Venezuela, em tempos de transição

11/05/2016
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As Forças Armadas declararam repetidamente sua lealdade ao presidente Nicolás Maduro e o Supremo Tribunal venezuelano anulou a tentativa do Legislativo de antecipar a eleição presidencial para 2016, com o argumento bastante razoável de que uma redução retroativa de mandato é inconstitucional.

 

Barrados os caminhos do golpe cívico-militar clássico e do golpe legislativo-judiciário pós-moderno, restou à oposição acatar a desprezada Constituição bolivariana e recorrer ao mecanismo democrático radical por ela previsto: o referendo revocatório, aplicável ao presidente e a qualquer funcionário eleito pelo voto popular a partir da metade de seu mandato, no caso de Maduro cumprida em 19 de abril, pois foi empossado nessa mesma data de 2013.

 

Na segunda-feira 2, a oposição venezuelana apresentou 1,85 milhão de assinaturas em favor do recall do mandato presidencial de Nicolás Maduro, quase dez vezes mais que o mínimo de 1% dos 19,57 milhões de eleitores necessários para iniciar o processo.

 

Segundo a lei, o Conselho Nacional Eleitoral deve verificar o número de assinaturas em cinco dias (inicialmente a oposição disse ter coletado 2,5 milhões) e em mais cinco convocar os signatários a ratificar o apoio com sua impressão digital. Depois de validadas, autorizará a coleta dos perto de 3,9 milhões de assinaturas (20% do eleitorado) requeridas para a convocação. 

 

Se for convocada e ao menos 25% dos eleitores participarem, uma maioria simples pode antecipar o fim do mandato. Se o referendo acontecer antes de se iniciarem os dois últimos anos do mandato, ou seja, até 18 de abril de 2017, uma nova eleição deve ser convocada em 30 dias.

 

Se for depois, o vice-presidente, atualmente Aristóbulo Istúriz (o presidente pode substituí-lo), assume até o final. Isso frustraria a oposição, mas, salvo alguma irregularidade flagrante ou uma nova tentativa de golpe que dê boas razões ao governo para interromper o processo, é de se esperar que o referendo e  a eleição aconteçam ainda neste ano. 

 

Hugo Chávez submeteu-se a esse processo em 2004. A oposição recolheu, na segunda fase, 2,44 milhões, na época suficientes para os 20%, o referendo foi realizado em 15 de agosto, quatro dias antes de se iniciar o quarto ano do mandato, com participação de 70% e Chávez venceu com 59,1% de “não”. A oposição ficou menos chocada com o resultado do que com a confirmação da lisura do processo por observadores e analistas estrangeiros e seu reconhecimento internacional.

 

Eram, porém, outros tempos. Chávez e seu carisma estavam vivos e em boa forma, e o chavismo, fora da percepção enviesada da oposição e da mídia conservadora internacional, ainda não dera sinais de desgaste ante as massas. Ao contrário, tinha espaço para tentar um processo de aprofundamento e radicalização.

 

Foi só em janeiro de 2005 que começou a falar em “socialismo do século XXI” e ao iniciar seu terceiro mandato, em 2007, que adotou o socialismo como lema. Talvez ainda mais importante, o preço do petróleo estava em plena ascensão, para atingir seu pico em julho de 2008. Confiando em um futuro de petróleo caro, Chávez ampliava programas sociais e subsidiava o consumo em escala cada vez maior.

 

Esse modelo começou a enfrentar dificuldades quando a crise financeira abalou o mercado petrolífero pela primeira vez, no segundo semestre daquele ano.

 

Houve recuperação do preço em 2009, mas coincidiu com uma seca e uma crise energética forçou cortes e racionamentos, prolongou a recessão até o ano seguinte e colaborou para o crescimento da oposição nas eleições de 2010. O problema ainda não tinha sido totalmente superado em 2011, quando a doença de Chávez se manifestou.  

 

O presidente recusou-se a preparar a sucessão e adiou decisões impopulares sobre a retirada de subsídios e o reajuste cambial para comandar mais uma campanha eleitoral em 2012. Faleceu pouco depois do início do quarto mandato, em 2013, e deixou a seu vice, Maduro, relutantemente confirmado como sucessor poucos meses antes, um difícil quadro fiscal, alta inflação e problemas de abastecimento. 

 

Embora o candidato derrotado, Henrique Capriles, tivesse uma postura legalista, Maduro teve de enfrentar uma oposição radicalizada e ansiosa por explorar o momento de fraqueza do chavismo e tentar derrubá-lo com manifestações violentas, nas quais mostrou sua disposição de destruir o legado social por meio de ataques a clínicas, conjuntos habitacionais e escolas construídas pelo governo.

 

Eleito por pequena margem, em situação política frágil e sem a habilidade e o carisma do padrinho, Nicolás Maduro adiou ainda mais a decisão de cortar subsídios, inclusive dos combustíveis. O quadro financeiro piorou e mostrou-se insustentável quando as cotações do petróleo despencaram, em 2015, devido à decisão da Arábia Saudita de expulsar do mercado os produtores de alto custo dos EUA. A inflação chegou a 180,9% no fim do ano e o PIB caiu 5,7%. Como no Brasil, houve seca e o nível da represa de El Guri, que representa 65% do fornecimento, caiu perigosamente, mas o governo evitou o racionamento.

 

Maduro sofreu uma derrota desastrosa nas eleições parlamentares de dezembro, que deram dois terços da Assembleia à oposição, e só então desvalorizou a moeda e reajustou os preços dos combustíveis, congelados por 20 anos apesar da inflação ascendente.

 

Além disso, a seca prolongou-se nos primeiros meses de 2016, deixou El Guri à beira do colapso e exigiu medidas extremas, incluídas a redução da semana de trabalho para quatro dias no setor privado e dois dias no público, cortes diários de eletricidade por quatro horas e mudança de fuso horário em meia hora. A inflação continua a acelerar e acumulou 57% nos primeiros três meses de 2016 (16,2% em março), o que aponta para 500% no ano (o FMI projeta 720%).

 

Por muito tempo, a mídia internacional exagerou os problemas de abastecimento na Venezuela, mas agora, com a falta de energia e escassez agravada de medicamentos e alimentos, o risco de uma emergência humanitária é real. Pesquisas feitas em março por dois diferentes institutos, Hinterlaces e Datanalisis, indicaram 58% e 63% favoráveis a revogar o mandato de Maduro em referendo.

 

Que esse número não seja maior e a popularidade do presidente esteja hoje em 27%, segundo a Datanalisis, ante 21% em dezembro e 33% em fevereiro, é um atestado de o quanto as massas populares beneficiadas pelo chavismo temem o retorno da oposição elitista ao poder. É um índice melhor do que o de Dilma Rousseff (13%), José Manuel Santos (13%), Ollanta Humala (17%) e Michelle Bachelet (26%), cujas dificuldades econômicas são objetivamente menores.

 

Embora a perda do líder e a queda dos preços do petróleo expliquem muito dos problemas, não há dúvida de que muito da responsabilidade cabe a erros políticos, estratégicos e administrativos do chavismo.

 

A infraestrutura e a produção da estatal petrolífera PDVSA deterioraram-se nos últimos anos, com pelo menos dois grandes incêndios em refinarias e falhas elétricas. Muitos dos equipamentos adquiridos para dar conta da crise energética de 2009-2010 não estão em funcionamento. As usinas termoelétricas representam nominalmente 40% da capacidade de geração e se funcionassem plenamente evitariam a necessidade de racionamento, mas operam em média com apenas 30% da capacidade, por falta de manutenção e outros problemas.

 

Dificuldades comparáveis afetam a distribuição de energia, os transportes, o abastecimento de alimentos e outros setores estatais. Não se deve excluir a possibilidade de que parte dos apuros se deva a sabotagens.

 

O setor privado nunca mostrou muita disposição de cooperar com o governo bolivariano e muitos engenheiros e técnicos nas estatais simpatizam com a oposição. Mas também se deve responsabilizar Chávez e o chavismo por nomear e promover funcionários e líderes partidários com base na lealdade aparente ao líder mais do que na probidade, para não falar de iniciativa e competência. Pecaram ainda por promover uma centralização cada vez maior das decisões. Embora houvesse a disposição oficial de promover o “Poder Popular”, organizado em conselhos comunitários por bairros, na prática este foi pouco ouvido e serviu menos para monitorar ou denunciar as dificuldades administrativas na base do que para mobilizar as massas pelo chavismo.

 

Dito isso, também não há como negar os sucessos do chavismo quanto a redução da desigualdade, conscientização política e promoção social das populações mais pobres e marginalizadas do país, ainda leal, apesar das dificuldades atuais e da propaganda da oposição, que controla a maior parte da imprensa e das emissoras de rádio e canais de tevê com 74% de audiência em programas jornalísticos (e, embora a RCTV e outras redes agressivamente golpistas tenham perdido concessões de tevê aberta, ainda funcionam no sistema a cabo).

 

Parece muito provável que Maduro perca o plebiscito, a cujo resultado prometeu se submeter se for realizado dentro da lei e da ordem, mas isso não liquidará a herança política do chavismo e este poderá retornar em não muito tempo, principalmente se a oposição conservadora se afobar em revogar suas conquistas. 

 

*Reportagem publicada originalmente na edição 900 de CartaCapital, com o título "Em tempos de transição"

 

11/05/20

http://www.cartacapital.com.br/revista/900/em-tempos-de-transicao

 

https://www.alainet.org/es/node/177385
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