“Escola sem partido” ou reprodução ideológica do fascismo?
- Opinión
“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens de educam entre si, mediatizados pelo mundo”.
(Paulo Freire)
Quando chegaram ao poder na Itália em 1922, os fascistas não possuíam um programa educacional definido. Contudo, a ideologia fascista tinha como objetivos claros afastar a oposição de dentro dos estabelecimentos de ensino para formar soldados e lideranças moldadas pelo doutrinamento de ódio que defendiam.
Com o tempo Mussolini vai formatando o seu projeto educacional por meio da centralização dos conteúdos pedagógicos, restrição dos métodos de ensino e substituição dos Conselhos Provinciais, com funções amplas e representantes eleitos, por Conselhos com atribuições restritas, predominantemente disciplinares, e representantes indicados pelo Governo Central.
A educação, nas ditaduras, é vista como um processo mecânico de formação de mentes fabricadas. Trata-se de uma estratégia afastada do mundo concretamente vivenciado, com escolas exercendo o papel meramente doutrinário. Não é uma educação formadora, mas formatadora, jamais servindo como campo de construção e consolidação da cidadania. A iniciativa e a participação são substituídas restrição pedagógica e pelo silêncio. O exercício intelectual e a crítica, pelo voluntarismo reprodutor de dogmas e estigmas.
E é exatamente neste caminho que trilha o Projeto de Lei nº 193 de 2016, da autoria do Senador Magno Malta (PR/ES), que além da atuação política também exerce a função de pastor evangélico. A minuta em comento tem por objetivo instituir o “Programa Escola Sem Partido”, um arremedo normativo conservador com fortes traços ideológicos fascistas.
O Projeto de Lei parte de um pressuposto impossível que é neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado (art. 2º, I), ao mesmo tempo em que afirma defender a liberdade de aprender e ensinar e o pluralismo de ideais no ambiente acadêmico (art. 2º, II e III). Ora, se existe liberdade para o pluralismo de ideias e liberdade de aprender e ensinar não há neutralidade política e ideológica do ensino. Todavia, como veremos adiante, o projeto de Malta não tem nenhuma preocupação com pluralismo ou liberdade de aprender e ensinar.
A proposta do dublê de Senador e de Pastor é desnudada logo no parágrafo único do art. 2º, de onde extraímos a seguinte redação absolutamente inconstitucional:
“Art. 2º…
Parágrafo único. O Poder Público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero”.
Aqui temos um retrocesso educacional gigantesco, com evidente corte ideológico conservador para restringir a liberdade política, de consciência e de pensamento de professores e alunos, ao proibir o debate sobre temas tão relevante para a sociedade como gênero e sexualidade. O que é teoria ou ideologia de gênero? Será que ler obras de clássicos importantes para a história da humanidade como Michel Foucault, Simone de Beauvoir são consideradas como ideologia de gênero? Na realidade, a mente restrita dos conservadores vê qualquer postulado que desconstitua parâmetros de domínio de gênero como uma ideologia a ser enfrentada.
Na exposição de motivos o proponente apresenta suas bases ideológicas, atacando tanto a liberdade intelectual dos docentes, como a produção de material didático não alinhado com a sua doutrina religiosa ou política:
“É fato notório que professores e autores de materiais didáticos vêm se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes à determinadas correntes políticas e ideológicas para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis”.
No cerne da proposta do Senador Malta temos uma defesa intransigente da homofobia, do sexismo e do racismo já no ambiente escolar. Esse projeto ofende diretamente o art. 5º da Constitucional Federal desde o “caput”, e um dos postulados da norma fundamental que é a “dignidade da pessoa humana”. Em uma sociedade democrática, nenhuma norma jurídica pode proibir a escola de debater a desigualdade e confrontar o doutrinamento de ódio.
Ao contrário do que defende o PL 193/2016, cabe sim ao Estado colocar no centro da discussão acadêmica e educacional todas as formas de discriminação e de preconceito para afastá-las da sociedade.
Mas o PL 193/2016 ainda vai mais longe, ao restringir o debate político, sociocultural, econômico das escolas, proibindo os professores de expressarem as suas opiniões (art. 5º, IV). Mais do que isto, os professores deverão respeitar as convicções religiosa e moral de pais alunos. Assim, questiono: qual é extensão das pretensões do Projeto de Lei? Será que um professor de ciências deverá substituir a Teoria da Evolução pelo Criacionismo? Será admissível a manutenção de teorias religiosas que condenam a homoafetividade, o islamismo e as religiões de matriz africana?
O Programa Escola Sem Partido é, na verdade, mais um mecanismo de doutrinamento de ódio e da intolerância política, cultual e religiosa, além de uma tentativa espúria de impor o silêncio às diferenças. Tem como meta principal impedir qualquer ruptura da sociedade com o modo de pensar imposto pela mídia e pelas igrejas.
Em termos gerais, as escolas públicas são espaços de resistência, pois elas espelham a verdade enfrentada por professores e alunos no cotidiano, tanto que se refere à violência física, econômica e simbólica, como a desigualdade, a discriminação social, a exclusão, a má remuneração dos profissionais de ensino, dentre outras. Quando esta verdade é apresentada em sala de aula, os argumentos construídos pelos meios de comunicação de massa, controlados pelos conservadores, perdem sustentação, e é exatamente contra essa possibilidade de transformação da sociedade que surge o projeto de Magno Malta.
Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em ciências sociais.
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