Bancocracia: da República de Veneza a Mario Draghi & Goldman Sachs

09/11/2013
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Entre o século XII e o início do século XIV, a Ordem dos Templários, presente em grande parte da Europa, converte-se no banqueiro dos poderosos, ajudando a financiar várias cruzadas. No início do século XIV, tornou-se o maior credor do rei de França, Filipe, o Belo. Perante o peso de uma dívida que sobrecarregava as suas finanças, Filipe, o Belo, resolveu desembaraçar-se dos credores e, ao mesmo tempo, da dívida, diabolizando a Ordem dos Templários, que acusou de múltiplos crimes |1|. A Ordem foi banida, os seus chefes executados e os seus bens confiscados. Faltou um Estado e um território à ordem dos Templários para fazer frente ao rei de França. O seu exército (quinze mil homens dos quais 1500 eram cavaleiros), o seu património e os seus créditos sobre vários dirigentes não os protegeram do poder de um Estado que decidiu eliminar o seu principal credor.
 
À época (séculos XI a XIV), os banqueiros venezianos financiavam também as Cruzadas e emprestavam dinheiro aos poderosos da Europa, mas foram mais hábeis a gerir o assunto do que a Ordem do Templo. Em Veneza, assumem a chefia do Estado, conferindo-lhe a forma de uma república. Financiam a transformação da cidade de Veneza, cidade-Estado, num verdadeiro império que incluía Chipre, Eubeia (Negroponte) e Creta. Adotam uma estratégia imparável para enriquecerem de forma mais duradoura e garantirem o reembolso dos seus créditos: Decidem, eles próprios, endividar o Estado veneziano junto dos bancos que possuíam. Os termos dos contratos de financiamento foram definidos por eles, que eram ao mesmo tempo proprietários dos bancos e dirigentes de Estado.
 
Ao mesmo tempo que Filipe, o Belo, se livrava fisicamente dos seus credores para aliviar o peso da dívida, o Estado veneziano reembolsava até ao último tostão os banqueiros que tiveram, entretanto, a ideia de criar títulos de dívida pública, que poderiam circular de um banco para outro. Os mercados financeiros começavam a nascer |2|. Essa forma de empréstimo é precursora da forma principal de endividamento dos Estados tal como a conhecemos no século XXI.
 
Sete séculos depois do esmagamento da Ordem Templária por Filipe, o Belo, os banqueiros da Europa, tal como os seus antecessores venezianos ou genoveses, não mostram qualquer inquietação face aos governos em exercício.
 

Os Estados nacionais de hoje e o proto-Estado que é a União Europeia são, talvez, mais complexos e sofisticados do que as repúblicas de Veneza (ou Génova) dos séculos XIII a XVI, mas são também, cruamente, os órgãos de exercício do poder da classe dominante, o 1% que se opõe aos 99%. Mario Draghi, antigo responsável da Goldman Sachs na Europa, dirige o Banco Central Europeu. Os banqueiros privados têm colocado os seus representantes ou os seus aliados em lugares chave de governos e da administração. Os membros da Comissão Europeia estão muito atentos na defesa dos interesses da finança privada e o
lobbying que é exercido pelos bancos junto de parlamentares, reguladores e magistrados europeus é extremamente eficaz.
 
Se um conjunto de grandes bancos capitalistas é o centro das atenções nos últimos anos, isso não deve esconder o papel exercido pelas grandes empresas privadas, ao nível da indústria e do comércio, que usam e abusam da sua proximidade com as estruturas do Estado com tanta habilidade como os banqueiros. A relação inextricável entre bancos, empresas industriais e comerciais e os grandes grupos privados de comunicação é também uma característica do capitalismo, tanto na sua fase atual como nas precedentes.
 
De facto, desde a vitória e institucionalização do capitalismo como modo dominante de produção e de formação social, o poder é exercido por representantes de grandes grupos privados e pelos seus aliados.
 
De um ponto de vista histórico, o New Deal, iniciado pelo presidente Roosevelt, em 1933, e os trinta anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial surgem como um parênteses durante o qual a classe dominante teve de fazer concessões, ainda que limitadas, mas reais, às classes populares. Os grandes patrões tiveram de esconder algum do controlo que possuíam sobre o Estado. Com a viragem neoliberal, iniciada no final dos anos setenta, abandonaram a discrição. Os anos oitenta colocam na frente de cena uma classe dominante completamente desinibida, que assume e ostenta com cinismo a corrida atrás do lucro e a exploração generalizada dos povos. A frase tristemente célebre de Margaret Thatcher «Não há alternativa» marca, até hoje, o cenário político, económico e social, através de ataques violentos aos direitos e conquistas sociais. Mário Draghi, Angela Merkel, Silvio Berlusconi (o grande patrão italiano), José Manuel Durão Barroso surgem como figuras emblemáticas que dão continuidade ao projeto de Thatcher. A cumplicidade ativa de governos socialistas (de Schröder a Hollande, passando por Blair, Brown, Papandreou, Zapatero, Sócrates, Letta, Di Rupo e muitos outros) mostra até que ponto estão inseridos na lógica do sistema capitalista, até que ponto fazem parte do sistema, como Barack Obama, do outro lado do Atlântico. Como afirmou o multimilionário americano Warren Buffett, «É uma guerra de classes e é a minha classe que está a ganhar».
 
O sistema da dívida pública, tal como funciona no capitalismo, constitui um mecanismo permanente de transferência da riqueza produzida pelo povo para a classe capitalista. Esse mecanismo foi reforçado com a crise que começou em 2007-2008 porque as perdas e dívidas dos bancos privados foram transformadas em dívida pública. Em grande escala, os governos socializaram as perdas dos bancos para que eles pudessem continuar a obter lucros que distribuem pelos seus proprietários capitalistas.
 
Os governantes são aliados diretos dos grandes bancos e colocam ao seu serviço os poderes e os fundos públicos. Existe um vaivém permanente entre os grandes bancos e os governos. O número de ministros das Finanças e da Economia, ou de primeiros-ministros, que vêm diretamente de grandes bancos ou que para lá vão quando deixam o governo continua a aumentar desde 2008.
 
O negócio da banca é muito importante para a economia para ser deixado nas mãos do sector privado. É necessário socializar o sector bancário (o que implica a sua expropriação) e colocá-lo sob controlo cidadão (funcionários dos bancos, clientes, associações e representantes dos atores públicos locais), para que seja sujeito às regras de serviço público |3| e os rendimentos gerados pela sua atividade sejam postos ao serviço do bem comum.
 
A dívida pública contraída para salvar os bancos é definitivamente ilegítima e deve ser repudiada. A auditoria cidadã deve determinar as outras dívidas ilegítimas e/ou ilegais e permitir a mobilização para que a alternativa anticapitalista tome forma.
 
A socialização dos bancos e a anulação/repúdio das dívidas ilegítimas devem ser inscritas num programa mais amplo |4|.
 
Como durante a República de Veneza, hoje, na União Europeia e na maioria dos países mais industrializados do planeta, o Estado vive em osmose com a grande banca privada e paga obedientemente a dívida pública. O não pagamento da dívida ilegítima, a socialização dos bancos e outras medidas vitais serão resultado de uma irrupção do povo, ator da sua própria história. Trata-se de colocar no poder um governo tão fiel aos oprimidos como os governos de Merkel e Hollande são às grandes empresas privadas. Esse governo do povo deverá fazer incursões na sacrossanta propriedade privada para desenvolver bens comuns, que respeitem os limites da natureza. O governo deve também fazer uma ruptura radical com o Estado capitalista e erradicar todas as formas de opressão. É necessária uma verdadeira revolução .
 
Tradução: Maria da Liberdade
Revisão: Rui Viana Pereira
 
notes articles:
 
|1| Ver David Graeber, Dette 5000 ans d’Histoire, Paris, Les liens qui libèrent, 2013; Thomas Morel e François Ruffin, Vive la Banqueroute!, Paris, Fakir Editions, 2013.
 
|2| Fernand Braudel, Civilisation matérielle, économie et capitalisme. XVe-XVIIIe siècle, Paris, Armand Collin, 1979; David Graeber, Dette 5000 ans d’Histoire, Paris, Les liens qui libèrent, 2013.
 
|3| O sector bancário deveria ser totalmente público à exceção do sector cooperativo de pequena dimensão, com o qual poderia coabitar e colaborar.
 
|4| Ver Damien Millet e Eric Toussaint, «Europa: qual o programa de urgência para enfrentar a crise?» http://cadtm.org/Europa-qual-o-prog..., publicado a 24 de junho de 2012. Ver também: Thomas Coutrot, Patrick Saurin et Éric Toussaint, «Anular a dívida ou taxar o capital: um falso dilema», http://cadtm.org/Anular-a-divida-ou..., publicado a 31 de Outubro de 2013. Por fim ver : Que faire de la dette et de l’euro? http://cadtm.org/Que-faire-de-la-de..., publicado a 30 de abril de 2013.
 
- Eric Toussaint, doutorado em Ciência Política, é presidente do CADTM Bélgica (Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo, http://www.cadtm.org/). É membro do Conselho Científico da ATTAC. É autor de Bancocratie, Edition Aden, Bruxelas, 2013 e de Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marselha, 2013. Escreveu com Damien Millet Auditar, Anular, Alternativa Política, ed. Temas e Debates, Círculo de Leitores, Lisboa, 2012.
O autor agradece a Pauline Imbach, Stéphanie Jacquemont, Damien Millet et Claude Quémar pelos seus conselhos.
 
 
https://www.alainet.org/es/node/80763
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