O ovo e a galinha
10/06/2004
- Opinión
Eis o enigma que intriga a nossa vã filosofia: o que veio
primeiro, o ovo ou a galinha? Para as tradições religiosas, muda-
se o mundo transformando, primeiro, as pessoas. Formadas no bem,
farão uma sociedade melhor. Para as utopias libertárias, é preciso
mudar o mundo para que nenhuma pessoa seja induzida a praticar o
mal.
O ovo ou a galinha? As duas vias tiveram suas chances históricas.
A Igreja criou escolas católicas destinadas à boa formação de
nossas elites.
Notórios políticos brasileiros, que ocuparam governos de Estado e
até a presidência da República, foram alunos daqueles colégios.
Nem por isso as políticas que implementaram coincidiram com a
proposta evangélica de defesa irredutível dos direitos dos pobres.
Em muitos casos, nem as pessoas mudaram, nem o mundo.
A formação religiosa, quando tem força de conversão, modifica
hábitos pessoais, elimina vícios e aprimora virtudes, incute
valores e alarga o horizonte ético. Mas não induz necessariamente
à crítica estrutural da sociedade. Antes, adequa melhor o
convertido aos valores vigentes na ordem social. E nem sempre são
valores positivos, como é o caso da competitividade, antagônica ao
preceito evangélico da solidariedade.
Uma pessoa que opera mudanças em sua vida pessoal não o faz
imperiosamente na vida social. Ela "se salva" sem empenhar-se em
salvar o mundo, ou seja, libertá-lo de tantas marcas do pecado,
como as estruturas que produzem desigualdade social.
A via contrária também foi testada. Ao revolucionar a sociedade,
o socialismo não mudou radicalmente as pessoas. Prova disso é que,
após 70 anos de "nova sociedade", bastou a União Soviética ruir
para que a sociedade russa apresentasse sua face cruel, da rede
mundial de pedófilos, via Internet, ao fato de Moscou superar Nova
York em número de bilionários do dólar. Antonio Machado já
ensinava que o caminho se faz ao caminhar. A pessoa muda na medida
em que transforma o mundo. E quanto mais a sociedade é mais justa,
mais produz seres humanos voltados ao bem, assim como as pessoas
de bem se empenham em construir uma convivência social melhor.
Há uma dialética de interação transformadora. Não basta
"conscientizar" as pessoas. Ninguém é o que pensa, nem mesmo de si
próprio.
Somos os nossos atos. Na vida, temos a liberdade de apenas
escolher as sementes. Depois haveremos de, inelutavelmente, colher
o que plantamos. Isso vale para a vida pessoal, social e política.
Por isso as nossas opções fundamentais são tão importantes. São
elas o nosso verdadeiro retrato.
Nem ovo, nem galinha. Os dois juntos, o ovo contendo a galinha, a
galinha botando o ovo. As pessoas mudam mudando o mundo. Mudado, o
mundo muda as pessoas. Numa sociedade de estruturas justas, posso
querer praticar o mal. Fico, porém, na intenção, a menos que
prefira correr o risco de ser punido pela lei e perder a
liberdade. Numa sociedade injusta, a lei protege quem oprime e
castiga o oprimido.
Jesus pregou a mudança pessoal, a conversão, e a transformação
desse mundo, pelo advento do Reino de Deus. Anunciar um outro
reino dentro do reino de César era, no mínimo, uma subversiva
ousadia, pela qual Jesus pagou com a vida. Seu exemplo impregnou a
dinâmica histórica no rumo das utopias libertárias. Mas ainda
estamos longe de alcançar uma civilização verdadeiramente humana.
Somos 6,1 bilhões de habitantes, dos quais 4 bilhões vivem abaixo
da linha da pobreza.
O homem é, ainda, o lobo do homem. Vide as torturas aplicadas aos
prisioneiros iraquianos por soldados da pátria que se erige em
paladina da liberdade. A maioria da população mundial nasce para
morrer antes do tempo.
Quebram-se os ovos, matam-se as galinhas. Contudo, a esperança
perdura, fazendo considerável parcela da humanidade crer e lutar
para que, no futuro, todos os projetos políticos desaguem na
globalização da solidariedade e na civilização do amor.
* Frei Betto é escritor, autor de "A Obra do Artista - uma visão
holística do Universo" (Ática), entre outras obras.
https://www.alainet.org/fr/node/110079
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