Arrocho fiscal e arrocho ideológico: a censura à mídia crítica
- Opinión
No orçamento de 2016, a Secretaria de Comunicação do governo federal, a Secom, reservou ao conjunto da mídia progressista brasileira cerca de R$ 11,2 milhões do total destinado à publicidade pública (estatais, administração direta etc)
O valor, repita-se, dividido entre toda a mídia progressista, equivale a 1% dos recursos direcionados em 2015, por exemplo, apenas à publicidade nas redes de televisão (mais de R$ 1,2 bilhão).
Neste mês de junho, o golpe cortou esse 1%.
Não por economia.
Para asfixiar ideias.
Para assegurar a supremacia absoluta de uma visão de país que não representa todo o país e que nunca aceitou conviver com um projeto de extração popular, livremente escolhido pelo voto majoritário.
O valor da publicidade suprimida agora pela Secom era na verdade irrisório (1%) em relação aos gastos totais na área.
Foi exatamente essa a palavra –‘irrisório’-- usada pela ‘Folha’, em reportagem que noticiou a decisão (‘Temer corta R$ 11,2 mi em contratos de sites considerados pró-PT’; 14/06).
Suprimir canais de expressão de um pedaço da opinião pública brasileira que compartilha um projeto de desenvolvimento distinto deste que agora se impõe à sociedade é o objetivo indisfarçávelda asfixia publicitária.
Há razões para a sofreguidão.
A tentativa de dissimular o assalto ao poder em cruzada anticorrupção fracassou esfericamente.
O que se espraia é a percepção de uma escória a serviço da plutocracia, que assaltou o poder com apoio cinicamente desvairado de um aparato de mídia antissocial e antinacional, que queimou as caravelas da credibilidade.
Avulta dessa endogamina a negação da democracia como ambiente para escrutinar os conflitos do desenvolvimento em nosso tempo.
O que se desnuda é a determinação grosseira e unilateral de se aplicar no país a receita de um neoliberalismo fundamentalista, anacrônico, ilegítimo e incompatível com a natureza da Constituição vigente desde 1988.
A decisão de asfixiar os canais de expressão do pensamento crítico ganha sentido nesse cenário de polarização extremista.
A intolerância que ataca o mundo respira entre nós. É disso que se trata.
Intolerante com as mulheres, os negros, os artistas, os intelectuais, os estudantes,os gays, as lésbicas, os sem-terra, os sem teto, o golpe também demoniza a opinião crítica veiculada pela mídia progressista.
Sua meta e método se fundem no mesmo propósito: a supressão dos direitos sociais e da soberania popular não pode conviver com a angulação de interesses externada pela mídia progressista.
Impõe-se o estrangulamento financeiro.
O ataque à Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) e o corte na publicidade já ínfima destinada à mídia crítica são patas do mesmo monstro.
O monstro histórico materializado em um bloco de interesses tão dissociado dos da maioria da nação que não pode conviver com a Constituição sem desfigurá-la naquilo que tem de mais sagrada: ser a ‘lamparina dos desgraçados’, como a batizou Ulysses Guimarães,na descrição dos direitos sociais nela contemplados.
Pelo mesmo motivo não pode conviver com a verdadeira liberdade de expressão, abastardada na reafirmação doprivilégio de um sistema de comunicação dominado por cinco famílias de tradições democráticas sabidas.
A sociedade é diversa.
A sociedade não é a Globo, mas a pluralidade de um Brasil em luta pelo desenvolvimento.
A sociedade não é os que agora a oprimem, em nome de uma racionalidade financeira plana e lisa, incompatível com o investimento na escola, no SUS, na moradia popular, na cultura, na reforma agrária, na pesquisa, no patrimônio público e na soberania.
Existe uma opinião pública progressista no Brasil. E o voto soberano, que desde 2002 referanda políticas e projetos antagônicos aos sentenciados ora pelo golpe, deixa isso claro.
Tão claro que não fosse por ele o golpe não teria sido necessário.
O país real ainda padece de um déficit brutal entre o que as urnas tem reclamado e o cotidiano de vida da imensa maioria da sua população.
Ainda assim, avanços ocorreram.
A direita os enxergou. Nao apenas na extensão modesta de sua vigência, mas no despertar de dinâmicas, possibilidades e forças por eles engendradas.
Na visão do golpe e de seu coral midiático, a disjuntiva colocada pela encruzilhada brasileira se resume a uma contabilidade fiscal: mais Estado ou Estado mínimo.
A obra de demolição que ergue tapumes asfixiantes em torno da Constituição pretende não hesita na sua escolha.
A escolha é reduzir em 30% o tamanho do setor público, decepando do metabolismo constitucional seus braços sociais, seu cérebro de maior igualdade e a salvaguarda de defesa da soberania nacional.
Tudo se passa como se uma junta militar editasse sentenças de vida ou morte sobre o destino brasileiro.
Hoje essa junta militar assume o nome de lógica rentista: a mídia é o seu fuzil.
Nunca a luta pela sociedade digna remeteu tão diretamente à necessidade de se deter o controle democrático do poder de Estado.
E nunca como hoje o Estado esteve tão engessado por um poder prevalecente, quase integralmente subordinado a normas e agendas que o reduzem a pouco mais que uma anexo dos desígnios do capital financeiro.
A política fiscal –ou seja, a ferramenta que dá ao Estado o poder de induzir e ordenar o investimento público e privado-- é o canal estruturante do golpe.
Através dela se exerce o sequestro da agenda do desenvolvimento: a meta, sugestivamente, é reduzir o gasto do Estado à mesma proporção vigente ao final do ciclo do PSDB no governo.
Leia-se: apagar a borracha nos doze anos de progressão dos governos do PT.
A caçada diuturna à ‘gastança social’ --bordão tucano agora no poder-- visa manter o azeite rentista num eixo de supremacia que assegura todos os demais interditos.
Faz parte dessa coesão o silêncio de ouro do jornalismo ‘apartidário’: nenhuma palavra sobre a esterilização desconcertante de 9% do PIB – R$ 500 bilhões anuais gastos com o juro da dívida pública.
A camisa de força fiscal levará a sucessivas espirais de definhamento do investimento público, enjaulando o país num círculo vicioso de ciclos episódicos de crescimento, arrocho e declínio estratégico.
É o ardil dentro do qual o Brasil se debate nesse momento: entre o golpe paraguaio e a luta por mais democracia e desenvolvimento social.
A bonança recente do ciclo de commodities ofereceu ao país um lampejo de que a pregação golpista não é fatalidade.
Três gestões petistas sucessivas souberam aproveitar esse atalho para reduzir a perversão social acumulada em 500 anos de capitalismo excludente.
Um dado resume todos os demais: o mercado de massa criado nesse processo acoplou à economia brasileira um novo país, com peso e medida para credenciar-se ao G-20.
Embora o dever de ofício midiático se esmere em negá-lo, o fato é que todo o vapor da caldeira conservadora hoje se concentra em desmontar o salto de justiça social que seus porta-vozes desmentem ter ocorrido.
Dê-se a isso o nome técnico que for: o que se mira é a regressão destes doze anos.
A asfixia imposta aos blogs e sites progressistas é parte indissociável dessa espiral, cuja viabilidade requer mumificar o país num formol fiscal em que nada se move e as diferenças deixam de respirar.
A asfixia imposta à mídia progressista requer uma resposta imediata e engajada.
Parcerias contra a censura, como propõe a campanha lançada por Carta Maior (saiba mais nesta pág: http://cartamaior.com.br/pages/sejaparceiro/ ) podem erguer a pontes da sobrevivência imediata.
Mas é preciso unir forças para ir além.
A livre expressão da opinião crítica é indissociável da luta pelo desenvolvimento democrático do país.
Faz parte desse direito o acesso legítimo à publicidade pública e a condições de existência diferenciadas, contempladas a pequenas e micro empresas em outros setores da economia.
Um longo ciclo de aperto fiscal e de silencio contraditório, como preconiza o golpe, privará a sociedade do debate e dos investimentos necessários ao salto de infraestrutura e produtividade para superar a encruzilhada brasileira atual.
Sobrará a alternativa de um regime de força destinado a deprimir a renda real das famílias assalariadas -- via supressão de poder de compra e liquidação de direitos trabalhistas.
A Europa em carne viva de estagnação, desemprego e pobreza --que enreda 122 milhões de cidadãos no antigo berço do Estado do Bem-Estar Social-- é a vitrine mais vistosa dessa receita, ali praticada desde o colapso de 2008.
São esses os desdobramentos e as escolhas embutidos na pregação golpista, segundo qual, ter menos Estado redundará em uma sociedade melhor.
É tão frágil e pouco crível que precisa se valer da asfixia da opinião crítica para tentar subsistir.
20/06/2016
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