Os assassinos estavam no Comitê Central

01/06/2016
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Enquanto o articulista da Folha, Contardo Calligaris, diz que “a política brasileira está muito difícil para a ficção” (UOL 25.05), o líder do “Movimento Brasil Livre” declara (Clic-RBS 25.05) que a máquina dos partidos “foi utilizada” para financiar os “movimentos pró-impeachment”, informação tratada pela Folha como uma grande novidade. Vou argumentar em sentido contrário. Ficção e realidade se entrecruzam de forma permanente, na nossa esfera política e esta -por sua vez- é facilmente acessada pela ficção. Assim como a ficção se expressa, por maneirismos jornalísticos muito específicos, quase todos os dias na mídia tradicional, a ficção propriamente literária, com o tempo, acessa e inspira-se em situações iguais ou análogas às que vivemos hoje e ilumina o passado através da grade literatura. Lembro-me de “Doctor Faustus” de Thomas Mann, “Os Thibault” de Roger Martin-dGard” ou “As Vinhas da Ira”, de Steinbeck. Quando Faulkner, por exemplo, publicou “Enquanto agonizo”, em 1930, ele já tinha acúmulo suficiente, para dar voz aos pobres do Sul dos Estados Unidos e dizer , na voz de Cash: “…é melhor construir um galinheiro bem-feito do que construir um tribunal malfeito, e se forem bem ou mal construídos não importa, porque não é um ou outro, que vai fazer um homem se sentir bem ou mal”. Um dia os nossos grandes escritores levarão para o plano da arte os nossos atuais galinheiros e Tribunais, com as suas grandezas e misérias.

 

A imagem da política nacional passada pela grande imprensa, no que refere ao processo de impedimento da Presidenta Dilma -com as exceções de praxe- foi um péssimo jornalismo. Ele ainda vai inspirar uma grande ficção literária, quem sabe para um Raduan Nassar, um Luis Antonio Assis Brasil ou um Antonio Callado redivivo . Esta inspiração poderá partir do comportamento desta imprensa que, insistindo na “espontaneidade”, “despartidarização” e “autenticidade” -tanto das jornadas de 2013, como dos atuais movimentos pró-impeachment- promoveu um vasto painel de ficções. Seus relatos dos movimentos de rua, como se eles fossem sinceramente dirigidos por líderes avessos à corrupção, foi um feito ficcional extraordinário.

 

Neste processo, a maior parte da grande mídia “fazia de conta” que não sabia, que o que estava sendo armado era a vitória do capitalismo rentista, com a radicalização do “ajuste”. Ela estava consciente, contudo, que quem poderia fazer isso, sob pressão, seria uma Confederação de Investigados e Denunciados: a redução dos gastos públicos com a educação e com o Sistema Único de Saúde, bem como o gradativo sumiço dos demais “gastos supérfluos” -relacionados com as políticas de coesão social em andamento- era o objetivo maldito. E ele só poderia ser cumprido por desesperados ou ameaçados. É o que estava e está em jogo, na cena política brasileira, o que indica que não está difícil para a ficção literária, pois esta vem sempre mais tarde e o presente retratado pela mídia, já é a ficção ao vivo e também matéria bruta da ficção como literatura, que certamente os grandes escritores construirão mais tarde..

 

Em 1981, Manuel Vàsquez Montalban publicou uma grande novela -“Asesinato en el Comite Central”- apenas seis anos depois da morte do general Francisco Franco. Ali, Montalban abriu um debate, em parte sobre a transição espanhola, mas sobretudo a respeito da falência da esquerda comunista em dirigir aquele processo, pela sua escassa compreensão do problema da integração europeia. Na sua ficção literária, o comunista Montalban relata o assassinato – numa reunião do Comitê Central – do Secretário Geral do Partido, Santiago Carrillo, que se fizera defensor do “eurocomunismo”, teoria que apontava a falência da União Soviética, como experiência socialista universal. A crítica de Carrillo centrava-se, tanto na questão democrática, como na questão da organização da produção. Mas pairou, no livro de Montalban, uma dívida atroz: o assassinato de Carrillo (que no livro tem o nome de Fernando Garrido), teria sido encomendado pela CIA, interessada em fazer fracassar uma transição democrática mais “pela esquerda”, ou pela KGB, interessada em não permitir prosperar um “dissenso comunista” renovador? Quais as forças externas que interferiram na transição espanhola, não se sabe com segurança até hoje. Como não se sabe, nos anos de chumbo da Itália, quem orientou a mão dos fascistas que fizeram explodir, com dezenas de mortos, a Estação Férrea de Bolonha.

 

Um livro do falecido professor Reneé Dreifuss publicado em 1981, fruto de uma extensa pesquisa documental e bibliográfica (“1964 a Conquista do Estado”), mostrou que naquele ano não ocorreu no Brasil uma simples quartelada , mas uma profunda mudança no padrão de acumulação, obedecendo a uma lógica de dominação imperial, por parte dos EEUU. A obra do grande professor Dreifuss mostrou, ainda, que o golpe militar teve uma expressiva participação de setores da sociedade civil anticomunista, com seus interesses empresariais associados a este novo padrão de desenvolvimento, integrado e submisso à geopolítica americana. Diferentemente do que ocorreu naquela época, cujo revestimento central da política golpista era se opor comunismo soviético, as mobilizações contra o Governo eleito da Presidenta Dilma, trouxeram às ruas um contingentes de pessoas, cujas motivações tem diversas origens. Seja porque ela manejou mal a economia, porque o Governo não correspondeu as suas expectativas eleitorais, ou por puro ódio colonial-escravista, contra as políticas sociais dos Governos do PT.

 

Ficou claro, porém, nesta última semana, que a central do golpismo institucional passou longe dos militares e foi formado pelo oligopólio da mídia, articulado com setores do Ministério Público, dos Juízes e das lideranças políticas do rentismo “liberal”, que unificaram esta diversidade. E o fizeram -pautados pela mídia- a partir da raiva contra tudo que foge aos seus padrões de civilidade elitista, ao mesmo tempo permissiva e fascista, “liberal” e reacionária, amoral e fisiológica: de Alexandre Frota a Bolsonaro, de Fernando Henrique a Aécio, de Pauderney a Jucá. Mas não pensemos que as instituições do Estado Democrático de Direito estão falidas e que a nossa democracia não tem saída, pois isso é o que nos querem fazer crer a grande mídia e o nosso percentual de fascistas de turno. A questão é mais complexa, não é somente nacional, nem é fruto de uma crise contingente do capitalismo global, mas de um novo ciclo em que ele pretende se renovar. A crise é o pulmão capitalismo, dizia um barbudo subversivo, e através dela ele respira e se renova.

 

O que se diz aqui, não é que o PT seja uma comunidade de anjos ou que indivíduos dos nossos Governos não tenham cometido ilegalidades ou crimes, tanto nos Governos de Lula, como de Dilma, como de resto sempre ocorreu em todos os Governos que nos precederam, inclusive em maior grau. Nem se defende que a “lava-jato” tenha sido instituída para “aniquilar o PT”, como querem fazer crer alguns formuladores do nosso campo político-partidário, ou que somos vítimas, exclusivamente, dos nossos “acertos”. O que sustento é que a estratégia política de longo curso, da direita liberal-rentista, teve sucesso: hegemonizou uma maioria na sociedade e pôs boa parte dos aparatos institucionais do Estado a seu serviço. Montou uma Frente Política sem qualquer programa visível e uniu os corruptos e fisiológicos de todas as origens, bem como convenceu a maior parte da cidadania – através de um trabalho meticuloso feito pela grande mídia- que estavam “atacando a corrupção”.

 

Formaram, assim, aquela grande Federação de Investigados e Denunciados, boa parte deles originários dos nossos Governos, para se apropriar do Estado Brasileiro sem votos, o que por si só não revela uma debilidade estrutural do nosso estatuto democrático, pois o que vem daí é o “ajuste” mais severo das últimas décadas, não o fim da democracia política, tal qual a conhecemos. O “ajuste”, todavia, é capaz de reorganizar estrutura de classes da sociedade, através de uma acomodação conservadora, pois -vide a Espanha, França e Portugal- os ajustes também formam, na sociedade civil, as suas próprias bases estáveis, se a esquerda não tiver condições de ampliar a sua liderança para formar maiorias eleitorais. As lutas “sociais” podem mitigar as reformas mais duras, mas um outro ajuste de corte democrático, onde “quem tem mais paga mais”, só pode ser viabilizado a partir dos movimentos sociais, por maiorias políticas que tenham reflexos nos resultados eleitorais. Creio que este deve ser o ponto de partida de uma estratégia de esquerda, para o período que nos aguarda.

 

As caracterizações políticas do “centro”, da “esquerda” e da “direita”, não tem as mesmas propriedades em distintos períodos históricos. Para dar dois exemplos bem flagrantes, lembremo-nos que o PT chega ao Governo como partido de “esquerda”, pela via democrática e vai rapidamente ao “centro”, para poder governar, encontrando ali situado o PMDB. Este se torna nosso aliado, por um longo período de Governo, para que pudéssemos avançar em políticas sociais e educacionais que mudaram as condições sociais e econômicas de mais de 50 milhões de brasileiros. Hoje, porém, o PMDB é o eixo em torno do qual a direita “liberal” e a extrema direita, se reorganizam para fazer o “ajuste” exigido pelos credores da nossa dívida pública, cujos sacrifícios vão recair sobre os mais pobres e os remediados.

 

Neste sentido, o PMDB não só não mudou, como é falso dizer que ele traiu, pois a estratégia de enfrentamento da crise mundial, com um ajuste que onere internamente os mais ricos, nunca foi um compromisso deste Partido e nem o PT conseguiu formulá-la claramente. Creio que isso é suficiente para mostrar que o PT só pode se regenerar, como partido democrático de esquerda no interior de uma outra Frente Política, que não vise somente chegar ao Governo, mas, que possa chegar novamente nele com maioria social e parlamentar, para aplicar um novo programa de avanços no emprego, na democracia, no crescimento da economia. A falsa luta contra a corrupção, não o rentismo, foi o que conseguiu dar unidade à frente política do golpismo, por isso agora o “ajuste” passa ser motivo de dissenso, tanto no interior do próprio aparato estatal, como na própria base do Governo Temer, além de sê-lo na sociedade.

 

Uma estratégia democrática de mudanças sociais e econômicas requer uma tática política democrática coerente com os fins da estratégia desenhada. Opino que, hoje, o que é capaz de definir as propriedades dos campos políticos, tidos como de “esquerda” e “direita”, é a posição dos sujeitos políticos organizados, sobre quatro questões chaves: o enfrentamento com o “ajuste” liberal-rentista, que será inócuo se não apresentarmos qual o nosso “ajuste” e quais a suas consequências imediatas na vida do nosso povo; a proposta de uma reforma política, que será inócua se não deixar clara a proibição do financiamento dos partidos pelas empresas (fonte principal da corrupção) e não barrar os micro partidos de “negócios”; uma reforma para democratizar os meios de comunicação e permitir a livre circulação da opinião, que será inócua se não tiver a possibilidade de resgatar a comunicação para as suas finalidades, já proclamadas na Constituição de 88; e, finalmente -independentemente de continuarmos na luta para bloquear o “impeachment”- um amplo acordo para a relegitimação do Poder Político no país, seja por um referendo para novas eleições, seja por uma PEC que convoque eleições gerais, no menor prazo possível. Este “amplo acordo” será inócuo, se não resgatar, para o nosso lado, inclusive lideranças que transitaram em apoio ao “impeachment”, mas que se revelam hoje contra o “ajuste” liberal-rentista e já se sentem enganados pela cantilena da falsa luta contra a corrupção, promovida pela Rede Globo.

 

Na novela de Montalban, o tiro que assassinaria Carrillo veio de dentro do próprio Comitê Central, revelando a existência de um enigma sobre a transição espanhola, bem como a incompetência do seu Partido Comunista, para entender o que estava acontecendo na Europa. No golpismo brasileiro, o tiro que quer assassinar o mandato da Presidenta Dilma, também vem de dentro do “Comitê Central”: vem do âmago do Governo, do seu núcleo mais comprometido com todos os seus erros, do seu cerne político mais forte no Parlamento. Esta é a notável realidade, que a mídia nacional transformou numa cruzada fictícia contra a corrupção, que sai da crise, até agora, mais forte. E mais unida, pois quando os partidos mais influentes do país – sem separação de responsabilidades – são atingidos sem que se fixem politicamente as responsabilidades individuais, a tendência é o povo dizer que “se vayan todos”. E ficam, no fim do túnel, os vampiros do ajuste, com seus dentes afiados, celebrando o homem abstrato do mercado e levando ao desespero as pessoas concretas que trabalham.

 

Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil

 

Fonte: SUL21

 

https://www.alainet.org/es/node/177814
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