De acordo com o discurso dominante, as preocupações devem-se ao sobreendividamento dos estados, a um possível incumprimento da Grécia, a um contágio a Espanha e a Itália. Para os bancos, a consolidação está em curso, o BCE tem a situação controlada. De janeiro até ao início de Maio de 2012, a mensagem repetida às pessoas era mais ou menos a seguinte: "Devido ao bilião de euros recebido em empréstimos, duas tranches (dezembro 2011 e fevereiro de 2012), durante três anos, a uma taxa de juro de 1%, concedidos pelo BCE, as instituições financeiras privadas têm capacidade de enfrentar as dificuldades dos Estados em matéria de dívida soberana, os mercados financeiros estão tranquilos, as bolsas estão outra vez a subir depois de um ano particularmente difícil. Graças à adopção generalizada da regra de ouro, aos esforços para reduzir as despesas do Estado, à reforma do mercado de trabalho para o tornar ainda mais flexível e à reforma das pensões para reduzir a sua carga, as finanças públicas estão a ficar consolidadas. São ainda necessários alguns esforços, mas vemos o fundo do túnel. Durmam descansados, bom povo! ".
O mês de Maio de 2012 trouxe um desmentido fulgurante. Na verdade, tornou-se evidente que os bancos privados não tinham saneado as suas contas, nem tinham mudado o seu comportamento de alto risco, os seus dirigentes continuavam sedentos de bónus e incentivos. Os banqueiros acreditam que os governos estarão sempre lá para os salvar. Os resgates bancários com dinheiro público continuam. A Depressão prolonga-se. A dívida pública aumenta devido ao efeito combinado dos resgates e da depressão económica. A chantagem dos mercados financeiros sobre o elo mais fraco da zona euro ganhou fôlego.
O sistema bancário está no meio de um furacão que segue o seu caminho, derrubando, um após outro, os grandes bancos privados e ignorando fronteiras. Ao contrário do furacão, um fenómeno natural bem conhecido, a tempestade financeira não é natural: resulta dos ciclos de funcionamento do capitalismo, potenciado por 30 anos de desregulação neoliberal.
O caso espanhol é emblemático porque mostra que a crise não tem origem na dívida pública provocada por um estado social muito gastador. Em 2007, quando a crise rebentou nos Estados Unidos e antes de a Espanha ser arrastada, a dívida pública espanhola representava apenas 36% do produto interno bruto. Espanha foi um dos melhores alunos da zona euro com uma taxa de endividamento claramente inferior aos 60% previstos pelo Tratado de Maastricht, com um saldo orçamental positivo (+1,9% do PIB quando Maastricht impunha um máximo de 3% de saldo negativo). A dívida pública espanhola representava apenas 18% da dívida total do país. No entanto, não é a dívida pública que se deve responsabilizar, porque a crise que afecta Espanha foi provocada directamente pelo sector privado: o sector imobiliário e o sector do crédito.
Em Espanha, em Maio de 2012, Bankia, o terceiro banco espanhol em termos de activos, pediu ajuda pública no valor de 19 mil milhões de euros (que se juntaram aos 4,5 mil milhões já recebidos). O Banco de Espanha considera que o sistema bancário ibérico possui activos tóxicos no valor de 176 mil milhões de euros. Vários especialistas admitem que são necessários 40 a 200 mil milhões de euros para recapitalizar os bancos espanhóis.
O sector privado financeiro espanhol não é o único que está em causa. O grupo bancário franco-belga-luxemburguês, Dexia, que foi resgatado, pela segunda vez, da falência, em outubro de 2011, reconheceu ter tido perdas de 11 mil milhões de euros durante o exercício de 2011 e o processo ainda não terminou: vai agora pedir aos poderes públicos uma nova recapitalização (pelo menos 10 mil milhões serão necessários). A JP Morgan, um dos principais bancos de investimento dos Estados Unidos, teve de reconhecer uma perda de 2 mil milhões de dólares, em Maio de 2012 (esta informação provocou, em poucos dias, uma queda de 25 mil milhões de dólares na sua capitalização bolsista) e prevêem-se perdas muito mais elevadas no futuro. Os bancos gregos estão numa situação difícil, enfrentam levantamentos massivos (nos quais gerentes e acionistas estão activamente envolvidos) e sobrevivem, por enquanto, graças aos empréstimos de urgência que o Banco Nacional da Grécia lhes concede diariamente num total de 100 mil milhões de euros, com o aval do Banco Central Europeu[1].
Entre os 800 bancos europeus que pediram empréstimos ao BCE, no valor de 1 bilião de euros (1 000 000 000 000 €), muitas entidades (incluindo os maiores bancos) estão novamente a ficar sem dinheiro, ou ficarão em breve, e pressionam o BCE no sentido de voltar a conceder o mesmo tipo de empréstimos a taxas mais baixas (inferiores à inflação) e com um prazo alargado.
Apesar de a atenção da opinião pública ser dirigida para a dívida pública acumulada pelos estados, a principal causa da crise reside no balanço dos bancos privados (e dos grandes grupos seguradores). Eles acumularam enormes quantidades de dívida[2] para financiar operações de alto risco, que produzem com frequência perdas colossais. Essas perdas ocorrem à medida que os contratos sobre produtos estruturados e outros activos tóxicos vão expirando.
A lição a tirar é que mais do que nunca devemos exigir a expropriação dos bancos e a sua transferência para o sector público sob controlo cidadão. Devemos rejeitar os dispendiosos resgates que aumentam cada vez mais a dívida sem resolverem a crise bancária de forma sustentável. As expropriações devem ser feitas sem indemnizar os grandes accionistas (os pequenos acionistas serão indemnizados) e o custo do saneamento das contas das instituições expropriadas deve ser recuperado através do seu património (porque possuem património que vai muito para além dos bancos). É necessário alterar a relação de forças de forma a permitir que os poderes públicos possam repudiar a parte ilegítima da dívida, com o objectivo de alcançar recursos para a implementação de uma política de pleno emprego e de investimento público em actividades que melhorem as condições de vida da população, que protejam o meio ambiente, que rompam com o capitalismo e com o produtivismo. O objectivo é pôr em prática um conjunto de políticas coerentes, em termos de alternativas económicas e sociais, para realizar uma grande viragem pós-neoliberal, pós-produtivista e anti-capitalista[3]. No caminho para uma mudança radical, a auditoria cidadã à dívida é uma ferramenta de sensibilização e de mobilização preciosa e indispensável.
Tradução Maria da Liberdade
(1) Financial Times, 22 Maio de 2012, « Secret €100bn assistance propping up Greek banks », p. 4.
(2) Dívidas em relação aos poderes públicos (BCE, FED, bancos centrais nacionais), dívidas em relação aos Money Market Funds, dívidas em relação a outros bancos privados, dívidas sob a forma de títulos que são vendidos nos mercados financeiros, dívidas a clientes que depositam diariamente o seu dinheiro em conta corrente (por exemplo, o salário de cada mês, mas também o dinheiro disponível de empresas privadas pequenas, média ou grandes) e também as suas poupanças.
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Eric Toussaint, professor na Universidade de Liège, é presidente do CADTM Bélgica (Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo, www.cadtm.org) e membro do Conselho Científico da ATTAC França. Escreveu com Damien Millet: AAA Audit Annulation Autre politique, Seuil, Paris, 2012.