Fernando Morais fala sobre importância e heranças de Fidel

01/12/2016
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São Paulo (SP).- O primeiro e o último livro-reportagem publicados, até agora, pelo jornalista e escritor Fernando Morais, abordam o tema da revolução cubana. “A Ilha”, de 1976, se tornou um ícone da esquerda brasileira, com análises de diversos aspectos do país pós-revolução e uma entrevista com Fidel Castro, realizada pelo autor enquanto trabalhava na Revista Veja e acrescentada na edição mais atual do livro. Já “Os Últimos Soldados da Guerra Fria”, de 2011, investiga a história de cubanos infiltrados em uma operação nos Estados Unidos para espionar grupos anticastristas.

 

Após diversas estadias e extensa pesquisa sobre a ilha caribenha, o escritor tenta planejar agora mais uma viagem, para acompanhar os eventos que estão sendo organizados no país após a morte de sua maior liderança, o comandante Fidel Castro, na noite da última sexta-feira (25). O luto de sete dias instituído pelas autoridades cubanas já contou com um ato em homenagem à Fidel realizado na última terça-feira (29) na Praça da Revolução, em Havana, que reuniu milhares de cubanos e delegações de pelo menos 50 nacionalidades.

 

Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Morais afirmou que as mobilizações que vêm sendo realizadas em Cuba são “o maior exemplo da importância de Fidel e de como ele será julgado pela história”. “Milhões e milhões de pessoas nas ruas desde ontem, o povo indo até Santiago para acompanhar o funeral. Há muito tempo o mundo não via nada parecido, é algo espontâneo, você olha e são pessoas, não são batalhões fardados, a população inteira se mobilizando para se despedir do Comandante”.

 

Sobre a herança de Fidel para o mundo, o escritor reiterou que a rebeldia do líder cubano ficará para a história. “Não se pode esquecer jamais que Cuba foi o país que, por mais tempo, resistiu aos Estados Unidos e ganhou, não foi derrotado, venceu. Fidel se despediu desse mundo com essa luta e as lutas paralelas que lutou e impérios que derrotou também na África”, afirmou, destacando a luta pela independência da Angola, que contou com o apoio de milhares de soldados cubanos.

 

“Acho que daqui a 200 anos, quando os tataranetos de nossos netos olharem para o século XX e tiverem que escolher três grande líderes, seguramente um deles será Fidel. Acho que a figura dele começará a ser melhor entendida depois de sua morte, porque diminui muito a paixão. Essa história ainda será escrita”, disse Morais.

 

Confira a entrevista na íntegra:

 

Brasil de Fato: Aos 90 anos, Fidel, um dos maiores líderes revolucionários do mundo, parte. Qual a sensação ou primeira avaliação que fez assim que soube da notícia?

 

Fernando Morais: Bom, o primeiro sentimento, claro, é de tristeza, ainda que fosse algo previsível, porque, embora ele estivesse muito lúcido quando estive com ele há três anos, ele já tinha 90 anos e tinha escapado de uma mega cirurgia delicadíssima. Mas é muita tristeza.

 

Qual a herança, a maior contribuição, que Fidel Castro deixou para Cuba e para o mundo?

 

Primeiro a rebeldia, considerando que Cuba foi o país que durante mais tempo enfrentou o império norte americano, nem a guerra do Vietnã foi tão longa quanto os 50 anos da revolução, e as agressões brutais que Cuba foi vítima nesse período. Tive a oportunidade de pesquisar mais de perto essa questão das agressões, seja agressão formal seja agressão por atos terroristas, e tive a oportunidade de pesquisar dos dois lados do estreito da Flórida, tanto do lado cubano quando com artigos públicos norte-americanos, e não pode esquecer jamais que Cuba foi o país que por mais tempo resistiu aos EUA e ganhou, não foi derrotado, venceu. Fidel se despediu desse mundo com essa luta e as lutas paralelas que lutou e impérios que derrotou também na África. Se não fossem os centenas de milhares de soldados oficiais cubanos que se mobilizaram quase clandestinamente no começo para a Guerra de Libertação da Angola, muito provavelmente a África do Sul, por baixo, e o Zaire, por cima, teriam ocupado o país. Isso não é uma avaliação ideológica, mas até os historiadores e militares conservadores concordam com isso. Sem a presença cubana, o final da guerra teria sido outro. O próprio Mandela, destacou isso logo que foi libertado, nas primeiras declarações dele disse isso, que se não fosse o comando de Fidel Castro, o destino do Cone Sul Africano teria sido outro, o próprio Mandela não teria sido libertado se não fossem as mudanças produzidas pela Guerra de Angola na região.

 

Frei Betto disse certa vez que Fidel era o último grande líder do século. Você pensa desta forma, concorda?

 

Concordo, sim, concordo. Eu acho que daqui a 200 anos, quando os tataranetos dos nossos netos olharem para o século XX, e tiverem que escolher três grandes líderes, não sei quem serão os outros dois mas seguramente um deles será Fidel, por razão de justiça. Eu acho que a figura dele começará a ser melhor entendida depois da morte dele, porque diminui muito a paixão. A presença física dele ainda gerava muita paixão, agora vai ser possível fazer um balanço do papel que ele deixou pra história, porque essa questão do internacionalismo proletário, que hoje a gente vê com os médicos cubanos espalhados, isso tem pra Cuba a mesma idade da revolução Cubana. A maioria das pessoas não sabe, mas na Guerra de Libertação da Argélia, no comecinho dos anos 1960, já tinha cubanos revolucionários pós-Fidel, e isso veio pelo mundo inteiro.

 

A Angola acabou se tornando um caso mais visível, mas Cuba participou ativamente da libertação das outras colônias portuguesas. Eu tenho um grande amigo em Cuba que conheci há 40 anos quando fui para lá pela primeira vez, que é um diplomata, hoje um homem idoso, já aposentado, que me contou que ele já tinha lutado na guerra de libertação da Guiné Bissau. Você vai encontrar rastros da revolução cubana praticamente em todo o planeta, na Guerra do Vietnã, em várias guerras da Ásia. Essa história ainda está para ser contada. Mas é inacreditável que um país daquele tamanho, com uma população que não é nem uma grande São Paulo, com economia inexpressiva, porque era a história da monocultura da cana de açúcar, um país como esse, que tem charuto, rum, mas do ponto de vista econômico isso não tem significado - mesmo a cana de açúcar deixou de ser a principal fonte da economia cubana - se você considerar isso, os feitos de Cuba pelo mundo, não só militares, mas humanitários, são incríveis.

 

Tem passagens muito significativas na América Latina também. Um dos países mais hostis à Revolução Cubana na América Latina foi a Nicarágua, lá foram treinadas as tropas missionárias dos EUA que organizaram a invasão da Baía de Porcos, em 1961. E em 1974, passados 13 anos praticamente, um terremoto devastou a Nicarágua, principalmente a capital, Manágua, foi assustador, eu fui para lá depois do terremoto e é impressionante a cicatriz até hoje. Cuba não teve dúvidas, mandou para lá batalhões de médicos com plasma sanguíneo, mesmo se tratando de um país altamente agressor, altamente hostil à Revolução Cubana. Essas coisas são muito bonitas, é uma generosidade, não no sentido cristão, mas é coisa que você faz e não espera nada em troca. Cuba não foi para a Angola atrás de petróleo, ouro, diamante ou marfim, atrás de nada do ponto de vista material. Essa história ainda está para ser escrita pelos filhos da gente.

 

Você acha que a morte do grande líder cubano pode afetar os acordos de reaproximação com os EUA?

 

Eu não sei, você sabe que o fato de ter sido eleito uma pessoa de extrema direita nos EUA não me aterroriza tanto porque eu já perdi a ilusão com os EUA. Cada dia mais eu me convenço que com política externa é praticamente irrelevante o candidato ser democrata ou republicano, as grandes aventuras militares praticadas pelos EUA da Guerra Fria até agora foram lideradas por democratas. Foi Kennedy no Vietnã e quem tirou os EUA do Vietnã foi o Nixon, um genocida, que também reatou as relações com a China, que era um tabu da Segunda Guerra foi Nixon, com o Kissinger. Então não acho que vai piorar não. Há uma razão muito pragmática para que essa questão não sofra nenhum recuo, que é que os governadores dos estados sul dos EUA, que são quase todos republicanos, são a favor do reatamento de relações e fim do bloqueio econômico, por interesses materiais, querem comprar coisas de Cuba e vender coisas. Americano para essas coisas é mais que pragmático, é um pouco cínico. Cuba não ameaça em absolutamente nada os EUA, acho que a morte do Fidel, que coincide com a eleição do Trump, não vão influenciar a aproximação.

 

Na atual conjuntura da América Latina e do mundo em geral, com o avanço do conservadorismo, qual a relação que se pode fazer com a morte de Fidel? O que podemos tirar de seus ensinamentos para reestruturar os caminhos da esquerda?

 

O Fidel deixou herdeiros. É uma pena ter morrido tão precocemente o comandante Hugo Chávez, mas o que há hoje, que a gente vê e nos preocupa tanto, é um avanço da direita neoliberal na América Latina, que tomou uma cotovelada na gengiva agora com a eleição do Trump. Ainda assim, há uma tentativa de desestabilização de regiões progressistas, isso já se concretizou no Paraguai com Lugo, Honduras com a derrubada de Zelaya e aqui no Brasil com a Dilma. Mas é parte de um processo, sem envolver forças armadas ou tanque na rua, golpes parlamentares e políticos, Paraguai e Honduras foi igual, um laboratório para o Brasil. Além disso você vê muita pressão sobre a Venezuela e a Bolívia, alguns casos nas urnas também, a vitória do Macri na Argentina, a derrota da Cristina, com montanhas de dinheiro na campanha do Macri, com envolvimento com Panamá Papers, assim como no Brasil a grande mídia foi toda comprometida com a campanha do Macri e desmoralização da Cristina. Há uma reação conservadora na América Latina, mas precisamos resistir.

 

O que a semana de luto por Fidel em Cuba pode mudar na imagem da ilha pelo mundo?

 

Eu acho que o que está havendo em Cuba é o melhor exemplo da importância do Fidel e de como ele certamente será julgado pela história. Milhões e milhões de pessoas nas ruas desde ontem, o povo indo a Santiago para acompanhar o funeral, há muito tempo o mundo não via nada parecido, e é algo espontâneo, você olha e são pessoas, não são batalhões fardados, a população inteira, se mobilizando para se despedir do Comandante.

 

Edição: José Eduardo Bernardes

 

Brasil de Fato, 01 de Dezembro de 2016

https://www.brasildefato.com.br/2016/12/01/fernando-morais-fala-sobre-importancia-e-herancas-de-fidel/

 

https://www.alainet.org/es/node/182100
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