Pronunciamento dos Bispos do Canadá sobre a Alca

19/08/2002
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Introdução A Conferência dos Bispos Católicos do Canadá ( CCCB-CECC), através de sua Comissão de Assuntos Sociais, publicou, com o patrocínio também do CELAM e da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos, um importante documento sobre a ALCA, tendo como título: "Vendendo o futuro". Nesse documento, os bispos canadenses, partindo da experiência já em andamento do Nafta, e constatando que a Alca é a proposta de extensão do mesmo tratado para toda a América, apontam claramente para as conseqüências negativas já constatas na aplicação do Nafta, e advertem para os perigos contidos na proposta da Alca, sobretudo porque a Alca reivindica para os investimentos uma proteção indiscriminada, tirando dos Estados a capacidade de intervir para a defesa dos interesses públicos e do meio ambiente. O documento conclama os cidadãos da América a participar desse debate, pois ele é crucial para o futuro comum de nossos povos. 1- Síntese do documento 1.1. A natureza do tratado – Não é só "livre comércio". O documento inicia chamando a atenção para o alcance da proposta da Alca, que não se limita a ser um tratado de "livre comércio", mas que é sobretudo uma tentativa de proteção total dos investimentos, afetando a soberania dos Países, tirando-lhes a capacidade de proteger o meio ambiente, e negando o direito da participação democrática do povo na determinação dos rumos do seu governo. 1.2. A proteção total aos investimentos O documento constata que a proposta da Alca pretende incluir, ao pé da letra, o capítulo 11 do Nafta, que concede direitos privilegiados aos investimentos, restringindo a capacidade de intervenção dos Estados, e estabelecendo instâncias de arbitragem internacional para dirimir os conflitos, passando por cima, desta maneira, da legislação estabelecida em cada país. Desta maneira, o Nafta estabeleceu, e a Alca quer estabelecer, o que foi rejeitado veementemente pela opinião pública mundial quando foi proposto o famoso "AMI", o "acordo multilateral de investimentos", que propunha para os investimentos os privilégios que agora estão contidos no capítulo l1do Nafta. Os bispos canadenses advertem que este é o perigo maior da Alca. Para ressaltar a gravidade da proposta, o documento cita quatro casos concretos, em decorrência do Nafta, em que companhias multinacionais exigiram indenização por "lucros cessantes", diante de restrições que os Estados precisaram fazer, em vista de prejuízos ao meio ambiente e à saúde pública causados por indústrias. 1.3. Leitura crítica dos resultados O documento adverte que não se pode, ingenuamente, achar que o tratado da Alca se reduz a incentivar o comércio entre os países. Nem se pode ficar só na leitura de alguns dados superficiais, que apontam para o crescimento econômico daí resultante. Pois a questão chave está no processo de empobrecimento crescente de grande parte da população, em decorrência de um processo de concentração dos ganhos nas mãos de um restrito número de grandes empresas. 1.4. Os dados concretos Para isto, cita dados concretos, tanto do Canadá como do México, e também nos Estados Unidos. No México, por exemplo, depois que entrou em vigor o Nafta, o poder aquisitivo do salário mínimo diminuiu em 50 por cento. No Canadá, os dados mostram que os vinte por cento mais ricos aumentaram sua porcentagem de riqueza de 41 para 45 por cento, enquanto os 20 por cento mais pobres diminuíram sua fatia de 3,8 para 3,1. Nos Estados Unidos a entrada no Nafta produziu a perda de 760.000 postos de trabalho, pois as multinacionais deslocam sua produção para explorar os salários mais baixos em outros países, aumentando assim seus ganhos, e acentuando o processo de concentração e de empobrecimento da população. 1.5. A missão da Igreja Diante disto, os bispos do Canadá observam que "é evidente que a produção de maior riqueza não leva, por si mesma, a uma distribuição mais eqüitativa desta riqueza, e que a ‘nova economia’ produz maior desigualdade de uma maneira ainda mais veloz do que antes". Diante disto, conclui o documento, "Se, efetivamente, a globalização é de certa forma inevitável, então é claro que a Igreja tem uma missão essencial em humanizar os seus objetivos e finalidades. Com a implantação da Alca, a Igreja precisa oferecer mais ainda uma reflexão ética em torno de temas tão críticos". 2- Advertências dos Bispos do Canadá 2.1. O que está em jogo O documento inicia chamando logo a atenção para a proposta mais preocupante do Nafta e da Alca, que é a proteção indiscriminada aos investimentos, com garantia total para seus lucros, em prejuízo das finalidades públicas da economia e do poder dos Estados em intervir em favor do bem comum. Diz textualmente o documento: "Das preocupações que resultam do Nafta, uma de grande importância é a que decorre da capacidade atribuída a companhias particulares de demandar contra os Estados no caso de aparentes perdas de lucros. Estas demandas ou reclamações afetam, em primeiro lugar, a condição soberana dos Estados, em segundo lugar, a capacidade de proteger legalmente o meio ambiente, e por último, a participação democrática do povo em seu futuro governo". 2.2. A concentração progressiva produzida pelo tratado Alertando que não podemos nos enganar com a apresentação de dados relativos ao crescimento econômico, os bispos constatam que o tratado do Nafta acelerou, nos três países, a distância entre ricos e pobres: "Os que apóiam o Nafta, assinalam indicadores econômicos gerais, como prova dos benefícios do tratado. Porém debaixo destes dados se esconde um substrato de sombras. Os três países apresentam um distanciamento crescente entre ricos e pobres em suas sociedades, com o aumento nas dificuldades e incertezas sobre o futuro para a maioria dos cidadãos, enquanto um número cada vez menor de investidores, executivos e profissionais se tornam cada vez mais ricos". 2.3. A economia fora do controle da cidadania e da autoridade dos governos A seguinte observação dos bispos do Canadá preocupa pelas conseqüências a longo prazo que a Alca poderá trazer, em termos de colocar a economia acima dos interesses das populações e do alcance dos governos. Diz o documento: "Quem observa com preocupação o processo da ALCA, o descreve como o tratado de comércio e de investimentos mais avassalador da história. Sérios indícios deixam entrever de que forma o comércio e os investimentos poderiam se desligar de qualquer forma de controle da cidadania e da autoridade dos governos legitimamente eleitos, deixando às corporações transnacionais e aos tribunais comerciais o poder de operar de forma independente e secreta." 2.4. A proteção total aos investimentos e a desproteção dos interesses públicos A advertência mais séria que os bispos do Canadá fazem, se refere ao capítulo 11 do Nafta, que se pretende transcrever pura e simplesmente para a Alca, e que consiste na proteção total dos investimentos, criando- se instâncias supranacionais e secretas para dirimir eventuais conflitos com os Estados. Assim, ficam atropelados direitos estabelecidos por legislações nacionais, e fica diluída a soberania dos Estados para determinar condições, objetivos e interesses dos países na condução da ordem econômica. Diz o documento: "A proposta da Alca inclue, virtualmente ao pé da letra, a totalidade do texto do Nafta no que se refere aos mecanismos de relação entre o Estado e os investidores, o que permitiria às corporações estrangeiras gozar de direitos particulares na utilização de instância de arbitragem internacional a portas fechadas e não sujeitas a prestar contas de suas decisões, em lugar de utilizar as cortes domésticas, dissolvendo assim leis e regulamentos promulgados democraticamente em todas as Américas". ... "O objetivo primordial do Capítulo 11 foi de limitar a capacidade dos governos de proteger o meio ambiente, a saúde e outros valores públicos, diante dos interesses comerciais" Em síntese, as multinacionais entendem que elas não precisam, nem querem, ter nenhum compromisso com o meio ambiente nem com os objetivos públicos da economia, na suposição que elas tem o direito de buscar, incondionalmente, todos os lucros que podem auferir de seus investimentos. É a aplicação globalizada do lema do liberalismo: "Fiat questus, et pereat mundus – Haja o lucro, e pereça o mundo!" 3- Os casos concretos Para não ficarem só em advertências teóricas, o documento cita quatro casos concretos de demandas de multinacionais contra os Governos, amparadas no Capítulo 11 do Nafta, entre quinze já documentadas: 3.1. A "ETHYL CORPORATION", uma companhia americana sediada no Estado da Virgínia, que exigiu do Canadá uma indenização de onze milhões de dólares porque o governo canadense denunciou que o seu produto era prejudicial à saúde. Se fosse proibida de continuar produzindo a substância, a companhia exigia uma indenização de 250 milhões de dólares. Mas como o governo canadense cedeu, e não proibiu, a companhia se contentou em cobrar os onze milhões, como advertência, e continua produzindo o produto tóxico, mas que lhe dá lucros! 3.2. A "S.D. MYERS", contra o governo do Canadá, exigindo a indenização de vinte milhões de dólares porque ficou proibida de produzir, por dois anos, os transformadores contendo um tóxico prejudicial à saúde. 3.3. A demanda, ainda em andamento da "METHANEX CORP.". Esta companhia, com sede em Vancouver, está pleiteando do governo americano a quantia de 970 milhões de dólares, alegando estar tendo prejuízo com a polêmica levantada pelo Estado da Califórnia, o qual alega que o produto químico da Methanex contamina os mananciais de água, trazendo um grave risco para o meio ambiente. A questão ainda não está decidida, mas o caso revela bem o espírito decorrente das exigências dos investidores, garantidas no capítulo 11 do Nafta. 3.4. O caso da "METALCHAD", contra o governo do México: é uma companhia americana, que comprou os direitos de tratamento do esgoto no município de Guadalcazar, no México. O município constatou que a empresa tinha contaminado os mananciais de água, e negou a licença para o seu funcionamento. A companhia pediu uma indenização de noventa milhões de dólares, que representam uma soma maior do que os ganhos anuais de todos os habitantes do município. A decisão do tribunal especial determinou que o governo mexicano pagasse à companhia a quantia de 16,7 milhões de dólares como indenização. 4. Apelos finais Os bispos do Canadá concluem o seu documento, ressaltando as conseqüências negativas da maneira como foi implantado o Nafta, e da maneia como se estão levando adiante as negociações sobre a Alca. Quanto às conseqüências negativas, o documento enfatiza que "a busca desregrada de lucro industrial incrementa a destruição ecológica, e o contínuo endividamento das nações pobres." Destaca a pobreza crescente, afetando sobretudo mulheres e crianças, "enquanto se reduz o orçamento para programas sociais e de saúde, e os postos de trabalho são precarizados". Dois apelos são feitos de maneira mais direta: à cidadania, e aos líderes políticos: 4.1. Para a cidadania: "Os cidadãos do continente precisam se mostrar capazes de contribuir mais com estes debates tão cruciais, que determinam nosso futuro comum". 4.2. Para os líderes: "Os líderes são urgidos a enfrentar o impacto social e ecológico de um mercado aberto, enfatizar os direitos humanos e as estruturas democráticas, e promover um desenvolvimento que respeite a dignidade dos indivíduos e das comunidades". 5- O compromisso da Igreja A observação final do documento se refere à responsabilidade da Igreja: "Se, efetivamente, a globalização é de certa forma inevitável, então é claro que a Igreja tem uma missão essencial em humanizar os seus objetivos e finalidades. Com a implantação da Alca, a Igreja precisa oferecer mais ainda uma reflexão ética em torno de temas tão críticos". * Síntese elaborada por D. Demétrio Valentini
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