Relator da ONU defende inclusão do direito à água e ao esgotamento sanitário na Constituição
02/03/2015
- Opinión
Foca Lisboa/UFMG
Para Heller, da ONU, Brasil deve garantir água para todos.
São Paulo – O relator especial da Organização das Nações Unidas para o Direito à Água e ao Esgotamento Sanitário, o brasileiro Léo Heller, defende a inclusão, na Constituição Federal, do acesso à água e esgotamento sanitário – como preconizado pelo organismo internacional, e não saneamento básico, como consta da nossa legislação – como direito de toda população.
Em julho de 2010, a ONU publicou resolução que reconhece o acesso à água potável e ao saneamento básico como um direito de todo ser humano, para que, entre outras coisas, todos tenham água suficiente, segura, aceitável, fisicamente acessível e a preços razoáveis para usos pessoais e domésticos. E o acesso universal ao saneamento, que é fundamental para a dignidade humana e também um dos principais mecanismos de proteção da qualidade dos recursos hídricos.
Pesquisador do Centro de Pesquisa René Rachou da Fundação Oswaldo Cruz, em Belo Horizonte, e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Heller entende que o fato de o Brasil ter apoiado a resolução internacional, já significa que o governo brasileiro se compromete a cumprir esse direito. E mais do que isso, que o cidadão pode recorrer à Justiça caso tal direito esteja sendo violado. "No entanto, é um pouco distante da realidade do brasileiro, e até do Judiciário, reconhecer um direito com base em uma resolução de nível internacional", afirma.
Por essa razão, ele defende a introdução do direito humano tanto na Constituição como na legislação ordinária. "Isso é mais forte, instrumentaliza o Judiciário em relação ao reconhecimento do direito e assegura ao cidadão esse canal de reivindicação. Em outras palavras, seria importante que nós tivéssemos uma emenda constitucional consagrando esse direito."
Entre as iniciativas nesse sentido, tramita na Câmara uma proposta de emenda à Constituição do deputado Raimundo Gomes de Matos (PSDB-CE), que reconhece a água como um direito humano fundamental e estabelece que o Estado é o responsável pelo fornecimento de água a toda a população.
Se a emenda vier a ser aprovada, a Lei federal 11.445, que define as diretrizes nacionais para o saneamento básico, deverá ser novamente emendada, incluindo nela o direito humano à água. "Isso pode ser muito importante para que fique mais no dia a dia, tanto do prestador de serviço, e do cidadão, a ideia de que o acesso à água é um direito."
Diversos países já têm o direito garantido constitucionalmente. Na Bolívia já é assim desde 2008. A constituição do país afirma que o acesso à água potável, assim como o saneamento básico, é um direito humano, sendo proibida sua privatização ou concessão.
O relator da ONU, no entanto, não vê relação entre a privatização da água e a falta de garantia constitucional desse direito. "Da mesma forma como não há relação direta entre o direito e o acesso à água gratuita. Direito humano à água não significa água gratuita. Da mesma forma, não impede a prestação privada do serviço."
De acordo com ele, o direito humano à água deve obedecer alguns princípios, entre eles, o fornecimento, em quantidade suficiente, com qualidade adequada, e com taxas socialmente justas, de modo que não comprometa a renda das populações mais pobres.
Heller destaca ainda que não pode haver retrocesso no acesso a esse direito. Ou seja, a população perder o acesso, como vem acontecendo em São Paulo e Minas Gerais. "Dependendo de como a situação for conduzida, pode haver retrocessos no direito de pessoas que já tinham acesso à água, inclusive com qualidade pior."
Para o relator da ONU, a gestão da crise da água deve levar em conta, primordialmente, o cuidado a populações mais vulneráveis. "O que eu tenho percebido é que as medidas que estão sendo adotadas são muito universais. A redução da pressão da rede, por exemplo, ocorre de uma forma indiscriminada, afetando pessoas que têm maior capacidade de se defender quanto à falta de água, como também pessoas que têm baixa capacidade. O mesmo vale para o racionamento", explica.
Segundo o especialista, em uma situação de crise hídrica como a atual, a gestão, na perspectiva do direito humano, deveria levar em conta heterogeneidade das condições da população. "Populações mais vulneráveis, mais pobres, que vivem em vilas, favelas, nas ruas, já têm um abastecimento precário. É preciso protegê-las, assim como as populações residentes em abrigos de idosos, creches, hospitais, população carcerária."
Heller alerta para o cuidado necessário para que a redução do consumo, que é importante, não passe a afetar o consumo básico necessário, inclusive para a higiene. "Fico preocupado quando se coloca tudo nas costas do consumidor, e o consumidor mais pobre passa a economizar tanto e deixe de suprir suas necessidades fundamentais. Nesse caso, estaríamos violando o direito humano."
Ele destaca outro ponto que considera importante quando se pensa em direito humano à água num momento como o atual: as medidas não devem se basear em critérios meramente técnicos. "É falso achar que a decisão é técnica. Seria muito importante que houvesse a participação dessas populações mais afetadas, mais vulneráveis, nesse processo de tomada de decisão. Quando um gestor fala ‘precisamos economizar 30% da água’, o outro fala ‘precisamos ficar quatro dias sem água e dois com’, isso é falsamente neutro", ressalta.
"Posso fazer um rodízio 4 por 2 em uma região, e outro regime em outras, em que vivem populações mais vulneráveis. Essas medidas deveriam ser tomadas com uma forte base de participação dos que são mais afetados, que devem ser esclarecidos, e terem elementos para a tomada de decisão", detalha.
Sobre a crise em São Paulo, Heller entende ter faltado planejamento estratégico, cuidadoso, de longo prazo, que levasse em conta, especialmente, as variações climáticas. "Não estaríamos passando por essa situação. Não é admissível que um bom prestador de serviços de abastecimento de água seja pego de surpresa pela variação do clima. A variação do clima deve compor uma das variáveis de um modelo de planejamento. O que estamos vendo hoje, através da manifestação dos prestadores e das autoridades públicas, é que existe soluções técnicas."
Ele critica ainda a adoção de soluções depois que a crise se instala. "Poderiam ter sido adotadas antes e a crise não teria o impacto que tem tido. Obviamente, precisa-se reconhecer que é uma situação climática extrema. São dois anos consecutivos com pouca chuva, mas isso poderia, sem dúvida nenhuma, ter sido antecipado e as medidas, ter sido adotadas."
Três níveis de medidas
Heller defende ainda três níveis diferentes de medidas a serem tomadas pelos gestores. O primeiro é em relação à oferta de água, o uso dos recursos hídricos, que consiste na busca de outros mananciais, transferências de um para o outro, uso de outras fontes de água, como a da chuva, de reúso, educação para o uso racional inclusive na agricultura e na indústria, além de um conjunto de medidas para entrar mais água no conjunto das represas.
Um segundo nível é atuar nas perdas do sistema. "No Brasil, perde-se muita água. Um dever de casa que o prestador de serviço precisa fazer para tornar o sistema mais eficiente é perder menos água. Reduzindo-se o nível de perda de 30% para 25%, é 5% a mais de água que vai deixar de sair."
Um terceiro nível é o habito dos usuários. "Existe, sem dúvida, espaço para campanhas de uso mais racional, de menos desperdício, que é diferente de perda. Perda é o prestador que faz, desperdício é o usuário. São bem-vindas as campanhas para não lavar calçadas com mangueira etc. Mas não tenho dúvidas de que existe espaço para melhorias e diminuição no nosso consumo. Diria que se fossem bem articulados esses três níveis, nossa crise seria menor do que é."
Colaborou: Tiago Pereira
- Cida de Oliveira, da RBA
01/03/2015
https://www.alainet.org/es/node/167890
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