Ainda o poder do financismo
11/08/2014
- Opinión
O processo de ampliação e extensão do capitalismo ocorre conjuntamente à tendência de concentração e internacionalização de suas atividades econômicas. O sistema só se mantém vivo graças ao seu próprio movimento de expansão, naquilo que passou a ser conhecido também como reprodução ampliada do capital.
As necessidades desse tipo particular de crescimento supõem novos espaços para a realização da dinâmica da acumulação. Assim, setores e ramos que não eram ainda marcados por relações de produção tipicamente capitalistas passam a ser incorporados ao centro da modernidade conservadora, com avanços de processos de assalariamento nas relações com a força de trabalho e de mercantilização explícita dos bens e serviços gerados na escala econômica.
Assim, toda a complexa rede do processo produtivo no campo e no espaço rural converte-se ao “modus operandi” da lógica do capital, tanto nas atividades agrícolas como na pecuária. Por outro lado, a produção industrial capitalista em sentido estrito também se amplia pelo lado dos serviços, que passam cada vez mais a serem gerados e ofertados na forma de mercadorias. Trata-se do caminho inevitável rumo à generalização crescente das relações capitalistas no âmbito das mais variadas e diversas sociedades, espalhadas por todos os continentes.
Imperialismo, globalização e mundialização são termos genéricos para se referir ao processo de superação das barreiras geográficas e dos limites dos Estados nacionais no processo de consolidação desse modo de produção. À medida que se afirma como a forma hegemônica de organização social, o capitalismo se impõe sobre as demais tentativas de articular a produção e a distribuição de bens e serviços. A organização em torno de grandes conglomerados empresariais oferece a possibilidade de gerar ganhos econômicos em escala e permite avançar na conquista de mercados por meio da redução de custos e de preços.
A lógica da acumulação crescente de capital impõe a necessidade da sustentação e da sobrevivência de imensos e poderosos grupos econômicos. Os oligopólios se assentam como a marca do capitalismo concentrador, com sua dominação sobre os mercados e a prevalência sólida e articulada dos agentes de oferta sobre a pulverização da estrutura fragilizada da demanda. A antiga marca do liberalismo econômico se vê cada vez mais abandonada na realidade da dinâmica do capital.
O sonho utópico da busca de um equilíbrio perfeito - a partir da liberdade de ação das forças de oferta e demanda – se desfaz a partir do enfrentamento da dureza da realidade concreta. A profunda assimetria de poder existente entre o mundo das empresas e o universo dos consumidores evidencia a natureza da exploração.
Por outro lado, o processo de acumulação de capital se verifica com a tendência ao fortalecimento de sua dimensão financeira. Num primeiro momento, tratava-se de uma natureza que dizia respeito à simples articulação entre o capital industrial e o capital bancário. As necessidades impostas à dinâmica da acumulação e a forte concorrência intercapitalista forçavam os industriais a buscarem recursos antecipados sob a forma de empréstimos e outras formas de crédito. Assim, dessa simbiose entre as empresas produtoras e os bancos no início do século XX nascia uma forma inovadora de capital – o financeiro.
Ocorre que a própria particularidade da evolução do capitalismo, em suas formas de manifestação mais sofisticadas, introduz elementos de complexidade para a sobrevivência do sistema de forma harmônica. Nesse caso em especial, pouco a pouco a esfera financeira passa a adquirir uma autonomia crescente frente às demais, uma quase independência. Aquilo que havia surgido como uma espécie de casamento entre a esfera industrial e a bancária, ganha vida própria. São interesses, aspectos institucionais, formatos empresariais e uma lógica específica de operação e funcionamento.
Não se trata mais da figura ultrapassada do industrial ou do conglomerado produtor de mercadorias. O coração dinâmico da acumulação de capital abrangeu inúmeros novos setores, ampliou seu raio de ação para mercados e países de forma transcontinental. O poder efetivo e o centro de decisões estratégicas do sistema foram transferidos para um espaço seleto de atores: o financismo.
A transformação ocorrida nos países do antigo socialismo e a consolidação da hegemonia do ideário neoliberal permitiram a cristalização do poder dessa nova ordem econômico-financeira em escala planetária. Os espaços nas organizações multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM), a Organização Mundial do Comércio (OMC), a União Européia (UE), entre outros, passou a operar na defesa dos interesses desse novo modelo. O mesmo se dá no âmbito das universidades e dos centros de pesquisa, com a tentativa de esmagamento de toda e qualquer visão alternativa ao padrão ditado pelo financismo.
Finalmente, esse tipo peculiar de fusão de interesses passa a ocupar o espaço no interior dos grandes meios de comunicação. Jornais, revistas, rádios, emissoras de televisão, portais de internet insistem em tom monocórdico. A defesa incondicional dessa forma de dominação do capital se expressa na sigla TINA: “there is no alternative”, que em inglês significa que não haveria alternativa. Os livros mais vendidos de Francis Fukuyama se encarregavam de avisar que estaríamos frente ao fim da história. A sofisticação dos mecanismos de acumulação de capital operava como cortina de fumaça para uma trajetória que não se sustentaria por muito tempo. A retórica do financês inacessível só fazia adiar a explosão, semelhante à crônica do cataclismo anunciada.
A crise iniciada em 2008, no coração do mercado financeiro norte-americano, escancarou a contradição do modelo. No entanto, os interesses contrários não foram eficazes o suficiente para articular um caminho diferente. À falta de força política capaz de forjar uma proposta alternativa, o poder do financismo apenas se acautelou e se resguardou para minimizar as perdas verificadas ao longo do período da travessia. A tão necessária regulação de mercados em escala mundial foi descartada. As propostas para tributação das transações financeiras foram novamente adiadas. As sugestões para romper as bases do modelo intrinsecamente desigual e concentrador entraram em compasso de espera. Até mesmo as buscas por paradigmas que incorporem a sustentabilidade como elemento estrutural não avançaram. Enfim, a triste realidade é que muito pouco foi feito.
Um sobrefôlego enganador, marcado por pequenas pitadas de políticas de inspiração keynesiana em alguns países, serviu como fonte de otimismo para mudanças que não surgiram na seqüência. E o poder do financismo, mais uma vez, se revelou inabalável e inalterado. Segue valendo a mesma lógica da destruição da economia real para satisfazer as necessidades de ganhos virtuais.
“Quosque tandem abutere patientia nostra?” A famosa expressão de Cícero, lançada no Senado da Roma Antiga, cabe de forma bastante adequada para expressar a indignação que se generaliza pelo mundo afora. Até quando o poder financeiro vai continuar exercendo tal dominação devastadora?
- Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal, e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
As necessidades desse tipo particular de crescimento supõem novos espaços para a realização da dinâmica da acumulação. Assim, setores e ramos que não eram ainda marcados por relações de produção tipicamente capitalistas passam a ser incorporados ao centro da modernidade conservadora, com avanços de processos de assalariamento nas relações com a força de trabalho e de mercantilização explícita dos bens e serviços gerados na escala econômica.
Assim, toda a complexa rede do processo produtivo no campo e no espaço rural converte-se ao “modus operandi” da lógica do capital, tanto nas atividades agrícolas como na pecuária. Por outro lado, a produção industrial capitalista em sentido estrito também se amplia pelo lado dos serviços, que passam cada vez mais a serem gerados e ofertados na forma de mercadorias. Trata-se do caminho inevitável rumo à generalização crescente das relações capitalistas no âmbito das mais variadas e diversas sociedades, espalhadas por todos os continentes.
Imperialismo, globalização e mundialização são termos genéricos para se referir ao processo de superação das barreiras geográficas e dos limites dos Estados nacionais no processo de consolidação desse modo de produção. À medida que se afirma como a forma hegemônica de organização social, o capitalismo se impõe sobre as demais tentativas de articular a produção e a distribuição de bens e serviços. A organização em torno de grandes conglomerados empresariais oferece a possibilidade de gerar ganhos econômicos em escala e permite avançar na conquista de mercados por meio da redução de custos e de preços.
A lógica da acumulação crescente de capital impõe a necessidade da sustentação e da sobrevivência de imensos e poderosos grupos econômicos. Os oligopólios se assentam como a marca do capitalismo concentrador, com sua dominação sobre os mercados e a prevalência sólida e articulada dos agentes de oferta sobre a pulverização da estrutura fragilizada da demanda. A antiga marca do liberalismo econômico se vê cada vez mais abandonada na realidade da dinâmica do capital.
O sonho utópico da busca de um equilíbrio perfeito - a partir da liberdade de ação das forças de oferta e demanda – se desfaz a partir do enfrentamento da dureza da realidade concreta. A profunda assimetria de poder existente entre o mundo das empresas e o universo dos consumidores evidencia a natureza da exploração.
Por outro lado, o processo de acumulação de capital se verifica com a tendência ao fortalecimento de sua dimensão financeira. Num primeiro momento, tratava-se de uma natureza que dizia respeito à simples articulação entre o capital industrial e o capital bancário. As necessidades impostas à dinâmica da acumulação e a forte concorrência intercapitalista forçavam os industriais a buscarem recursos antecipados sob a forma de empréstimos e outras formas de crédito. Assim, dessa simbiose entre as empresas produtoras e os bancos no início do século XX nascia uma forma inovadora de capital – o financeiro.
Ocorre que a própria particularidade da evolução do capitalismo, em suas formas de manifestação mais sofisticadas, introduz elementos de complexidade para a sobrevivência do sistema de forma harmônica. Nesse caso em especial, pouco a pouco a esfera financeira passa a adquirir uma autonomia crescente frente às demais, uma quase independência. Aquilo que havia surgido como uma espécie de casamento entre a esfera industrial e a bancária, ganha vida própria. São interesses, aspectos institucionais, formatos empresariais e uma lógica específica de operação e funcionamento.
Não se trata mais da figura ultrapassada do industrial ou do conglomerado produtor de mercadorias. O coração dinâmico da acumulação de capital abrangeu inúmeros novos setores, ampliou seu raio de ação para mercados e países de forma transcontinental. O poder efetivo e o centro de decisões estratégicas do sistema foram transferidos para um espaço seleto de atores: o financismo.
A transformação ocorrida nos países do antigo socialismo e a consolidação da hegemonia do ideário neoliberal permitiram a cristalização do poder dessa nova ordem econômico-financeira em escala planetária. Os espaços nas organizações multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM), a Organização Mundial do Comércio (OMC), a União Européia (UE), entre outros, passou a operar na defesa dos interesses desse novo modelo. O mesmo se dá no âmbito das universidades e dos centros de pesquisa, com a tentativa de esmagamento de toda e qualquer visão alternativa ao padrão ditado pelo financismo.
Finalmente, esse tipo peculiar de fusão de interesses passa a ocupar o espaço no interior dos grandes meios de comunicação. Jornais, revistas, rádios, emissoras de televisão, portais de internet insistem em tom monocórdico. A defesa incondicional dessa forma de dominação do capital se expressa na sigla TINA: “there is no alternative”, que em inglês significa que não haveria alternativa. Os livros mais vendidos de Francis Fukuyama se encarregavam de avisar que estaríamos frente ao fim da história. A sofisticação dos mecanismos de acumulação de capital operava como cortina de fumaça para uma trajetória que não se sustentaria por muito tempo. A retórica do financês inacessível só fazia adiar a explosão, semelhante à crônica do cataclismo anunciada.
A crise iniciada em 2008, no coração do mercado financeiro norte-americano, escancarou a contradição do modelo. No entanto, os interesses contrários não foram eficazes o suficiente para articular um caminho diferente. À falta de força política capaz de forjar uma proposta alternativa, o poder do financismo apenas se acautelou e se resguardou para minimizar as perdas verificadas ao longo do período da travessia. A tão necessária regulação de mercados em escala mundial foi descartada. As propostas para tributação das transações financeiras foram novamente adiadas. As sugestões para romper as bases do modelo intrinsecamente desigual e concentrador entraram em compasso de espera. Até mesmo as buscas por paradigmas que incorporem a sustentabilidade como elemento estrutural não avançaram. Enfim, a triste realidade é que muito pouco foi feito.
Um sobrefôlego enganador, marcado por pequenas pitadas de políticas de inspiração keynesiana em alguns países, serviu como fonte de otimismo para mudanças que não surgiram na seqüência. E o poder do financismo, mais uma vez, se revelou inabalável e inalterado. Segue valendo a mesma lógica da destruição da economia real para satisfazer as necessidades de ganhos virtuais.
“Quosque tandem abutere patientia nostra?” A famosa expressão de Cícero, lançada no Senado da Roma Antiga, cabe de forma bastante adequada para expressar a indignação que se generaliza pelo mundo afora. Até quando o poder financeiro vai continuar exercendo tal dominação devastadora?
- Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal, e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
12/08/2014
https://www.alainet.org/fr/node/102391
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