Mercosul/União Europeia: O Brasil quer abrir tudo?
20/01/2014
- Opinión
O denso sigilo governamental em torno das negociações entre Mercosul e União Europeia (UE) motivou um grupo de intelectuais latino-americanos a endereçar uma carta aberta aos chefes de Estado do bloco, que se reúnem em fevereiro próximo para discutir essa agenda. Os intelectuais manifestam apreensão com a abrangência das concessões prestes a serem feitas. De acordo com fontes envolvidas nas negociações, mantidas sob severo regime de reserva, esboça-se um acordo temerário que envolve os seguintes pontos:
a) Os países do Mercosul estariam apresentando as seguintes propostas de liberalização dos mercados nacionais para produtos europeus:
Argentina: 80,7%
Brasil: 88,4%
Paraguai: 95,7%
Uruguai: 97,2%
Os percentuais representam a proporção das partidas de importação que seriam liberalizadas.
b) A Europa não apresentou até o momento sua proposta, ainda que esta já esteja quase totalmente consolidada.
Existem só algumas objeções por parte dos produtores agropecuários franceses. Na Europa, os setores produtivos envolvidos são consultados previamente e as negociações não são mantidas sob estrito sigilo, nem se dá poder completo aos negociadores como ocorre no caso dos países do Mercosul. Estima-se que a dificuldade europeia poderá ser superada no curto prazo (por exemplo, em troca de maiores apoios setoriais, salvaguardas especiais, etc.).
c) Pretende-se avançar rapidamente também nos capítulos ainda mais significativos e influentes que os comerciais, envolvendo as políticas econômicas, industriais, nacionais ou regionais: compras públicas, patentes, investimentos, serviços, competição.
d) O mais preocupante de tudo, do ponto de vista desses intelectuais, é a posição dos negociadores brasileiros. A decisão do Brasil, aparentemente, é de fechar um acordo rapidamente. Para isso, conta com o apoio do Paraguai e do Uruguai. A Venezuela não participou do processo de negociação. Ao menos um setor do governo de Dilma Rousseff está disposto a avançar, mesmo que isso ocorra sem um consenso unânime do Mercosul.
Isso seria muito sério na medida em que, de acordo com os documentos constitutivos do Mercosul, toda negociação com outros blocos ou países, deve ser feito de maneira consensual. Lembre-se que o Mercosul impediu que o Uruguai avançasse na direção de um Tratado de Livre Comércio independente com os Estados Unidos, que começou a ser negociado pelos presidentes Jorge Battle e Tabaré Vázquez.
Avançar na direção de negociações “multiparte”, que é uma aspiração europeia, poderia levar diretamente à desarticulação do Mercosul. O bloco é regido por uma tarifa externa comum, com liberalização do comércio intra-regional. Não se trata de um risco teórico. Isso ocorreu com a Comunidade Andina, onde a UE fechou acordos independentes com Colômbia e Peru. A posição do Brasil neste tabuleiro é chave. Existe o sério perigo de se aprovar uma abertura generalizada com a União Europeia, mostrando isso inclusive como um “exemplo da unidade latino-americana”, o que seria uma nova e dura ironia da história.
A carta aberta à Cúpula do Mercosul
Aos Senhores Presidentes e Senhoras Presidentes dos países membros do Mercosul, com a maior consideração:
Os signatários abaixo, cidadãos e organizações sociais, nos dirigimos a vocês com o propósito de manifestar inquietudes ante o processo de negociação em curso entre o Mercosul e a União Europeia para a efetivação de um amplo acordo econômico e comercial, que está ocorrendo de forma altamente reservada.
Em função da ausência de transparência, nos preocupa que a pressão de grupos minoritários de interesse, a falta de estudos e debates públicos ou ainda o mero desconhecimento de alternativas e consequências por parte dos negociadores podem conduzir para um acordo contrário aos propósitos do desenvolvimento econômico independente. É isso o que proclamam os governos, defendem de forma reiterada os povos e se destaca de forma orgulhosa no antecedente de unidade histórico do Mercosul quando rechaçou uma proposta de acordo similar, a ALCA com os Estados Unidos, em 2005.
Mesmo que não se denomine o acordo como de “livre comércio” (TLC), mas sim de “cooperação econômica” (ACE), como é possível reconhecer em muitos recentes entendimentos entre países centrais e periféricos (Norte-Sul), o uso de eufemismos não esconde que, se não forem tomadas cautelas imprescindíveis, poderia se chegar a um compromisso desequilibrado entre regiões com desenvolvimento e competitividade muito distintas.
Tememos muito que, apesar de poder fazer algumas concessões marginais ou realizar promessas, a União Europeia seguirá sustentando subsídios e mecanismos de proteção ao seu setor agrícola. Assim, se privaria os países do Mercosul de poder alcançar o benefício comercial mais importante, em troca de uma abertura inédita massiva dos mercados locais a uma competição com uma economia mais desenvolvida, sobretudo para muitos produtos industriais e serviços, com algumas salvaguardas circunstanciais. Repetiria-se, em um grau maior, um cenário de graves desequilíbrios que observamos hoje na própria Europa, em função das assimetrias entre os países do norte em relação aos do sul e do leste, mas também no Mercosul, entre países e regiões com distinta envergadura econômica.
Sabemos que a aproximação Mercosul-União Europeia não constitui somente uma negociação comercial, mas sim que a maior parte dos temas em discussão são de caráter estrutural e comprometem o conjunto da economia em aspectos críticos tais como: serviços, patentes, propriedade intelectual, compras públicas, investimentos e competição. A eventual atribuição do tratamento de “nação mais favorecida” aos países da UE, mesmo com a inclusão de salvaguardas de exceção, enfraqueceria os muito proclamados objetivos de defender e priorizar o fortalecimento de empresas regionais e a diversificação de matrizes produtivas, propostas defendidas em muitas de vossas manifestações públicas. Mesmo que continuassem os discursos pró-indústria, isso inibiria para os países do Mercosul estratégias e políticas públicas elementares de desenvolvimento econômico, utilizadas historicamente também pelos países europeus, tais como: substituição de importações, prioridade para as compras nacionais, oferecer créditos diferenciados para o desenvolvimento de regiões ou setores nacionais mais desfavorecidos.
É preciso contrapor a prática dos ultimatos (do tipo: afirmar que se deve negociar agora ou nunca), possíveis manobras (como eventuais ameaças de propor negociações “multiparte” de forma independente, tal como fez a Comunidade Andina, para romper a unidade do Mercosul), ou a simples distorção da realidade (por exemplo, não se esclarecendo que as consequências econômicas reais da finalização de preferências alfandegárias por parte da UE a partir de 1º de janeiro para Argentina, Brasil, Uruguai e Venezuela, serão marginais e podem ser assimiladas sem dificuldade).
Assim, para decidir que tipo de entendimento com a Europa é possível e conveniente para o Mercosul, resulta imprescindível que vossos governos convoquem imediatamente a mais ampla participação democrática para a análise e o debate dos efeitos estruturais de curto e longo prazo – gerais, nacionais e setoriais – e se coloquem na mesa alternativas superadoras de negociação.
a) Os países do Mercosul estariam apresentando as seguintes propostas de liberalização dos mercados nacionais para produtos europeus:
Argentina: 80,7%
Brasil: 88,4%
Paraguai: 95,7%
Uruguai: 97,2%
Os percentuais representam a proporção das partidas de importação que seriam liberalizadas.
b) A Europa não apresentou até o momento sua proposta, ainda que esta já esteja quase totalmente consolidada.
Existem só algumas objeções por parte dos produtores agropecuários franceses. Na Europa, os setores produtivos envolvidos são consultados previamente e as negociações não são mantidas sob estrito sigilo, nem se dá poder completo aos negociadores como ocorre no caso dos países do Mercosul. Estima-se que a dificuldade europeia poderá ser superada no curto prazo (por exemplo, em troca de maiores apoios setoriais, salvaguardas especiais, etc.).
c) Pretende-se avançar rapidamente também nos capítulos ainda mais significativos e influentes que os comerciais, envolvendo as políticas econômicas, industriais, nacionais ou regionais: compras públicas, patentes, investimentos, serviços, competição.
d) O mais preocupante de tudo, do ponto de vista desses intelectuais, é a posição dos negociadores brasileiros. A decisão do Brasil, aparentemente, é de fechar um acordo rapidamente. Para isso, conta com o apoio do Paraguai e do Uruguai. A Venezuela não participou do processo de negociação. Ao menos um setor do governo de Dilma Rousseff está disposto a avançar, mesmo que isso ocorra sem um consenso unânime do Mercosul.
Isso seria muito sério na medida em que, de acordo com os documentos constitutivos do Mercosul, toda negociação com outros blocos ou países, deve ser feito de maneira consensual. Lembre-se que o Mercosul impediu que o Uruguai avançasse na direção de um Tratado de Livre Comércio independente com os Estados Unidos, que começou a ser negociado pelos presidentes Jorge Battle e Tabaré Vázquez.
Avançar na direção de negociações “multiparte”, que é uma aspiração europeia, poderia levar diretamente à desarticulação do Mercosul. O bloco é regido por uma tarifa externa comum, com liberalização do comércio intra-regional. Não se trata de um risco teórico. Isso ocorreu com a Comunidade Andina, onde a UE fechou acordos independentes com Colômbia e Peru. A posição do Brasil neste tabuleiro é chave. Existe o sério perigo de se aprovar uma abertura generalizada com a União Europeia, mostrando isso inclusive como um “exemplo da unidade latino-americana”, o que seria uma nova e dura ironia da história.
A carta aberta à Cúpula do Mercosul
Aos Senhores Presidentes e Senhoras Presidentes dos países membros do Mercosul, com a maior consideração:
Os signatários abaixo, cidadãos e organizações sociais, nos dirigimos a vocês com o propósito de manifestar inquietudes ante o processo de negociação em curso entre o Mercosul e a União Europeia para a efetivação de um amplo acordo econômico e comercial, que está ocorrendo de forma altamente reservada.
Em função da ausência de transparência, nos preocupa que a pressão de grupos minoritários de interesse, a falta de estudos e debates públicos ou ainda o mero desconhecimento de alternativas e consequências por parte dos negociadores podem conduzir para um acordo contrário aos propósitos do desenvolvimento econômico independente. É isso o que proclamam os governos, defendem de forma reiterada os povos e se destaca de forma orgulhosa no antecedente de unidade histórico do Mercosul quando rechaçou uma proposta de acordo similar, a ALCA com os Estados Unidos, em 2005.
Mesmo que não se denomine o acordo como de “livre comércio” (TLC), mas sim de “cooperação econômica” (ACE), como é possível reconhecer em muitos recentes entendimentos entre países centrais e periféricos (Norte-Sul), o uso de eufemismos não esconde que, se não forem tomadas cautelas imprescindíveis, poderia se chegar a um compromisso desequilibrado entre regiões com desenvolvimento e competitividade muito distintas.
Tememos muito que, apesar de poder fazer algumas concessões marginais ou realizar promessas, a União Europeia seguirá sustentando subsídios e mecanismos de proteção ao seu setor agrícola. Assim, se privaria os países do Mercosul de poder alcançar o benefício comercial mais importante, em troca de uma abertura inédita massiva dos mercados locais a uma competição com uma economia mais desenvolvida, sobretudo para muitos produtos industriais e serviços, com algumas salvaguardas circunstanciais. Repetiria-se, em um grau maior, um cenário de graves desequilíbrios que observamos hoje na própria Europa, em função das assimetrias entre os países do norte em relação aos do sul e do leste, mas também no Mercosul, entre países e regiões com distinta envergadura econômica.
Sabemos que a aproximação Mercosul-União Europeia não constitui somente uma negociação comercial, mas sim que a maior parte dos temas em discussão são de caráter estrutural e comprometem o conjunto da economia em aspectos críticos tais como: serviços, patentes, propriedade intelectual, compras públicas, investimentos e competição. A eventual atribuição do tratamento de “nação mais favorecida” aos países da UE, mesmo com a inclusão de salvaguardas de exceção, enfraqueceria os muito proclamados objetivos de defender e priorizar o fortalecimento de empresas regionais e a diversificação de matrizes produtivas, propostas defendidas em muitas de vossas manifestações públicas. Mesmo que continuassem os discursos pró-indústria, isso inibiria para os países do Mercosul estratégias e políticas públicas elementares de desenvolvimento econômico, utilizadas historicamente também pelos países europeus, tais como: substituição de importações, prioridade para as compras nacionais, oferecer créditos diferenciados para o desenvolvimento de regiões ou setores nacionais mais desfavorecidos.
É preciso contrapor a prática dos ultimatos (do tipo: afirmar que se deve negociar agora ou nunca), possíveis manobras (como eventuais ameaças de propor negociações “multiparte” de forma independente, tal como fez a Comunidade Andina, para romper a unidade do Mercosul), ou a simples distorção da realidade (por exemplo, não se esclarecendo que as consequências econômicas reais da finalização de preferências alfandegárias por parte da UE a partir de 1º de janeiro para Argentina, Brasil, Uruguai e Venezuela, serão marginais e podem ser assimiladas sem dificuldade).
Assim, para decidir que tipo de entendimento com a Europa é possível e conveniente para o Mercosul, resulta imprescindível que vossos governos convoquem imediatamente a mais ampla participação democrática para a análise e o debate dos efeitos estruturais de curto e longo prazo – gerais, nacionais e setoriais – e se coloquem na mesa alternativas superadoras de negociação.
19/01/2014
https://www.alainet.org/es/node/82470
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