Ainda as lições do Brasil, 50 anos depois

26/03/2014
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Retorno à Berlim primaveril. Depois de um inverno meio chôcho, encontro advertências de que provavelmente a cidade será tomada por uma infestação de mosquitos no próximo verão. O pior vai ser que a cidade não tem infra-estrutura – sobretudo de espírito – para tanto. Infestação de mosquitos, afinal, é coisa de terceiro mundo. Repelentes, só os encontramos daqueles antigos, gosmentos, mais fedorentos que alho para espantar vampiro. Pois, parece, vai ter mosquito demais na terra de Goethe, Hölderlin e Hegel. Estou me preparando. Trouxe sementes de citronela, outras de arruda. Tomara que funcione, que os mosquitos daqui sejam tão sensíveis quanto os de lá. Ou aí, melhor dizendo.
 
Mas vim também carregado de lições do Brasil. Êê Brasil, como dizia… quem mesmo? Não importa.
 
Nada de estatísticas. Deixo isto para o governo e para as oposições, ainda que estas não as tenham, ou, se as têm, não as mostram, pois lhes serão provavelmente desfavoráveis.
 
Trouxe impressões. Das mais impressionistas, diga-se de passagem. Mas que me impressionaram.
 
Primeiro, qualifico a viagem: passei uns dias em São Paulo, outros no Rio Grande do Sul, onde fiz uma viagem longa até o Uruguai, atravessando a restinga entre a Lagoa dos Patos e o mar. Ainda mais alguns no Rio de Janeiro.
 
Ouvi ecos sobre o Nordeste.
 
Fiquei muito impressionado por uma coisa aparentemente banal. Na grande maioria dos estabelecimentos comerciais onde entrei – farmácias, restaurantes a quilo ou não, hotéis, mercados, etc., encontrei a) anúncios de emprego; ou b) trabalhadores novos sendo treinados. Sinal de que o setor está crescendo. Às vezes havia o incômodo de ser atendido por alguém não inteiramente familiarizado com o serviço, tendo que esperar o socorro de um gerente ou de alguém veterano. Dane-se, eu pensava. Salve o pleno emprego que estamos atingindo. Apesar de eu ter lido num artigo do Instituto Millenium que pleno emprego é algo que faz mal, porque “aumenta os salários” e portanto o “custo Brasil”, perdendo nós (que “nós” será este?) em competitividade, iniciativa, etc. O tempora o mores.
 
Constatei que se o conceito de “nova classe média” for problemático, o da existência de uma “velha classe média” não o é. Trata-se daquela parcela da classe média que, vivendo neste padrão de consumo há mais tempo do que os recém-chegados, procura agora diferenciar-se das mais diferentes maneiras. E dá-lhe falar mal do Brasil. E dá-lhe exigir que eu, que vivo na Europa, fale bem desta, apesar das crises labirínticas em que anda metida, e desqualifique tudo o que se encontra no Brasil.
 
Falar mal do Brasil, portanto, é uma síndrome muito ampla. Se não se fala mal de algo, “não estamos na conversa”. As opções são muitas, indo do sistema de saúde ao consumo de cerveja. No caso do sistema de saúde, a coisa é grave. Encontrei um padrão, por onde ouvi. Em 99% dos casos, as pessoas que falam mal do sistema público de saúde não o usam, e falam generalidades, do tipo “as filas são enormes”, “não há bom atendimento”, “falta tudo”, e valem-se seguidamente de expressões do tipo “ouvi dizer”, “me disseram”, etc. Já 90% que usam o sistema público de saúde falam de coisas concretas, indo do atendimento a casos de câncer até o de HIV, além de outros. Dizem: “precisei de tal atendimento”, ou remédio, e consegui logo, ou “o atendimento do posto de saúde era tão bom quanto no hospital particular em frente’, etc.
 
No caso da cerveja, a coisa é mais sutil, embora nem tanto. Ouvi comentários de que o consumo enorme do líquido no Brasil força a baixa qualidade da cerveja nacional. Que, portanto, era imperioso consumir apenas cerveja importada. E tomavam a Buduáiser norte-americana, que é mais ou menos um guaraná sem graça alcoolizado, muito diversa da Budweiser tcheca, uma das melhores cervejas do mundo. Enquanto encontramos hoje no Brasil uma produção poderosa de cervejas artesanais da melhor qualidade… sem falar na gelada qualidade das comuns.
 
E há outras pérolas do consumo, como a de que ouvi que é melhor e mais barato pegar um avião e comprar um enxoval de bebê em Miami do que fazê-lo no Brasil. Pobres bebês, pensei, adornados com aquelas feíces made in Hong Kong.
 
Tornei-me um usuário entusiasta dos trens em São Paulo. Modernos, arejados ou com ar condicionado, eficientes, estão conseguindo definir um traçado de transporte público eficaz com o metrô. Claro, na hora do rush a coisa complica, porque, como eu já disse anteriormente, em outra crônica, o Brasil não fora feito para que tanta gente tivesse emprego ao mesmo tempo, de acordo com a judiciosa expressão do prestigiado instituto acima citado. Mas ainda assim dá para enfrentar. Comentei com amigos. Alguns reconheceram que também usavam os trens. Já outros alegaram: “ah, mas não é como na Europa. A distância entre as estações é muito grande”, numa demonstração de que não só não desprezam os trens paulistas como não conhecem direito nem mesmo os trens europeus. E a tais comentários escapa um ponto relevante. Os vagões modernos do sistema em S. Paulo, comprados relativamente há pouco tempo, têm uma largura menor do que os antigos, coisa que faz com que a distância por vezes do estribo para a plataforma seja de fato enorme e perigosa. Isto sim deveria ser tema de manifestos, passeatas, etc., e sua permanência por muito tempo seria impensável na Europa, mesmo com a crise. Mas… quem pensa apenas nas grandes distâncias, e à distância, nem sempre consegue se aperceber das pequenas e próximas…
 
Bom, aí chegamos ao doloroso assunto “Copa do Mundo”.
 
Já suspeitava, mas fiquei convencido de que a má vontade da mídia tradicional com o evento, ou melhor, sua organização, e o já propalado fracasso que daí advirá, se deve mesmo unicamente ao fato de que ela “foi trazida” para o Brasil por um governo e petista e está sendo implementado por outro. Fosse um governo do velho bando PSDB/PFL, hoje DEM, o cantar do sabiá seria outro, apesar das eventuais críticas que seriam feitas, para salvaguardar a fachada. Também notei que as críticas que os cidadãos comuns fazem são repetições, variantes, muito iguais entre si, do que a mídia apregoa. Há a ilusão subjacente de que um eventual sucesso da Copa – dentro e/ou fora do campo – “vai reeleger o governo”, aliada à outra ilusão igualmente poderosa, a de que um fracasso da Copa, também dentro e/ou fora do campo, vai ajudar a “derrubá-lo”.
 
Neste clima de “vamos acabar com tudo”, vi e ouvi coisas chocantes, verdadeiras diatribes contra o bom senso, inclusive o do bom jornalismo, como o comentário de um cronista esportivo chamando a presidenta de “senvergonha” enquanto dizia que se tivesse dois rabos daria um para o âncora do programa em que era entrevistado, uma coisa de legítima pornografia estética, senão outras.
 
Mas apesar das retóricas incendiárias, voltei com a impressão geral de que o país vai bem, e que a afluência a este padrão de consumo mais generalizado do que os anteriores é irreversível.
 
É bom pensar nisto justo no momento em que “comemoramos” os 50 anos do golpe anti-povo que se queria “irreversível”. 
 
***
 
Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados.
 
27/03/2014
https://www.alainet.org/es/node/84332
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