Daimon e Ethos
26/06/2003
- Opinión
Talvez os leitores estranhem estas duas palavras gregas. Mas
elas nos permitem acercar-nos de um tema urgente, o resgate
dos fundamentos da ética que se contrapõe ao desmando ético
dos dias atuais, especialmente quando chefes de Estado usam a
mentira para enganar seu povo e ganhá-lo para a perversidade
da guerra. Em primeiro lugar cabe dizer que "daimon" em grego
clássico não é demônio, ao contrário, é o anjo bom, o gênio
protetor. E "ethos", não é primeiramente ética mas a morada
humana. Heráclito, genial filósofo pré-socrático (500 a.C),
uniu as duas palavras no aforismo 119: "o ethos é o daimon do
ser humano" vale dizer, "a casa é o anjo protetor do ser
humano". Esta formulação esconde a chave para toda uma
construção ética. Mas expliquemos porque isso não é
imediatamente compreensível. Vejamos em profundidade.
Ethos/morada não é constituida simplesmente pelas quatro
paredes e o teto. É o conjunto das relações que o ser humano
estabelece com o meio natural, separando um pedaço dele para
que seja sua morada, com os que habitam na morada para que
sejam cooperativos e pacíficos, com o cantinho sagrado, onde
guardamos memórias queridas,a vela que arde ou os santos de
nossa devoção, e com os vizinhos para que haja mútua ajuda e
gentileza. Morada é tudo isso, portanto, é um modo de ser das
pessoas e das coisas. A morada para ser morada tem que ter
bom astral. Isso providencia o daimon, o gênio benfazejo. O
bem que ele inspira faz das quatro paredes e do conjunto das
relações, a morada humana. Aí nos sentimos bem, amamos e
morremos. E o daimon/anjo bom, que é? Sócrates que sempre se
deixava orientar por ele, o chama de "voz profética dentro de
mim, proveniente de um poder superior" ou também de "sinal de
Deus". É a voz da interioridade, aquele conselheiro da
consciência que dissuade ou estimula, aquele sentimento do
conveniente e do justo nas palavras e nos atos que se anuncia
em todas as circunstâncias da vida, pequenas ou grandes.
Todos possuem o daimon interior, esse anjo protetor que nos
aconselha sempre, um dado tão objetivo como a libido, a
inteligência, o amor e o poder.
Como se depreende, Heráclito, como bom filósofo, deixa para
trás o sentido convencional das palavras e capta sua
significação escondida: morada (ethos) acaba sendo a ética e o
anjo bom (daimon), a inspiração para sua vivência. Ser fiel a
esse anjo bom faz com que moremos bem na casa, a individual, a
cidade, o país e o planeta Terra, a Casa Comum. Tudo que
fizermos para que se more bem juntos (felicidade) é ético e
bom, o contrário é anti-ético e mau.
Há uma espécie de tragédia em nossa história: o daimon foi
esquecido. Em seu lugar, os filósofos como Platão e
Aristóteles, Kant e Habermas colocaram sistemas éticos, com
normas tidas por universais. A voz do anjo bom não deixa de
falar, mas é confundida com as mil outras vozes, das
religiões, das igrejas, dos estados e de outros mestres.
Se quisermos uma revolução ética duradoura devemos liberar o
daimon e começar a auscultá-lo de novo. No termo, é o bom
senso ético. Ele nos sugerirá como ordenar a casa que é a
cidade, o Estado e a Casa Comum planetária. Não temos outra
saída. É utopia? Sim, mas é a direção correta que aponta o
caminho verdadeiro. Escutar o daimon traz paz geral e permite
surgir o cuidado para com todas as coisas.
* Leonardo Boff. Teólogo
https://www.alainet.org/fr/node/107771
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