Farc deveriam declarar cessar-fogo
11/08/2010
- Opinión
Valter Pomar, secretário-executivo do Foro de São Paulo, aposta que a medida seria benéfica para a esquerda colombiana e tiraria da direita o pretexto para manter a guerra
Vinte anos após sua criação, o Foro de São Paulo, organização que reúne os partidos de esquerda latino-americanos, realiza, entre os dias 17 e 20 em Buenos Aires (Argentina), sua 16ª edição. Para os movimentos progressistas, é um momento para fazer o balanço de mais de uma década de governo em boa parte dos países latino-americanos, avalia Valter Pomar, secretário-executivo do foro e militante do PT.
Em entrevista ao Opera Mundi, Pomar disse acreditar que esses mandatos tiveram forte impacto na vida da população. Porém, acha que “os avanços ainda não se tornaram estruturais” e podem ser revertidos em caso de derrota eleitoral.
Segundo ele, o foro, depois de ter sido um espaço de resistência contra a ofensiva neoliberal, deve se converter em um centro de formulação de estratégias que permitam fazer desse ciclo de governos progressistas “o ponto de partida de um novo modelo de desenvolvimento para a região”. Na entrevista, Pomar falou também sobre as Farc e defendeu que a melhor estratégia para o grupo guerrilheiro agora é declarar um cessar fogo unilateral e negociar um acordo de paz com o novo governo colombiano.
Qual é o balanço de uma década de governos progressistas na América Latina?
Valter Pomar – Mais democracia, qualidade de vida, soberania e integração. Os exemplos são muitos. Incluem mudanças constitucionais, aumento da participação eleitoral, crescimento do número de organizações sociais, surgimento de novos meios de comunicação, eleição de juízes, mudanças em algumas forças armadas. Temos mais gente alfabetizada, mais serviços de saúde, menos fome, direito a casa, mais empregos, aposentadorias maiores. Há que lembrar também o controle sobre as riquezas naturais de cada país, assim como mais diálogo, cooperação e criação de instituições como a União das Nações Sul-Americanas, a Unasul.
Mas esses avanços ainda não se tornaram estruturais, não se converteram num outro modelo de desenvolvimento, de tipo democrático-popular. Enquanto isto não ocorrer, a permanência do que fazemos a partir dos governos dependerá de estarmos no governo. E governos se ganham e se perdem. Para que se construa um novo modelo, permanente, é preciso democratizar a estrutura de propriedade e fazer com que a infraestrutura social se torne o centro da dinâmica da acumulação.
O senhor acha que a direita está em condição de recuperar o terreno perdido, como ocorreu no Chile?
Nunca devemos subestimar a direita, especialmente quando os EUA tentam recuperar sua influência na região. Também devemos lembrar que, à medida que a direita neoliberal típica perde espaço, essas forças buscam outros porta-vozes. No Brasil, a provável terceira derrota do PSDB e do DEM já faz setores conservadores especularem sobre uma alternativa distinta em 2014. Finalmente, devemos lembrar que o objetivo da esquerda não é eleger presidentes, mas, sim mudar as sociedades. E pode ocorrer, como no Chile, de a esquerda chegar ao governo e não mudar a sociedade, como pretendemos.
Na sua opinião, existem ondas políticas que se alternam, e que depois da esquerda nos anos 2000 pode ser a vez da direita na década de 2010?
A história não é circular. Se fosse, viria por aí uma onda de golpes militares, similares aos que sucederam o ciclo desenvolvimentista-populista dos anos 1950. Por outro lado, é preciso tomar cuidado com uma análise “politicista”, que dá excessiva atenção a eventos institucionais. A questão de fundo é saber se a esquerda que chegou ao governo na América Latina fará mudanças estruturais. Se conseguirmos, uma eventual vitória da direita numa eleição nacional terá pequeno impacto. Se não conseguirmos, estar no governo não terá grande significado.
Alguns governos, como o da Venezuela, consideram que existe um risco militar contra os governos de esquerda.
A contraofensiva da direita é política. Uma das facetas desta contraofensiva política é militar, ou seja, a carta militar é jogada para fazer pressão política. Neste momento, considero pouquíssimo provável uma agressão direta dos EUA contra algum país governado pela esquerda. Agora, Honduras, as bases na Colômbia e a 4º Frota não são ficção. Estão relacionadas com algo simples: os EUA perderam terreno ideológico, político e econômico na região e no mundo, mas sua força militar é incomparável. Interessa a eles levar a disputa para o terreno militar, mesmo que sob a forma de pressão. Por isso é estratégico que o conflito na Colômbia deixe de ser militar e passe a ser político-eleitoral.
A oposição brasileira voltou a acusar o PT de associação com as Farc, e Álvaro Uribe (ex-presidente da Colômbia que entregou o cargo no dia 7) acusou Hugo Chávez (presidente da Venezuela) de protegê-la. Qual é a razão de existir da guerrilha hoje?
Não existe solução militar para o conflito na Colômbia. Nem o governo de Juan Manuel Santos acabará com a guerrilha, nem a guerrilha tomará o poder. É preciso um acordo. A melhor coisa que as Farc podem fazer neste momento é anunciar sua disposição de fazer um acordo de paz. E, para deixar claro que está falando sério, libertar as pessoas que mantém em seu poder, declarar um cessar-fogo unilateral e se dispor a aceitar uma mediação externa – da Unasul, por exemplo. Seria um ganho para o povo e para a esquerda colombiana e poria fi m ao pretexto dos EUA e da direita colombiana para manter viva a guerra, que para eles é um negócio.
As Farc e outras organizações guerrilheiras participaram ou participam do foro? Mesmo que não tenham sido integrantes formais, já estiveram presentes em reuniões da entidade?
A resposta para as duas questões é não. Mas isto não tem a menor relevância. Primeiro, porque, quando o Foro de São Paulo surgiu, havia luta armada e negociações em vários países da região. Exemplo clássico: a FMLN de El Salvador. Hoje o presidente de El Salvador [Mauricio Funes] é da FMLN. Motivo pelo qual não faz o menor sentido tratar com preconceito organizações que recorreram à luta armada, que, sob determinadas condições históricas, é um instrumento legítimo, do qual lançaram mão Nelson Mandela [ex-presidente da África do Sul], Pepe Mujica, Daniel Ortega, Raúl Castro [presidentes do Uruguai, Nicarágua e Cuba, respectivamente] e outros. Segundo, porque o foro é uma instituição aberta, com reuniões públicas, provavelmente frequentadas por agentes da CIA e por outros serviços mais eficientes. Terceiro, porque o importante é saber que papel o foro pode jogar, agora, em 2010, para construir a paz na Colômbia. O resto é diversionismo: o sonho de José Serra e Índio da Costa é achar alguém que dê uma declaração que possa virar manchete em seus jornais oficiais.
Numa recente entrevista, Fernando Henrique Cardoso disse que, no poder, a esquerda latino-americana, e especialmente o PT, tinha virado socialdemocrata. O que acha dessa avaliação?
De qual social-democracia ele fala? Da revolucionária, que foi até a Primeira Guerra? Da socialista, que foi até o pós-Segunda Guerra? Da reformista, até a crise dos anos 1970? O risco dessa comparação é nos fazer perder de vista que o capitalismo latino-americano não é o europeu, não é imperialista. Portanto, a margem de manobra para compatibilizar capitalismo, democracia e bem-estar social é muito menor. Por outro lado, a pressão dos EUA e a burguesia local fazem com que os social-democratas sinceros da América Latina sejam mais radicais que os europeus. Na prática, um social-democrata na América Latina vai entrar em conflito com o capitalismo e com o imperialismo. Assim, parece-me aproveitável nesse raciocínio de FHC o reconhecimento indireto de que o PSDB é tudo, menos social-democrata.
Mas o senhor acha que os partidos de esquerda que estão no governo na América Latina abandonaram suas reivindicações revolucionárias?
Uma parcela dos partidos de esquerda que estão no governo hoje não existia em 1980, o que torna pouco válida a comparação. Por outro lado, não concordo que a maioria dos partidos de esquerda abandonou reivindicações de mudanças radicais. No fundo, há uma dificuldade em entender que vivemos um período de defensiva estratégica da luta pelo socialismo. O que é ser revolucionário num período em que as revoluções não estão na ordem do dia? Em minha opinião, é ter uma política de acumulação de forças que tenha como objetivo criar as condições para mudanças revolucionárias. Ser revolucionário significa defender que, para acabar com a exploração e a opressão capitalista, é necessária uma revolução político-social. A maioria dos partidos de esquerda latino-americanos tem, no seu interior, correntes revolucionárias e correntes não revolucionárias, numa combinação indispensável neste momento. E o único teste para saber se um partido é revolucionário ou não é ver se ele dirigiu uma revolução. Discurso, fé, autoproclamação e acusação dos inimigos não contam.
Com a esquerda no poder, qual é sua avaliação do papel dos movimentos sociais nesses países?
A rigor, a esquerda não está no poder em nenhum país da região, exceto Cuba. Em Cuba, houve uma revolução em 1959, e o Estado cubano foi construído por essa revolução. Não há distinção qualitativa entre os objetivos do governo e do Estado. Já nos países em que, desde 1998, partidos de esquerda elegeram o presidente, o Estado é herdeiro de décadas ou séculos a serviço das classes dominantes. Parcelas expressivas do aparato de Estado seguem controladas diretamente por representantes delas, que na prática mantêm o poder, embora não tenham o governo.
Os movimentos sociais foram essenciais para a vitória eleitoral. E são decisivos para construir o caminho que nos leve da condição atual de governo para a condição de poder.
Como qualificaria a política do governo Obama em relação à região?
Obama mudou as palavras, mas não os gestos. A política geral para a região segue a mesma. No seu discurso de posse, disse que os EUA estavam prontos para voltar a liderar. E o que os EUA têm pronto para isto? Seu aparato militar. Claro que, para quem se iludiu com Obama, deve ter tido uma decepção.
Qual é a função do foro?
O foro passou por várias fases. De sua criação a 1998, foi um espaço de resistência contra a ofensiva neoliberal. Depois, converteu-se num espaço de articulação da ofensiva eleitoral dos partidos de esquerda. Essa ofensiva se deteve em 2009, com a posse de Mauricio Funes, em El Salvador. Desde então, precisamos nos converter em um espaço de formulação e de articulação de uma estratégia que permita fazer desse ciclo de governos progressistas e de esquerda o ponto de partida de um novo modelo de desenvolvimento, sem deixar de ser útil aos partidos de esquerda da região que ainda não são governo. Se não formos capazes de dar este salto, o foro não será capaz de ajudar a esquerda latino-americana a conseguir respostas para problemas de fundo: mudar o modelo e sair da condição de melhorar a vida do povo dentro do capitalismo para a condição de melhorar a vida do povo nos marcos do socialismo.
Em novembro de 2009, Chávez defendeu a criação da Quinta Internacional.
A intenção é boa, mas a proposta não é adequada. O próprio Chávez percebeu isto. Uma curiosidade: a esquerda ultrassectária existente em alguns países do mundo viu na proposta a chance de colocar uma “cunha” entre a esquerda brasileira, especialmente o PT, e a esquerda venezuelana, especialmente o Partido Socialista Unido da Venezuela (Psuv). Quebraram a cara. O melhor é reforçar o Foro de SP e ampliar a articulação entre o foro e partidos de outras regiões do mundo, sem a pretensão de ser laboratório para ninguém: como o capitalismo é diferente em cada região, lutar contra ele exige esquerdas também diferentes.
- Lamia Oualalou de São Paulo (SP)
Brasil de Fato – edição 389 - de 12 a 18 de agosto de 2010
https://www.alainet.org/es/node/143341?language=en