O papel de um partido político de bases
- Opinión
A teoria dos partidos políticos é sempre espinhosa para qualquer cientista social, tamanha é a variedade de concepções teóricas existentes. Adotando uma visão mais simplista, inspirada na escola da ciência política norte-americana, podemos dizer que um partido é um instrumento para atingir o poder formal por meio de propaganda. Não chega a ser uma teoria totalmente errada, pois muitos partidos, especialmente em sistemas dominados por concepções individualistas e pragmáticas são exatamente isto. Aliás, de forma bem realista, Joseph Schumpeter afirmou peremptoriamente que, nas modernas democracias concorrenciais, tamanho é o peso da propaganda, que cada vez é mais difícil diferenciar a ideologia partidária. Em sistemas concorrenciais puros, os partidos se aproximam em termos de práticas e discursos. Talvez por isto, o próprio Schumpeter visse na redução da participação social um maior vigor da democracia, tese que também seguida por Raymond Aron e, de certa forma, por Giovani Sartori.
A teoria crítica de esquerda sempre buscou novas formas de organizações partidárias, na figura dos partidos de massas ou partidos revolucionários. Podemos incluir neste campo Rosa Luxemburgo, Antônio Gramsci, Leon Trotsky e o próprio Marx. Eu diria que Gramsci faz a análise mais completa do processo político por uma razão óbvia: enfrentou um governo fascista dentro de um país de capitalismo avançado oligopolista. Mas a ideia do partido de massas, em contraposição aos partidos elitistas de quadros, não é um privilégio da esquerda. Há uma deturpação histórica que foi executada pela direita, exatamente no fascismo e no nazismo. O partido de Hitler era uma organização militar de massas. Aliás, esta é uma das grandes deturpações de partidos de massas, a hierarquização e a militarização. Na prática, são organizações elitistas onde as massas são apenas a um tijolo de sustentação. Trata-se, portanto, de uma visão diferente da defendida por Trotsky e Rosa Luxemburgo, pois ambos viam as organizações de massa como espaço de participação, de formação de consciência e, portanto, de transformação.
Por este motivo, particularmente não gosto da designação “partido de massas”, prefiro “partidos de bases” e existem outras razões para isto. A primeira é que nenhum partido é formado por grupos homogêneos, com pensamento único, cegos e fiéis às lideranças. Os partidos, especialmente os da esquerda, são formados por grupos de vários movimentos, todos com a sua pauta e ideologia próprias. Chamamos isto de grupos ou “tendências partidárias” e, no meu entendimento, são o elemento de oxigenação e enriquecimento dos partidos políticos.
O Partido dos Trabalhadores (PT), quando surgiu, era assim, um projeto coletivo, formado por ideias de vários grupos, movimentos e tendências, e foi por isto que se afirmou como o mais completo e complexo partido do país. Lula foi uma liderança fundamental, assim como Olívio Dutra, Raul Pont, José Genoíno e tantos outros e outras. Das pastorais de base, passando pelo movimento estudantil, movimento feminista e sindical, o PT é o fruto do anseio de milhões de pessoas que lutaram por democracia. Na sua origem, um verdadeiro partido de bases, que conseguiu levar para as ruas todas as reivindicações dos que não tinham voz em uma sociedade ainda dominada por uma ditadura militar violenta, cruel e excludente.
Ocorre que o PT cresceu e sofreu transformações, muitas das quais em prejuízo da organização partidária. Gabinetes de mandatos passaram a ter mais peso do que as tendências políticas e o debate de base, que sempre foi a mola propulsora do partido, acabou sendo substituído pelas decisões de lideranças. Não acredito que isto seja derivado do crescimento do papel institucional do partido, mas do excesso de pragmatismo de algumas lideranças, o que também resultou na fragmentação da identidade, no afastamento de alguns movimentos sociais, especialmente dos mais novos, e no bloqueio da emergência de lideranças.
Os grandes quadros políticos do PT, os mais expressivos, ainda são os mesmos da década de 1980. Talvez a única exceção seja Fernando Haddad (SP), mas nota-se uma grande dificuldade para a emergência de novos quadros, com consciência crítica e capacidade de oxigenar o partido, exatamente no momento em que um “Partido dos Trabalhadores De Bases”, nunca foi tão fundamental.
Hoje, lendo uma expressão adotada por Olívio Dutra (RS), senti a necessidade de resgatar este debate que é fundamental: “O Partido dos Trabalhadores é um projeto coletivo”! E é exatamente assim que ele deve ser tratado. Foi desta forma que ele ajudou o Brasil a romper com a ditadura e a construir o pouquíssimo tempo que tivemos de democracia. Como um projeto coletivo, como um projeto popular, com uma ênfase nas suas bases sociais.
Mas para exercer este papel, o partido precisa se reinventar. Talvez seja o momento de transferir a presidência nacional para um quadro expressivo e que tenha enfrentado a ditadura, que tenha em cada canto do corpo e da alma o significado da importância da democracia, como Dilma Rousseff ou Olívio Dutra, para citar dois exemplos que me surgem no momento. É preciso reconstruir as organizações de base, chamar os movimentos sociais para dialogar de forma franca e aberta, com aceitação da crítica. Mais do que isto, chamar os demais partidos de esquerda para conversar e construir uma grande frente democrática de esquerda. Aliás, é possível que o renascer do PT como partido de bases esteja exatamente nesta frente. A única certeza é que nada pode continuar como está, senão podemos perder mais do que apenas a nossa maior liderança num julgamento tão lícito como o das cortes de apelação de Hitler, mas de deixar o tempo passar sem reagir contra todos os golpes de estado que estão sendo executados todos os dias contra a população do país.
- Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em ciências sociais
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