Tombado no asfalto o corpo de Marcelo Fromer, o motoqueiro seguiu adiante. Como revelou uma testemunha, nem sequer olhou para trás. Não era a vida dele que estava em jogo. Insensível, tratou de escafedecer-se. Há um filme tcheco, "V-8, o assassino", que reproduz um grave acidente de ônibus causado pela irresponsabilidade de um motorista, do qual só se conhecem as iniciais da placa do carro, V-8. Atrás de um volante, muitos trazem dentro de si um assassino. Embalados pela síndrome de Ayrton Senna e pela certeza de impunidade, avançamos o sinal vermelho, costuramos entre veículos, aceleramos na estrada. Em caso de acidente, a culpa é do outroŠ Tão grave é passar pelo acidentado e não socorrer. Na Itália, universitários pesquisaram a insensibilidade humana. Um deles simulou ferimentos, enquanto outro tentou parar os carros que passavam. Adiante, os motoristas, retidos pela polícia, eram entrevistados pelos pesquisadores. Um verdureiro numa velha caminhonete foi quem ofereceu-se para prestar socorro. Os demais alegaram pressa, medo de assalto, receio de sujarem o carro etc. Mas todos concordaram num ponto: fossem eles a vítima, gostariam de ser imediatamente socorridos. Corpos tombados impunemente aquecem o caldo da cultura da morte. Nesta semana, iniciam-se os julgamentos do massacre do Carandiru, ocorrido em São Paulo a 2 de outubro de 1992, e do assassinato da sindicalista Margarida Alves, a 12 de agosto de 1983, na Paraíba. O da matança de Eldorado dos Carajás, que tirou a vida de 21 camponeses, foi adiado mais uma vez. No Brasil, os pobres são punidos com a morte e os mandantes premiados com a impunidade. Em Israel, desaba um prédio mal construído e, na mesma noite, oito responsáveis são recolhidos à prisão. Aqui, a Justiça incentiva construtores e construtoras irresponsáveis, dando sentenças simbólicas a bodes-expiatórios e penalizando ainda mais os desabrigados do Palace II. Quem será punido pela morte de Margarida Alves, dos sem-terras de Eldorado dos Carajás e dos 111 presos ­ a maioria sem culpa formada ­ do Carandiru? Se contra pobres e fracos a Justiça fecha os olhos e, como o motoqueiro que matou Marcelo Fromer, segue adiante, a lei de talião passa a concorrer com ela, agravando a violência. Quando se perde a confiança na Justiça, ganha o ódio vingativo. A família do guitarrista dos Titãs decidiu doar seus órgãos. No Brasil, muitos pacientes morrem antes do tempo porque famílias de potenciais doadores não autorizam a retirada dos órgãos. São tabus religiosos e/ou emocionais injustificáveis. Na ótica de Jesus - que veio para que todos tenham vida - salvar vidas a partir da morte é um ato extremo de amor. Afinal, todos nós recebemos vida de algo que morreu, seja do animal que nos vem em forma de bife, seja do cereal ou do vegetal servidos à mesa como arroz ou salada. Solidariedade e justiça são atributos fundamentais da cidadania. Se o bom samaritano não tivesse interrompido sua viagem para socorrer o homem caído na estrada que unia Jerusalém a Jericó, teríamos sido privados de um dos mais significativos textos do Evangelho. E do exemplo cabal de que seguir Jesus é servir ao próximo, ainda que seja ele um desconhecido.