Um movimento ecogastronômico
23/04/2003
- Opinión
Havia no centro de S. Paulo um restaurante de fast food
que, a mim, parecia uma câmara de tortura. Após escolher
o número da refeição exibida em foto, o freguês
aboletava-se numa banqueta colada ao balcão circular,
recebia o prato feito e, enquanto comia, tudo girava
banqueta, balcão e prato, como se fosse um carrossel de
parque de diversões em marcha lenta. Adiante, havia uma
barra, rente à qual tudo passava, exceto o freguês,
obrigado a cessar a refeição caso tivesse o hábito de
mastigar sem pressa. Enquanto ele pagava a despesa, do
outro lado da barra um novo freguês via seu prato pousar
sobre o balcão giratório.
Diante da proliferação de fast food, célere como as motos
que levam comida de um ponto a outro das cidades (os
quatro queijos da pizza misturam-se nas curvas), nasceu o
Slow Food, em 1986, na Itália (p.dicroce@slowfood.it).
Hoje, o movimento estende-se pelos cinco continentes e
conta com parceiros em noventa países. Seus produtos são
vendidos em 350 pontos comerciais da Itália e mais 300 de
outros países.
O Slow Food não é apenas um empreendimento comercial. É
também um projeto cultural, que visa salvaguardar o
patrimônio agroalimentício de regiões do planeta;
defender a biodiversidade vegetal e animal; e educar o
paladar. Define-se, pois, como um movimento
ecogastronômico.
Sua atuação é centrada na preservação de alimentos
típicos de uma região, etnia ou cultura, e que se
encontram sob o risco de extinção. Nesse sentido, o
movimento financia pesquisas nutricionais, busca canais
alternativos de comercialização, cria micromercados e
promove campanhas destinadas a aprimorar hábitos de
consumo alimentício. Sua filosofia produtiva, chamada de
"nova agricultura", visa proteger a qualidade, a
biodiversidade, o respeito ao meio ambiente, a paisagem,
e a saúde e o prazer do consumidor.
Sem ceder à xenofobia, o Slow Food promove a
mundialização de alimentos típicos, em geral produzidos
pela agricultura familiar, como é o caso do azeite de
mostarda da Índia e o salmão defumado da Irlanda.
Interessado no Fome Zero, o movimento veio ao Brasil e se
dispôs a favorecer a exportação de pelo menos cinco
produtos oriundos de assentamentos rurais. Ofertou ao
Fome Zero um hospital de emergência, a ser construído em
área carente; panificadoras; e alimentos.
Motivada pela mcdonaldização do planeta é que minha mãe,
Maria Stella Libanio Christo, decidiu resgatar a história
da culinária mineira, registrada no primeiro de seus sete
livros: "Fogão de Lenha 300 anos de cozinha mineira".
Ali, as receitas se mesclam com textos da melhor
literatura, descrevendo quitutes e quitandas das Minas
Gerais.
Quem, hoje, conhece um abieiro ou já comeu abiu,
deliciosa fruta cor de ouro? Depois da infância, quando
eu subia em muros para arrancá-la dos quintais vizinhos,
nunca mais tive notícias dela. E há mineiros que nunca
provaram ora-pro-nóbis, uma couve educada no colégio
Sion, da qual se come inclusive a flor.
Costumo desafiar crianças a citarem o nome de dez frutas
no qual não haja a letra A. Tente o leitor ou a leitora.
Verá que não é fácil. Estamos perdendo a memória do
paladar. E, assim, a nossa identidade mais primeva,
atávica, pois graças à amamentação é pela boca que,
primeiro, despertamos os cinco sentidos que nos permitem
a interação com o Universo.
Sabor e saber provêm da mesma raiz. Um não pode ser
preservado sem o outro. Sem a sua natureza litúrgica, a
mesa perde o seu caráter de espaço onde também os nossos
espíritos se nutrem através do diálogo. Por isso, pior
do que comer depressa é comer sozinho. Comer é comunhão.
* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Maria
Stella Libanio Christo, de "Fogãozinho culinária
infantil em histórias" (Mercuryo), entre outros livros.
https://www.alainet.org/fr/node/107388?language=en
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