A peste e a política

23/03/2020
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A peste do coronavírus registra mais de 740 casos no Chile. Duas pessoas morreram: uma mulher de 82 anos e um idoso que já sofria de câncer no pulmão. A cada três dias, o número de pessoas infectadas dobra. As autoridades admitem que o número pode ultrapassar os cem mil casos, e talvez mais. Mas eles afirmam estar preparados e equipados. Eles estão comprando – e recebendo doações de – ventiladores mecânicos da China, que é o principal parceiro comercial do Chile.

 

O governo declarou um Estado de catástrofe, que lhe permite adotar medidas de emergência e usar as Forças Armadas para aplicá-las. O toque de recolher foi decretado entre 22h e 5h, em todo o território nacional. As fronteiras foram fechadas.

 

Generais e almirantes passaram a ser as autoridades máximas das 16 regiões do país. As Forças Armadas patrulham as ruas e vigiam supermercados, centrais elétricas, de água potável e dos serviços de comunicação.

 

Foram instaladas barreiras sanitárias em muitas das 346 comunas cujos prefeitos foram muito críticos às autoridades de saúde. Estabeleceu-se a quarentena em várias áreas. Uma quarentena nacional não está descartada, e o ministro da Saúde, Jaime Mañalich, relutante em tomar essa medida extrema, diz que pode durar seis meses.

 

O mercado de ações entrou em colapso e o dólar disparou, alcançando valor recorde. O preço do cobre, principal produto de exportação, caiu 16% na última semana e as operações de mineração menos competitivas anunciam que fecharão.

 

Grandes empresas privadas, até ontem detratores do Estado, correram para pedir ajuda ao governo. A primeira a fazê-lo publicamente foi a empresa transnacional Latam, cujas ações no mercado de ações caíram 76%. Enquanto isso, essa empresa resolveu reduzir os salários de seus trabalhadores em 50%.

 

O governo tenta sair da crise com um plano de “estímulo econômico” – como definiu o jornal El Mercurio, tradicional porta-voz da oligarquia – de 11,75 bilhões de dólares. Em parte, será financiado com dívida externa e com a emissão de fundos soberanos.

 

No entanto, corre contra o tempo. Mais de cem mil empregos foram perdidos na Região Metropolitana de Santiago. Milhares de vendedores ambulantes tomaram as ruas e centenas de pequenas e médias empresas fecharam.

 

O Chile é um país essencialmente urbano. Mais de 88% de seus 19 milhões de habitantes vivem nas cidades. Essa densidade torna os efeitos sociais da pandemia mais perceptíveis. Na capital, a maioria dos casos foi registrada nos três distritos de maior renda: Las Condes, Providencia e Vitacura. Muitos infectados foram infectados na Itália ou na Espanha. Mas os casos nessas comunas são os mais relutantes em obedecer às instruções da autoridade de saúde. Isso forçou os militares e a polícia a deter transeuntes e motoristas de carros nesses bairros, para verificar se apareciam na lista de infectados.

 

Os habitantes das cidades da costa central e das praias do norte estão montando barricadas para impedir que o vírus seja introduzido nas localidades através de “turistas” que escapam da quarentena preventiva.

 

A nível político, a pandemia obrigou o plebiscito a ser adiado de 26 de abril para 25 de outubro. A votação visa aprovar ou rejeitar a Convenção Constitucional. O adiamento teve, por evidente abstenção dos parlamentares, a aprovação de todos os partidos com representação no Congresso.

 

O governo começa a ganhar autoridade depois de enfrentar duras críticas e uma infinidade de demandas e propostas de prefeitos, parlamentares, sindicato médico, organizações sociais, cientistas, etc. Mas as medidas, que foram aprovadas pela OMS (Organização Mundial da Saúde), estão sendo seguidas pela população. As pesquisas mostram uma recuperação moderada no apoio ao presidente Sebastián Piñera, cujo prestígio estava em queda há algumas semanas.

 

A direita tenta aproveitar essa circunstância para se reagrupar em torno da alternativa de rejeição da constituinte no plebiscito de outubro. O setor mais “liberal” da direita, que se manifestou a favor da mudança na Constituição, agora parece hesitante e culpa um fantasmal “golpe da esquerda”. Ao mesmo tempo, o governo vem fortalecendo seu poder militar e policial, aprovando leis que tiveram o apoio da oposição.

 

A esquerda (ou centro-esquerda), entretanto, parece confusa com a súbita mudança que o vírus trouxe à vida cotidiana dos chilenos. Sua atividade, limitada à esfera parlamentar, é essencialmente orientada a exigir eficácia na campanha de saúde e exigir respeito pelo emprego e salário dos trabalhadores.

 

A desintegração social causada por medidas sanitárias tornou-se um impedimento adicional ao renascimento de uma alternativa para a justiça social.

 

*Especial para Carta Maior

 

23/03/2020

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-peste-e-a-politica/4/46891

 

https://www.alainet.org/es/node/205426?language=es
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