Sobre sombras e claros: Temer e Allende

06/06/2016
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Tenho em mãos o livro clássico de Arnold Hauser, “História Social da Literatura e da Arte”, no qual este grande intelectual nascido na Hungria (1892), formado na Alemanha e na Itália — seguidor da escola historicista alemã e de Lukács — traça um vastíssimo painel da história das artes, dos tempos pré-históricos à era do cinema. Hauser sustentava que, assim como a política e a cultura em geral, não podem ser separadas das formas, através da quais os homens produzem para viver e reproduzir-se, a arte não pode ser entendida -na evolução do seu conteúdo e das suas formas vitais- sem vinculá-la aos aspectos materiais mais prosaicos da existência humana: comer, vestir, beber, produzir bens e relacionar-se de forma dominadora com a natureza.

 

Lá na página 279, da edição da Editora Martins Fontes (2003), quando se dedica a compreender a Renascença e o Barroco, Hauser faz a comparação da arte do “quattrocento” com a arte da Idade Média, já decadente. Ali ele contrapõe as formas frescas, “vívidas”, claras, da arte renascentista, à decadência medieval, que tem “um ar sombrio de fundamental melancolia, um esplendor bárbaro (de) formas bizarras e sobrecarregadas”. A transição de uma época para outra nem sempre faz justiça aos seus principais protagonistas: Churchill perdeu as eleições depois de conduzir a Inglaterra na vitória contra a barbárie nazista, Getúlio suicidou-se depois de modernizar o país e registrar na lei, direitos sociais fundamentais da cidadania operária, Jean Jaurés foi assassinado à traição, depois de consagrar a identidade do pacifismo com o socialismo, na França do Século XX.

 

Procurei fazer uma analogia da brilhante formulação de Hauser com a situação política nacional e me veio à mente, sem nenhum preconceito, a tragédia do Governo Temer. Não é um Governo com um “ar sombrio” e de “fundamental melancolia”, com poucas semanas de existência? Não é um Governo de “formas bizarras e sobrecarregadas”? Na retomada da luta democrática do nosso país, que vence as manipulações do oligopólio da mídia, não é um Governo ensimesmado na tristeza da sua ilegitimidade? Sem nenhuma legitimidade quer imobilizar a Presidenta de 54 milhões de votos, que ele substituiu pelas artimanhas da cooptação, num Parlamento com 200 suspeitos de ilegalidades e corrupção!

 

Tenho em mãos um outro livro, “Um andarilho entre duas fidelidades” (Ed. Ponteio, 20015), de uma das figuras mais queridas da esquerda brasileira, Professor Luiz Alberto Gomes de Souza. Católico militante, lutador social, esteve muitos anos em diversos países da nossa América Latina trabalhando para organismos internacionais de assistência, e lutando -ouso dizer- por nossas convicções de justiça social e liberdade. É um livro de memórias e de lições de uma vida que se realizou por inteiro, tendo como referência o sofrimento do outro, espoliado, ofendido, explorado.
Uma passagem do livro do professor Luiz Alberto – para não lembrar a generosidade política da Presidenta Dilma quando recebeu o Presidente Fernando Henrique após a sua eleição – é elucidativa, para formar um juízo sobre a legitimidade e a grandeza de um líder político, seja ele interino ou não. Lembra o Professor Luiz Alberto, que testemunhou quando o Presidente Allende em 1970, ao acompanhar as vibrantes manifestações populares – após a proclamação da sua retumbante vitória- repetia da sacada da União dos Estudantes: “nem um carro amassado, nem um vidro quebrado!”. As comemorações terminaram em ordem, mas o inconformismo da direita fascista, aliada ao conservadorismo tradicional, certamente já preparava o seu bote golpista: Allende ficou na História e os assassinos da democracia chilena são apenas traços do delírio do mal e do ódio assassino.

 

Este exemplo de Allende serve de comparação com os procedimentos que estão sendo adotados pelo Governo Temer, em relação à Presidenta Dilma, com a particular lembrança que Temer, Vice-Presidente, associou-se ao que tem de pior na oposição ao Governo que ele participava, para assumir o poder sem votos, numa verdadeira eleição indireta revestida de um “impeachment” sem fundamento. Mas como Temer ficará na História, mais além do seu registro já feito como conspirador contra o seu próprio Governo?

 

O Presidente interino certamente não é um fascista, embora tenha se beneficiado do ódio fascista, semeado pelo oligopólio da mídia contra o PT e tudo que remete à esquerda e ao libertarismo democrático. O Presidente interino, homem maduro de uma geração que já escreve o seu epílogo, está na idade de pensar como passará para a história: como um triste espectro de um jurista, que se tornou um oportunista autoritário, ou como um democrata, que, em algum momento, perdeu seu rumo e se recuperou em parte? Estas são as suas duas possibilidades, porque certamente nem sombra de Churchill, Getúlio ou Jaurés, ele será, pois estes papéis ele extraviou quando extraviou-se no atalho golpista.

 

Revogar as medidas restritivas à movimentação da Presidenta, antes que o STF o faça, não seria um ato heroico ou atenuante da sua ilegitimidade, mas seria um gesto sensato de quem põe algum limite no cabotinismo autoritário, que parece estar assolando rapidamente o seu curto período de Governo.

 

- Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

6/jun/2016

http://www.sul21.com.br/jornal/sobre-sombras-e-claros-temer-e-allende/

 

https://www.alainet.org/es/node/177942
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