O Mito da “Desglobalização” de Trump
- Opinión
A crise econômica persistente e profunda, resultado do crescimento da desigualdade nos países mais desenvolvidos e dos processos de desregulamentação da acumulação do capital que ocorreram desde o final da década de 1970, vem acarretando insatisfação social e política crescente em muitos países.
Forças da direita mais atrasada, de caráter protofascista ou decididamente fascista, se aproveitam da insatisfação e resentimento das classes médias e trabalhadoras empobrecidas e desempregadas para crescer politicamente, acenando com um discurso nacionalista, racista e xenófobo.
Essa associação política entre trabalhadores inseguros e ressentidos e uma direita xenófoba, autoritária e voluntarista não é nova. Na Itália da década de 1920, a maior parte dos líderes sindicais aderiu ao fascismo. Na Alemanha, boa parte das tropas de assalto (SA) de Hitler era composta por gente da classe operária. O nacional-socialismo seduziu vastos setores das classes trabalhadoras europeias e até mesmo lideranças socialistas, iludidas com a "nova força" que destruiria a "velha ordem democrática burguesa" e o "internacionalismo que enfraquecia os Estados nacionais".
Repetindo a História como farsa, alguns acreditam que Trump, um bufão racista, misógino, que sempre apoiou as políticas do partido republicano em prol do grande capital, poderá se converter, de fato, numa liderança que poderá reestruturar a ordem capitalista norte-americana e internacional, direcionando-a a uma "desglobalização" e à geração de empregos nos EUA.
Trata-se de equívoco crasso. Embora Trump expresse as contradições e as tensões latentes da ordem capitalista distópica, ele não promoverá uma real "desglobalização", ou algo assemelhado.
Para entender porque Trump não será uma liderança "desglobalizante", é necessário compreender, em primeiro lugar, o que é ou foi o que se convencionou chamar de "globalização".
A "globalização", etapa histórica recente da ordem capitalista mundial, não foi um processo conduzido por forças impessoais e autônomas. Não foi uma consequência necessária e inevitável da "modernização" e da expansão do internacional do capitalismo.
Na realidade, a globalização foi um processo conduzido essencialmente pelo Estado nacional norte-americano e seus aliados europeus e asiáticos, com o intuito de assegurar os interesses econômicos de suas grandes empresas e a conformação de uma ordem mundial fundada na hegemonia ideológica do neoliberalismo e no domínio geopolítico da única superpotência planetária.
Assim, os principais interesses contemplados nesse processo foram os interesses geopolíticos dos EUA e os interesses econômicos de suas grandes empresas.
O NAFTA, por exemplo, agora criticado por Trump, nunca foi um projeto mexicano. Ele sempre foi um projeto concebido e proposto (na realidade, imposto) pelos EUA, com o objetivo de beneficiar as suas empresas, que buscavam (e buscam) reduzir seus custos trabalhistas e ambientais, de forma a produzir com maior lucro, num cenário econômico mais competitivo.
Da mesma forma, a finada ALCA era um projeto norte-americano destinado a colocar toda a América Latina na órbita econômica e estratégica dos EUA. A própria "desterritorialização" da produção industrial norte-americana, que se deslocou parcialmente para a China e outros países asiáticos, foi promovida ativamente pelas autoridades norte-americanas, em nome dos interesses de suas grandes empresas.
Esse processo foi acompanhado por uma "financeirização do capital" que, combinada com fato de que o dólar é a moeda mundial, permitiu o financiamento dos déficits norte-americanos pela via dos investimentos financeiros e especulativos. Desse modo, a China se tornou o principal credor dos EUA.
Há, portanto, uma relação simbiótica entre a "desterritorialização" da produção industrial norte-americana e a "financeirização" do capital em nível mundial. Há também, é óbvio, uma relação indissolúvel entre a adoção do receituário neoliberal em nível interno e a globalização. A globalização nada mais é que a expansão desse receituário em nível mundial.
Por conseguinte, para ser realmente antiglobalização, Trump teria de ser também antineoliberal e contrário à financeirização e à desregulamentação do capital.
Ora, ao contrário de Bernie Sanders, Trump não tem essa perspectiva estratégica. Seu compromisso político essencial continua a ser com o grande capital norte-americano, não com os blue colars que o elegeram. Por isso, sua principal propositura no campo econômico é a da redução de impostos para empresários e o corte de programas sociais, como o "obama care", o que deverá agravar ainda mais a desigualdade nos EUA.
Mas, mesmo que em seu voluntarismo míope Trump resolva tomar alguma medida que contrarie, de fato, os interesses consolidados do capital norte-americano, ela terá dificuldades de prosperar.
Em primeiro lugar, porque o seu partido tem uma relação umbilical com esses interesses.
Em segundo lugar, porque uma medida desse tipo dificilmente seria aprovada pelo Congresso dos EUA. Não teria grande apoio no Partido Republicano, pelos motivos já expostos, e não teria grande apoio no Partido Democrata, por ser de oposição.
Em terceiro lugar, porque ela provavelmente seria "judicializada", tal como ocorreu com sua absurda e ilegal Executive Order referente à proibição de entrada de pessoas proveniente de países islâmicos. Ressalte-se que a abertura comercial globalizante está blindada em acordos internacionais que os EUA assinaram. No NAFTA, por exemplo, eles (os norte-americanos) introduziram todo um capítulo, o qual permite que empresas que tenham seus interesses afetados por ações governamentais possam acionar o Estado que as promoveu em arbitragens internacionais. Concebido para impedir eventuais arroubos nacionalistas de mexicanos e canadenses, esse privilégio concedido aos investidores poderia, agora, ser usado contra Trump.
Em quarto lugar, porque, apesar de seu carisma e da sua personalidade forte, Trump já é um presidente politicamente frágil. Em apenas 8 dias de mandato, ele ultrapassou 50% de desaprovação popular, segundo as pesquisas de opinião. Trata-se de um recorde. Obama precisou de 939 dias para atingir tal índice de impopularidade. As massas progressistas, que poderiam dar apoio a medidas que contrariassem os interesses do grande capital, o detestam, por ser ele contrário às pautas das mulheres, dos afrodescendentes, dos latinos, dos homossexuais, dos defensores do meio ambiente, etc.
Assim sendo, esperar que Trump possa ser realmente antiglobalização (e, portanto, antineoliberal) seria a mesma coisa que esperar, no Brasil, que um eventual presidente do DEM pudesse contrariar os interesses do sistema financeiro e da bancada ruralista. Em ambos os casos, a engenharia política é impossível.
No máximo, Trump negociará a instalação de algumas fábricas nos EUA em troca de incentivos fiscais e financeiros polpudos. Nada, contudo, que subverta a ordem econômica conservadora.
Uma eventual "desglobalização trumpiana" terá caráter conservador. Ela será dirigida contra imigrantes, "terroristas" e traficantes de drogas. Também será dirigida contra o multilateralismo (nome técnico para democracia nas relações internacionais), a ONU e tudo aquilo que a direita norte-americana enxerga como limitações ao exercício ao poder dos EUA no mundo. Apesar de contestar a utilidade da OTAN, Trump deverá ser mais belicoso que os últimos presidentes dos EUA, e não hesitará em intervir unilateralmente em qualquer lugar, caso julgue necessário.
Trump, apesar de caricato, é perigoso. Não tanto por sua imprevisibilidade, sua ignorância em assuntos internacionais e sua falta de tato diplomático, mas por seu previsível nacionalismo de matiz protofascista. Seu "America First" significa, na realidade, a priorização absoluta dos interesses do império no mundo e do grande capital, no plano interno. Ao contrário do nacionalismo de alguns países emergentes, que tem caráter defensivo e progressista, o nacionalismo de Trump está carregado de ofensiva belicosa, em nome de interesses conservadores.
Nesse contexto, a aposta que o governo golpista brasileiro está fazendo na reinserção do Brasil na órbita dos interesses estratégicos do EUA, que já era claramente contrária aos verdadeiros interesses do nosso país, tornou-se, agora, com a eleição de Trump, simplesmente patética. É a mesma coisa que atrelar os destinos do país a um bêbado que nos despreza.
Como diria o próprio Trump, it´s a HUGE mistake. Um erro colossal. Ok?
- Marcelo Zero é sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado
1 de Fevereiro de 2017
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