Autonomia dos movimentos sociais ou luta por hegemonia alternativa?

19/08/2014
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A resistência ao neoliberalismo ao longo das ultimas décadas do século passado teve nos movimentos sociais – ao lado de alguns partidos políticos – o protagonismo essencial. Era como se a política no seu conjunto – partidos de direita, nacionalistas, social democratas – se rendessem à onde neoliberal, que promoveu a ditadura do social, tendo a esfera social sua principal vítima.
 
O próprio Fórum Social Mundial, opondo se ao social ao Fórum Econômico de Davos, expressava essa polarização. O que levou o FSM ao absurdo de excluir a política, os partidos, os governos, como estes estivessem intrinsecamente contaminados pela logica neoliberal. Movimentos sociais e ONGs se reservavam o monopólio, no FSM, da luta contra o neoliberalismo.
 
Autonomia em relação a que?
 
Antes dessa acepção, se usava, na esquerda a luta pela autonomia como luta contra as políticas – encarnadas pelo PCB no Brasil – de aliança subordinada com a burguesia, de renuncia à luta pela hegemonia da classe trabalhadora e da esquerda. Na nova fase ela passou a ter uma acepção distinta: autonomia em relação à política, o que significa uma acepção corporativa, de renúncia à disputa de hegemonia.
 
Um caso emblemático foi o do movimento dos piqueteros na Argentina. Nascidos no auge da crise da implosão da política de paridade cambiaria da moeda argentina com o dólar, no momento da convocação de nova eleição presidencial – depois da sucesso de vários presidentes numa única semana –, os piqueteros se negaram a lançar ou a apoiar candidato algum, promovendo o lema: “Que se vayan todos!”. Um lema de inquestionável apelo, contra o conjunto da elite política.
 
Mas como eles não “se vão” enquanto não forem botados pra fora, Carlos Menem ganhou o primeiro turno e prometia dolarizar a Argentina – com o que se inviabilizaria a integração latino-americana, para citar um dos efeitos negativos da decisão. No fim das contas, Nestor Kirchner acabou triunfando e conduziu a Argentina por caminho similar ao que a Venezuela e o Brasil já haviam começado a trilhar.
 
Não demorou muito tempo para que os piqueteros desaparecessem, literalmente, na sua insistência da autonomia e da não participação das disputas na esfera política. Apesar de serem desempregados, desqualificavam os que participavam das políticas sociais do governo – até que deixaram de existir como movimento.
 
O movimento zapatista, do México, também incorporou a ideia da autonomia dos movimentos sociais. Depois de algumas manifestações nacionais, ficou recluído no sul, no estado de Chiapas, o mais pobre do país. Como se fosse possível resolver os problemas do Estado, sem alterar a situação política geral no México.
 
Os zapatistas não participam das campanhas eleitorais e só o fizeram, uma vez, para pregar a abstenção. Repudiam a luta político-institucional, mas não apontam para uma via alternativa. Tentam construir formas de poder local mas, 20 anos depois da irrupção do movimento na cena política, não há resultados concretos. A autonomia implica em isolamento e em incapacidade de construir força política decisiva, nem sequer em Chiapas.
 
Da resistência à luta por uma hegemonia alternativa
 
Enquanto isso, outros movimentos, na Bolívia e no Equador, depois de sucessivamente derrubarem governos neoliberais, decidiram fundar movimentos políticos próprios e disputar hegemonia a nível nacional. Como resultado, elegeram e reelegeram presidentes e transformaram o país de forma profunda, gerando uma estabilidade política como jamais havia acontecido na história desses países.
 
Ao mesmo tempo, o Fórum Social Mundial, mantendo a visão redutiva em relação à política, se esvaziou. Ao invés de incorporar os governos pós-neoliberais e levar as discussões entre os movimentos sociais e esses governos para o seu seio, seguiu desconhecendo as forças que começaram a construir o novo mundo possível. No FSM realizado em Belém, por exemplo, foi necessário organizar um evento paralelo – o de maior participação popular – para reunir presidentes como Lula, Hugo Chávez, Fernando Lugo, Evo Morales e Rafael Correa, como se não fizessem parte do movimento histórico de superação do neoliberalismo.
 
Esse aspecto da visão de ONGs e de alguns movimentos sociais coincide com posições liberais, de questionamento dos Estados, da política, dos partidos. Quando o neoliberalismo questiona centralmente o Estado, essas organizações coincidem com ele, sem se dar conta que a luta em torno das funções do Estado se torna central para superar o neoliberalismo.
 
Reivindicações que caracterizaram o FSM desde sua fundação – como a regulação da circulação do capital financeiro, o reconhecimento de direitos sociais expropriados pelo neoliberalismo, entre outras – dependem do Estado e de governos para sua realização. Os governos pós-neoliberais, que assumiram varias demandas do FSM, reforçaram o papel do Estado, como contraposição da centralidade do mercado, tese central do neoliberalismo.
 
Da capacidade de acumular forças na resistência ao neoliberalismo e se apoiar nelas para construir alternativas e lutar por uma nova hegemonia na sociedade, depende a possibilidade de superação do neoliberalismo. A manutenção da luta na esfera social, com a tese da autonomia dos movimentos sociais, tem sido, ao contrario, caminho de derrota do movimento popular.
 
O campo teórico do neoliberalismo
 
A transformação do campo teórico promovida pela reemergência do liberalismo está diretamente vinculada às transformações no campo politico internacional. A derrota do campo soviético na Guerra Fria trouxe também o triunfo das teses do campo imperialista, todas de caráter liberal, no plano econômico e político.
 
Com a desaparição do que aparecia como alternativa, o capitalismo ficou naturalizado como “a economia”. E os sistemas políticos liberais como “a democracia”. A crítica da visão reducionista da centralidade do trabalho, que subestimava as outras contradições – étnicas, de gênero, ecológicas, entre outras – foi substituída pela reaparição da “sociedade civil”, no lugar de qualquer tipo de análise de classe.
 
O conceito de sociedade civil não pode deixar de ter todas as conotações centrais que o liberalismo lhe atribui. Por mais que movimentos sociais e, principalmente, ONGs, tentem atribuir-lhe um conceito distinto, a oposição frontal ao Estado é indissociável do conceito de sociedade civil.
 
Sob esse manto dissolvem-se as classes, as contradições de classe e, com elas, desaparece o capitalismo. O Estado se torna inimigo, favorecendo-se assim, de forma consciente ou não, o mercado. Daí as ambiguidades das ONGs, que se opõem frontalmente ao Estado, mas não às empresas privadas e, consequentemente, ao mercado.
 
A visão liberal de sociedade civil é assim aparentada com a ideia da autonomia dos movimentos sociais. Ambas se opõem ao Estado. Um apoiando-se em forças sociais e em organizações não-governamentais, outro diretamente no mercado. Mas um campo comum de interesses contra o Estado os une.
 
O FSM nunca pôde assim compreender a natureza pós-neoliberal dos governos progressistas latino-americanos e, ao invés de aliar-se a eles na construção do outro mundo possível, se isolou e perdeu sentido. Os novos movimentos de jovens – os indignados, os “ocupas”, entre outros – sequer conhecem o FSM, que só existe nos seus eventos, sem maior representatividade. As ONGs, que o controlam e o asfixiaram, definem o espaço como um lugar de intercâmbio de experiências, sem maior significado e vínculo com as lutas concretas contra o neoliberalismo.
 
 
 - Emir Sader é mestre em filosofia política e doutor em ciências políticas. Atualmente, é professor aposentado da Universidade de São Paulo
 
20/08/2014
 
https://www.alainet.org/fr/node/102588
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