Um futuro sem soberanias
07/09/2013
- Opinión
A Gabriel Bonis
Entrevista Fábio Konder Comparato vislumbra uma civilização pós-capitalista
EMBORA NÃO DE IMEDIATO, a civilização capitalista deve enfrentar o seu fim. Dará lugar a uma civilização humanista, gestada há três séculos em seu interior. Neste novo mundo, a comunidade global ditará as normas e não haverá espaço para soberanias. A previsão futurística é desenhada pelo jurista Fábio Konder Comparato, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em seu novo livro, A Civilização Capitalista (Saraiva, 312 págs., R$ 62). "E consenso mundial que para salvar a humanidade temos de nos encaminhar para a construção de um regime político mundial, no qual não haja mais soberania de Estado, mas da humanidade", diz na entrevista a seguir. "A ONU não deu certo porque não soube superar a soberania estatal. Hoje, cada vez mais, a humanidade sofre os rigores de problemas ou crises mundiais que não podem ser resolvidos por Estados isoladamente."
CartaCapital: No livro, o senhor aborda a ideia de que o capitalismo não é apenas um sistema econômico, mas uma "autêntica civilização". De onde surgiu essa perspectiva?
Fábio Konder Comparato: Até praticamente a metade do século XX, civilização era sinônimo de apuro de costumes e progresso material. Depois, os historiadores passaram a considerar civilização com o significado neutro. Seriam formas de vida própria de um povo ou de um conjunto de povos, com três características básicas: um território determinado, uma mentalidade própria, valores e crenças e uma hierarquia social. Com base nisso, identificaram-se várias civilizações, mas custou-se a identificar a civilização capitalista porque ela apresentou características diferentes. Não se fixou em um território determinado, mas se expandiu pelo mundo todo. O capitalismo também tem uma estrutura de poder original, que se esconde atrás das estruturas de Estado. A classe empresarial trabalha de mãos dadas com os agentes políticos, de certa forma sob seus comandos.
CC: 0 senhor retrata que nas cidades antigas não havia lutas de classe, mas em Roma existiam conflitos entre plebeus e patrícios.
FKC: Há uma confusão entre os historiadores sobre classes e estamentos. As classes propriamente ditas sugiram como capitalismo. Antes havia estamentos, que é uma parcela da sociedade com direitos e deveres próprios, além de uma função específica. Havia conflitos eventuais entre estamentos, patriciado e a plebe em Roma, mas não se pode falar em lutas de classe. A classe é fruto de uma determinada organização da produção econômica.
CC: A civilização capitalista corre o risco de desaparecer?
FKC: Não imediatamente, mas vai desaparecer. Ela será substituída por uma nova civilização que já foi gerada no interior da civilização capitalista: a civilização humanista. Graças à difusão da teoria marxista nos diferentes movimentos comunistas, sustentou-se que era possível mudar subitamente a estrutura de uma sociedade por meio de uma revolução. E pensou-se que a revolução seria algo de subtâneo, e o exemplo maior era a Revolução Francesa. Mas esta teve, na verdade, uma preparação de mais de um século.
CC: 0 senhor diz que já há uma nova civilização em processo de gestação faz três séculos, a civilização humanista. Mas a civilização humanista não seria a face positiva do capitalismo e, por isso, não teria como sucedê-lo?
FKC: De jeito nenhum, pois se tomarmos a organização política da civilização capitalista há a rejeição de três princípios fundamentais à civilização humanista. Em primeiro lugar, o princípio republicano. A civilização capitalista põe o interesse privado acima do bem comum. Em segundo lugar, a civilização capitalista é fundamentalmente oligárquica, é sempre a minoria de grandes empresários que comanda. A democracia é fundamentalmente a soberania do povo, mas na tradição capitalista o povo é sempre deixado de lado. Em terceiro lugar, a civilização humanista deve organizar o sistema de poderes de forma controlada, para evitar abusos, enquanto o sistema capitalista rejeita todo o controle sobre o poder empresarial.
CC: 0 senhor defende a criação de um Parlamento Mundial e de um Conselho Executivo Mundial, que definiriam as leis globais. Acredita ser possível acabar com a anarquia do sistema internacional?
FKC: A ONU não deu certo porque não soube superar a soberania estatal. Hoje, a humanidade sofre com problemas ou crises mundiais que não podem ser resolvidos por Estados isoladamente. Alguns exemplos são o aquecimento global e a fome. E consenso mundial que, para salvar a humanidade, temos de nos encaminhar para a construção de um regime político mundial no qual não haja mais soberania de Estados, mas da humanidade.
CC: Como o senhor avalia os resultados da Comissão Nacional da Verdade?
FKC: Ninguém mais sabe o que a Comissão está fazendo. Ainda que apure os horrores do sistema empresarial militar, não terá força política para obrigar o Estado brasileiro a cumprir a sentença condenatória da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso da Guerrilha do Araguaia. Por isso é importante o trabalho dos meios de comunicação em desmontar a farsa que representou a lei da anistia, de 1979, julgada legítima pelo Supremo Tribunal Federal em abril de 2010. Se o Supremo não julgar em breve os embargos declaratórios ao acórdão prolatado naquela ocasião, estou insistindo na OAB para que seja proposta uma nova arguição de descumprimento de preceito fundamental em relação ao Estado brasileiro pelo não cumprimento da sentença condenatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Não se pode hoje no mundo anistiar responsáveis por crimes contra a humanidade. •
SP 4 set 13
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