Ensina a teu filho
15/11/2005
- Opinión
Ensina a teu filho que o Brasil tem jeito e que ele deve crescer feliz por ser
brasileiro. Há neste país juízes justos, ainda que esta verdade soe como
cacófato. Juízes que, como meu pai, nunca empregaram familiares, embora tivessem
filhos advogados, jamais fizeram da função um meio de angariar mordomias e,
isentos, deram ganho de causa também a pobres, contrariando patrões gananciosos
ou empresas que se viram obrigadas a aprender que, para certos homens, a honra é
inegociável.
Ensina a teu filho que neste país há políticos íntegros como Antônio Pinheiro,
pai do jornalista Chico Pinheiro, que revelou na mídia seu contracheque de
parlamentar e devolveu aos cofres públicos jetons de procedência duvidosa.
Saiba o teu filho que, no monolito preto do Banco Central, em Brasília, onde
trabalham cerca de 3.000 pessoas, a maioria é honrada e, porque não é cega,
indignada frente a maracutaias de autoridades que deveriam primar pela ética no
cargo que lhes foi confiado.
Ensina a teu filho que não ter talento esportivo ou rosto e corpo de modelo, e
sentir-se feio diante dos padrões vigentes de beleza, não é motivo para ele
perder a auto-estima. A felicidade não se compra nem é um troféu que se ganha
vencendo a concorrência. Tece-se de valores e virtudes, e desenha, em nossa
existência, um sentido pelo qual vale a pena viver e morrer.
Ensina a teu filho que o Brasil possui dimensões continentais e as mais fertéis
terras do planeta. Não se justifica, pois, tanta terra sem gente e tanta gente
sem terra. Assim como a libertação dos escravos tardou mas chegou, a reforma
agrária haverá de se implantar. Tomara que regada com muito pouco sangue.
Saiba o teu filho que os sem-terra que ocupam áreas ociosas e prédios públicos
são, hoje, chamados de "bandidos", como outrora a pecha caiu sobre Gandhi
sentado nos trilhos das ferrovias inglesas e Luther King ocupando escolas
vetadas aos negros.
Ensina a teu filho que pioneiros e profetas, de Jesus a Tiradentes, de Francisco
de Assis a Nelson Mandela, são invariavelmente tratados, pela elite de seu
tempo, como subversivos, malfeitores, visionários.
Ensina a teu filho que o Brasil é uma nação trabalhadora e criativa. Milhões de
brasileiros levantam cedo todos os dias, comem aquém de suas necessidades e
consomem a maior parcela de suas vidas no trabalho, em troca de um salário que
não lhes assegura sequer o acesso à casa própria. No entanto, essa gente é
incapaz de furtar um lápis do escritório, um tijolo da obra, uma ferramenta da
fábrica. Sente-se honrada por não descer ao ralo que nivela bandidos de
colarinho branco com os pés-de-chinelo. É gente feita daquela matéria-prima dos
lixeiros de Vitória, que entregaram à polícia sacolas recheadas de dinheiro que
assaltantes de banco haviam escondido numa caçamba.
Ensina a teu filho evitar a via preferencial dessa sociedade neoliberal que
tenta nos incutir que ser consumidor é mais importante que ser cidadão, incensa
quem esbanja fortuna e realça mais a estética que a ética.
Saiba o teu filho que o Brasil é a terra de índios que não se curvaram ao jugo
português e de Zumbi, de Angelim e Frei Caneca, de madre Joana Angélica e Anita
Garibaldi, dom Helder Camara e Chico Mendes.
Ensina a teu filho que ele não precisa concordar com a desordem estabelecida e
que será feliz se unir-se àqueles que lutam por transformações sociais que
tornem este país livre e justo. Então, ele transmitirá a teu neto o legado de
tua sabedoria.
Ensina a teu filho a votar com consciência e jamais ter nojo de política, pois
quem age assim é governado por quem não tem, e se a maioria tiver a mesma reação
será o fim da democracia. Que o teu voto e o dele sejam em prol da justiça
social e dos direitos dos brasileiros imerecidamente tão pobres e excluídos, por
razões políticas, dos dons da vida.
Ensina a teu filho que a uma pessoa bastam o pão, o vinho e um grande amor.
Cultiva nele os desejos do espírito.
Saiba o teu filho escutar o silêncio, reverenciar as expressões de vida e
deixar-se amar por Deus que o habita.
* Frei Betto é escritor e autor de "Alfabetto autobiografia escolar", que a
editora Ática faz chegar às livrarias em fins de setembro.
https://www.alainet.org/fr/node/106333
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