas sim como meio para a  conformação de uma cultura alternativa, socialista própria. Isso exige  em primeiro lugar a transformação de nós mesmos.

• A transformação cultural supõe também a construção de um novo  pensamento crítico, e também as vertentes indo-afro-latinoamericanas.  Isto implica incluir a descolonização.

• Assumir a formação política como um elemento estratégico central de  qualquer política na atualidade.

• Construir a unidade como articulação de identidades e referências  diferentes e múltiplas, não como unicidade. Abandonar as relações  hierárquicas e subordinantes entre os atores sociais e políticos e  construir uma organização horizontal, sem confundir isto com o  espontaneísmo, nem o basismo etc.

• Apostar na democracia social popular participativa e desde a base,  como objetivo e meio. Recuperar direitos, colocá-los em exercício e  construir cidadania ativa, crítica e transformadora que incorpore os  setores historicamente excluídos.

• Trabalhar o desenvolvimento permanente do internacionalismo,  alimentando-o com as lutas independentistas e anticapitalistas dos  povos. • Tomar a solidariedade como base de um modo de vida superador  do individualismo do mercado anticapitalista, incorporando-o à batalha  cultural e ética pela nova civilização humana.

• Assumir o socialismo como perspectiva histórica de luta pela  construção de uma nova civilização humana, assumindo a tarefa de  atualizá-lo e revitalizá-lo com os ensinamentos das experiências do  século XX e as novas experiências de luta dos povos, particularmente  latino-americanos.

*De imediato:*

• Assumir as tarefas de formação política, de quadros e de base,  articulando este trabalho estratégico com a batalha cultural.

• Estudar e dar continuidade às manifestações e forma de classe às  lutas nas condições atuais.

• Trabalhar com os diversos atores políticos e sociais em nossos  países para avançar no sentido dessas conclusões e outros conteúdos  que possam surgir do trabalho coletivo.

*III.- DIMENSÃO CULTURAL*

Vivemos um momento de mudanças no terreno econômico e político, mas  também no das idéias e da cultura. Um campo amplo e complexo,  geralmente descuidado, quando não ignorado pelos atores sociais e  políticos que lutam pela emancipação da humanidade.

Neste novo cenário, com as grandes mudanças tecnológicas da  comunicação, as migrações, o consumismo, etc., se está produzindo  aceleradamente uma fragmentação, desrritorialização e hibridação da  cultura popular.

Frente a isto, apresenta-se o desafio que exige questionar as idéias e  práticas passadas que foram superadas, mas resgatando a memória  histórica e tradições para vincular às experiências e legados das  lutas anteriores com as presentes.

Frente à cultura do sistema econômico hegemônico imperialista e sua  lógica de mercado, é preciso promover uma ‘nova cultura’ que  resignifique o econômico e reconstrua os mercados. Isto implica a  revalorização dos diferentes espaços de encontro, e que estimulem o  sentido da solidariedade e cooperação, o qual pede uma reaproximação  dos espaços territoriais por parte das comunidades e diferentes  organizações e movimentos sociais. Por exemplo, animar as redes para a  recuperação de saberes, do sentido da produção e modos de consumo  responsável.

A crise econômica está se convertendo em terra fértil para movimentos  milenaristas fundamentalistas, que pregam a resignação, o fatalismo,  constituindo um obstáculo sério para a construção de valores e do  empoderamento da cidadania.

A democracia liberal está em crise, o seu modelo individualizante está  colapsado, pelo que é indispensável ter presente os direitos coletivos  e colocar em plena vigência os direitos dos povos originários que  historicamente foram dominados, excluídos, etc, sob um sistema  dominante de colonialismo interno.

Existe um maior reconhecimento da diversidade cultural, e diferentes  iniciativas a promovem e a afirmam. Sem a aceitação da diversidade não  se constitui identidade. O caminho é a unidade na diversidade.

Há práticas cotidianas de nossos povos que se referem ao econômico e o  cotidiano familiar preservando diversos saberes, tradições e modos de  relação intercultural. Em todos os níveis da sociedade estas práticas  fomentam uma cultura de paz, incluindo a contribuição das artes e dos  artistas na reconstrução cultural e criação de novos sentidos, desde a  estética, ao lúdico e a festa.

Nesta perspectiva de transformações substanciais, cabe apontar para  uma soberania cultural, do corpo e do ser, o que implica desenvolver  um novo conceito da soberania para aplicá-lo à liberdade de decisão  das pessoas, comunidades e organizações, não apenas do Estado-nação.

A recuperação da identidade é um componente substantivo na luta da  emancipação. Nesse sentido, como um passo histórico de justiça se  impõe o respeito e o reconhecimento da identidade indígena e  afro-descendente, como parte da reconstrução da nação, sem dividi-lá,  nem debilitá-la. O Estado-nação continua sendo um ponto de união  importante; a luta pela libertação continua, mas inclui povos  indígenas e afrodescendentes em um novo projeto de identidade de  comunidade nacional e humana.

O impulso de autonomias integrais e o desenvolvimento auto-centrado se  verá reforçado com a articulação dos diferentes grupos sociais que  atuam autonomamente afirmando sua força nacional e internacional.

Quanto aos meios de comunicação é preciso inseri-los no campo da  cultura, ainda que seja evidente que ao mesmo tempo transcendem esse  aspecto convertendo-se em um poder político, pois o poder econômico  lhes comprou e através deles controlam a esfera política. Atualmente,  a televisão, o rádio e a grande imprensa são os lugares onde se  disputa o poder político e os sentidos.

Na América Latina, as freqüências radioelétricas se distribuem (as  concessões) basicamente por duas vias: o amiguismo político que  alimenta a corrupção, e a subasta que apuntala os processos de  monopolização. Esta ausência de equidade é a violação mais grave da  liberdade de expressão, pois deixa a margem a sociedade. Uma  distribuição eqüitativa deve considerar três setores: O Estado (para  assegurar um serviço público e plural), a empresa privada (com  finalidade lucrativa, mas que cumpra a finalidade de responsabilidade  social) e a sociedade civil (movimentos sociais, jovens, indígenas,  afrodescendentes, universidades, etc.). As freqüências digitais abrem  a oportunidade para democratizar o espectro radioelétrico, mas os  grupos monopólicos pretendem fazer delas um grande negócio.

Deve-se prestar uma atenção particular para a Internet, um espaço cada  vez mais decisivo na crescente convergência dos meios, tanto para  aproveitar as vantagens que oferece, como para impedir que prosperem  as tentativas em curso para privatizá-la. O barateamento de custos que  sobrevieram com as novas tecnologias é um fator que torna possível  desenvolver uma capacidade de resposta consistente caso esteja  acoplada a uma dinâmica de redes.

Os processos de integração em curso têm um sério desafio na dimensão  cultural, porque as políticas neocolonialistas e imperiais, com a sua  premissa de “dividir para vencer”, tem cimentado uma cultura de  animosidade, hostilidade e até de rejeição entre nossos povos. É  preciso reverter esse processo.

A partir da perspectiva das alternativas tem-se o desafio de formular  propostas para que a dimensão cultural seja um eixo constituinte e  constitutivo dos processos de integração. Temos um espaço de  articulação: a *ALBA*, onde em matéria cultural já definiu uma  programação estratégica. Também para o Fórum Mundial das Alternativas  (*FMA*), este espaço deve ser um eixo de sua atuação futura na região  tanto para propor/questionar, como para articular iniciativas.  Particularmente, é preciso considerar o Fundo Cultural da *ALBA* para  implementar alternativas nos diversos países da região, promovendo a  integração das industrias culturais, a distribuição e circulação de  bens culturais e a promoção de nossos valores.

Nesse marco, se deve impulsionar e afirmar a criação das Casas da  *ALBA*, concebidas como espaços de encontro, informação e difusão de  idéias e expressões culturais das mais diversas, procurando um signo  anti-hegemônico.

Quito, 29 de fevereiro de 2008. 

https://www.alainet.org/es/node/126490
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